domingo, 30 de janeiro de 2011

A evolução da pena, a mais elegante invenção da natureza

A curiosa evolução dos animais com penas revela que as aves são os parentes mais próximos dos dinossauros.

Por Carl Zimmer
Foto de Robert Clark
A evolução da pena, a mais elegante invenção da natureza Em carta de 1860, Charles Darwin perdeu a esperança de que a seleção natural pudesse explicar algum impedimento ao voo como a calda do pavão, Mais tarde ele iria ressaltar a seleção sexual: pavões espalhafatosos agradam às fêmeas.


Raros dentre nós têm a oportunidade de ver as grandes maravilhas da natureza. Nunca podemos dar uma espiada no olho de uma lula-colossal, tão grande quanto uma bola de basquete. O mais próximo a que chegamos de uma presa de narval, parecida com a de um unicórnio, é por meio de fotos. Mas há uma maravilha natural acessível a todos, e para presenciá-la basta olhar para o céu.

As aves são de tal modo comuns, até mesmo nos locais mais urbanizados do planeta, que é fácil ficar indiferente. No entanto, elas preservam muito do legado dos dinossauros e são dotadas de uma engenhosa plumagem que lhes permite voar. Para suportar a força das correntes de ar, uma pena de voo tem formato assimétrico, com a borda de ataque fina e rígida e a borda de fuga longa e flexível. A fim de gerar a força de sustentação, a ave só precisa inclinar as asas, ajustando o fluxