segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Vitória alada
Acreditava-se que as aves modernas surgiram após a extinção dos dinossauros, mas os dois foram contemporâneos
por Gareth Dyke
É DEZEMBRO EM MOSCOU, e a temperatura cai para 15o Celsius negativos. Os aquecedores do bar não funcionam bem. Estou sentado com um casaco pesado e luvas, bebendo vodca, enquanto reflito sobre os fósseis de aves. É 2001, e Evgeny N. Kurochkin, da Academia Russa de Ciências, e eu passamos horas no museu de paleontologia como parte de nosso trabalho de levantamento de todos os fósseis de aves já coletados por expedições conjuntas mongol-soviéticas. Entre os restos está uma asa desenterrada no deserto de Gobi em 1987. Se comparada a esqueletos de dinossauros espetacularmente preservados em coleções do museu, essa minúscula asa com os ossos delicados misturados e esmagados não demonstra nenhum glamour. Porém, oferece um forte indício de que uma opinião generalizada sobre a evolução das aves está equivocada.

Hoje, mais de 10 mil espécies de aves povoam a Terra. Algumas estão adaptadas a viver distantes, em mar aberto, outras sobrevivem em desertos áridos ou habitam as montanhas cobertas de neve. Aliás, de todas as classes de vertebrados terrestres, a que inclui as aves é, de longe, a mais variada. Os biólogos evolucionistas já há muito tempo supunham que os ancestrais das aves de hoje devem o seu sucesso ao impacto de um asteroide que extinguiu os dinossauros e muitos outros vertebrados terrestres há cerca de 65 milhões de anos. Seu raciocínio era simples: apesar de as aves terem evoluído antes dessa catástrofe, as variedades anatomicamente modernas surgiram em registros fósseis somente após esse acontecimento. O aparecimento de patos, cucos, beija-flores e outras formas modernas, que juntas compõem a linhagem das neornithes (“aves novas”), parecia ser um caso clássico de explosão evolutiva em resposta à abertura de novos nichos ecológicos provocados por um evento de extinção. Nesse caso, os nichos foram ocupados por dinossauros, répteis voadores conhecidos como pterossauros e aves primitivas.

Durante a última década, no entanto, evidências crescentes a partir de registros fósseis – inclusive aquela asa esmagada – e de análises do DNA de aves vivas revelaram que as aves neornithes provavelmente se diversificaram antes de 65 milhões de anos atrás. As descobertas acabaram com a visão tradicional da evolução das aves e suscitaram novas questões importantes sobre como esses animais ascenderam até as alturas evolutivas.

AS AVES PRIMITIVAS

AS AVES SÃO UM DOS TRÊS GRUPOS
de vertebrados que evoluíram a ponto de bater as asas, de forma ativa, para o voo. Os outros dois são os malfadados pterossauros e os morcegos, estes apareceram muito mais tarde e compartilham o céu com as aves até hoje. Os paleontólogos discutiram a origem das primeiras aves durante muitos anos. Uma parte argumentava que elas evoluíram a partir de pequenos dinossauros carnívoros pertencentes ao grupo dos terópodes, a outra defendia que evoluíram de répteis primitivos. Porém, descobertas de duas décadas passadas sobre dinossauros semelhantes a pássaros, inclusive muitos com penugem, convenceram a maioria dos cientistas de que os pássaros evoluíram dos dinossauros terópodes.

No entanto, preencher a lacuna entre os ancestrais aviários e as aves modernas provou- se ser muito mais capcioso. Vamos tomar o Archaeopteryx, a criatura de 145 milhões de anos da Alemanha, a mais antiga ave conhecida. O Archaeopteryx preserva a mais antiga evidência definitiva de asas com penas assimétricas capazes de gerar a sustentação necessária para o voo – a característica que defi ne o grupo. Entretanto, ele se assemelha mais aos dinossauros de porte pequeno, como o Velociraptor, o Deinonychus, o Anchiornis e o Troodon, que com as aves modernas. Como esses dinossauros, as aves primitivas, como o Archaeopteryx e o Jeholornis, descoberto mais recentemente na China, e o Rahonavis de Madagascar exibiam longas caudas ósseas, e algumas tinham dentes afi ados, dentre outras características primitivas. As neornithes, em contraste, não exibem essas características e apresentam um conjunto de traços avançados. Esses recursos incluem os ossos do dedo do pé totalmente fundidos e asas sem dedos, que reduzem o peso do esqueleto, permitindo voos mais eficientes; e pulsos e asas altamente flexíveis, que melhoram a maneabilidade no ar. Porém, foi impossível determinar como e quando as neornithes adquiriram essas características, por causa da ausência de fósseis que documentem essa transição.

Isso não quer dizer que o registro fóssil não tivesse nenhum remanescente aviário intermediário, em termos de idade, entre as aves primitivas e as neornithes pós-extinção. Claramente já no início do Cretáceo, há mais de 100 milhões de anos, as aves que representavam uma ampla gama de adaptações de voo e especializações ecológicas acabaram por evoluir. Algumas voaram com asas amplas e largas, enquanto outras tiveram asas longas e fi nas. Algumas viviam em florestas se alimentando de insetos e frutas, outras construíram seus lares às margens de lagos ou de água e subsistiram comendo peixes. Essa incrível diversidade persistiu até os últimos estágios do Cretáceo, há 65 milhões de anos. Na verdade, juntamente com os meus colegas holandeses do Museu de História Natural de Maastricht, descrevi restos de aves com dentes, encontrados logo abaixo do horizonte geológico que marca o evento de extinção do final do Cretáceo. Mas todas as aves do Cretáceo que estão completas o suficiente para ser classificadas pertenciam a linhagens mais antigas que as neornithes, e essas linhagens não sobreviveram à catástrofe. É por isso que, até recentemente, as evidências disponíveis sugeriam que a explicação mais simples para o aparecimento das aves modernas era que elas se originaram e se espalharam após o evento da extinção.
Na década de 90, enquanto os paleontólogos ainda buscavam as neornithes ancestrais do Cretáceo sem qualquer resultado positivo, outro método de reconstrução da história evolutiva dos organismos, à parte do registro fóssil, foi ganhando força. Os biólogos moleculares faziam o sequenciamento de DNA dos organismos vivos e comparavam essas sequências para estimar quando os dois grupos se separaram. Eles conseguem fazer essas estimativas porque determinadas partes do genoma sofrem mutação a uma taxa mais ou menos constante, formando o assim chamado “tique-taque” do relógio molecular.
Há muito tempo, os biólogos moleculares questionavam a visão clássica da evolução das aves modernas baseada em fósseis. Então lidaram com o problema usando sua técnica de relógio, para estimar a divergência de datas das principais linhagens de aves modernas. Dentre as separações mais significativas está a que ocorreu entre os enormes, e praticamente não voadores, Paleognathae (avestruzes, emas e parentes) e os Galloanserae (que inclui galinhas e outros membros do grupo Galiformes, bem como patos e outros membros do grupo dos Anseriformes). Os estudos de DNA concluíram que essas duas linhagens, a mais primitiva dentre as neornithes existentes, se separaram há muito tempo, no Cretáceo. E os pesquisadores obtiveram datas semelhantes dessa antiga separação para outras linhagens.

Os resultados inferiram que, contrariamente ao senso comum paleontológico, as neornithes conviveram com os dinossauros. É engraçado pensar em um tordo empoleirado nas costas de um Velociraptor, ou em um pato nadando ao lado de um Spinosaurus. Porém, a evidência molecular para a contemporaneidade das aves modernas com os dinossauros foi tão convincente que até mesmo os paleontólogos que geralmente viam com ceticismo as descobertas do DNA conflitantes com os registros fósseis começaram a aceitá-la. Ainda assim, aqueles dentre nós que estudam esqueletos antigos queriam a confirmação fóssil urgente dessa nova visão sobre a evolução das aves.

Finalmente, depois do novo milênio, a sorte dos paleontólogos começou a mudar para melhor, a partir da minúscula asa mongol sobre a qual Evgeny e eu nos concentramos em Moscou. Voltando ao tempo em que Evgeny viu o fóssil pela primeira vez em 1987, ele me disse que pensou que talvez fosse um membro das Presbyornithidae, grupo extinto de aves, aparentado dos patos e gansos modernos. Mas 70 milhões de anos atrás, era um pássaro do Cretáceo, e todos sabiam, ou supunham saber, que não havia evidências defi nitivas de Presbyornithidae no Cretáceo. No entanto, nossas comparações no museu, naquele gelado inverno em 2001, demonstraram conclusivamente que a asa com o seu carpo-metacarpo reto (osso formado pela fusão dos ossos da mão) e detalhes de canais, sulcos e cicatrizes musculares, de fato, pertencia a uma Presbyornithidae que, além disso, era o mais antigo representante inequívoco de qualquer grupo de neornithes. Nosso achado se ajustou perfeitamente às previsões dos biólogos moleculares. Em um documento de 2002, que descreveu o animal formalmente, demos-lhe o nome Teviornis.




[continuação]

Pouco tempo depois, o Teviornis ganhou a companhia de uma segunda neornithe primitiva, o Vegavis, da ilha de Vega, na Antártida. O Vegavis foi encontrado na década de 90, e descansou em relativo anonimato durante anos, antes de sua verdadeira importância vir à tona. Em 2005, Julia A. Clarke, que no momento está na University of Texas em Austin, e seus colegas publicaram um artigo mostrando que o Vegavis foi outro pássaro do Cretáceo que exibe várias características encontradas nos patos modernos, especialmente em relação ao ombro largo, à pélvis, aos ossos das asas e às pernas curtas. Com 66 a 68 milhões de anos, o Vegavis é um pouco mais jovem que o Teviornis, mas ainda pertence claramente ao período anterior à extinção em massa. Além de ser um fóssil mais completo, preservando a maior parte do esqueleto.

Para a maioria dos paleontólogos, o Vegavis venceu a batalha contra as neornithes do Cretáceo. Com esse esclarecimento, os estudiosos começaram a reexaminar as coleções de fósseis dessa época, buscando exemplos adicionais dessas aves modernas primitivas. Uma pesquisadora, Sylvia Hope, da California Academy of Sciences, em São Francisco, vinha defendendo fazia anos que havia identifi cado espécies de aves modernas a partir de fósseis encontrados em Nova Jersey e Wyoming, datados entre 80 milhões e 100 milhões de anos atrás. Mas essas descobertas – na maior parte apenas ossos isolados – foram consideradas por alguns pesquisadores como precárias demais para uma identifi cação conclusiva. As revelações sobre o Vegavis e o Teviornis sugerem que ela estava certa o tempo todo. As comparações dos ossos de Hope com restos mais completos devem se provar esclarecedoras sobre o assunto.

PONTO DE ESCAPE
A DESCOBERTA DA RAIZ DAS AVES MODERNAS no Cretáceo alinhou perfeitamente os registros fósseis com as datas divergentes baseadas no DNA. No entanto, ela levantou uma nova questão incômoda, ou seja, por que os pássaros modernos conseguiram sobreviver ao impacto de asteroides e às mudanças ecológicas consequentes, quando seus primos voadores aviários mais primitivos e seus companheiros, os pterossauros, não sobreviveram? Em minha opinião, isto constitui o único mistério relevante remanescente sobre a evolução das aves. A resposta ainda está muito longe de ser elucidada, e, neste momento, venho dedicando grande parte da minha pesquisa à tentativa de descobri-la.

por Gareth Dyke
DE “ DEFINITIVE FOSSIL EVIDENCE FOR THE EXTANT AVIAN RADIATION IN THE CRETACEOUS”, POR JULIA A. CLARKE ET AL., EM NATURE, VOL. 433; 20 DE JANEIRO DE 2005

Com apenas uma dupla de neornithes confi rmada no Cretáceo, não há muito em termos de pistas fósseis para seguir adiante. No entanto, novas suposições estão sendo feitas em estudos de aves vivas. Usando inúmeras informações de medições de aves vivas, os meus colegas do Reino Unido e eu demonstramos, por exemplo, que as proporções de osso de asa de pássaros primitivos modernos, inclusive o Teviornis e o Vegavis, não são diferentes dos extintos enantiornites. Comparando as proporções do osso da asa fóssil com as das aves de hoje podemos inferir alguns aspectos sobre o formato da asa e, em consequência, obtermos informações sobre as capacidades aerodinâmicas das aves dos fósseis. Mas só podemos concluir que as formas das asas dos dois grupos de aves fósseis não diferem entre si, em outras palavras, não achamos que as primitivas neornithes fossem melhores quanto ao voo do que os enantiornithes (embora os dois grupos provavelmente tivessem desempenho melhor no ar que os animais semelhantes aos terópodes, como o Archaeopteryx).

Se a capacidade de voo não propiciou às neornithes uma vantagem sobre os seus homólogos do Cretáceo, o que poderia propiciar? Vários paleontólogos, inclusive eu, propuseram que diferenças nos hábitos alimentares podem ter oferecido uma vantagem competitiva. Em apoio a essa teoria, mostrei em uma série de artigos publicados ao longo dos últimos anos que as aves modernas, preservadas no rescaldo da extinção em massa, em rochas de 60 milhões de anos ou mais jovens que isso, provavelmente habitavam sobretudo ambientes úmidos: litoral, lagos, as margens dos rios e o alto-mar, por exemplo. Muitas aves que vivem nesses ambientes hoje, dentre eles os patos, são tipicamente onívoras, capazes de subsistir com uma ampla gama de alimentos. E as aves semelhantes aos patos são atualmente a única linhagem confirmada de aves modernas encontradas no Cretáceo. Em contraste, os grupos de aves do Cretáceo que não sobreviveram ao desastre foram coletados de rochas formadas em vários tipos diferentes de ambientes, inclusive costas, zonas do interior, desertos e florestas. Essa diversidade ecológica pode indicar que as aves arcaicas evoluíram com especializações alimentares em cada um desses nichos. Talvez, então, o segredo do sucesso dos pássaros modernos primitivos foi simplesmente o fato de ser menos especializados que os outros grupos.

Essa flexibilidade pôde permitir às neornithes se adaptar mais facilmente às novas condições que se seguiram ao impacto do asteroide. É uma ideia atraente, mas trata-se apenas do princípio. Somente com a descoberta de mais fósseis, seja no solo ou em gavetas de museu, poderemos determinar como os pássaros modernos iludiram a extinção e criaram asas.

Gareth Dyke prefere fósseis de ossos secos e achatados a aves vivas. Paleontólogo do University College Dublin, interessou-se pelo voo de animais quando era estudante de pós-graduação na Inglaterra. Ao pesquisar a evolução das aves e seus voos, estudou e descreveu fósseis do mundo todo. Quando não está viajando para visitar museus ou fazer trabalho de campo no meio de desertos, Dyke gosta de estudar a história europeia do século 19. Ele está escrevendo um livro sobre um colecionador de dinossauros da Transilvânia que era também espião da Áustria-Hungria.
[continuação]

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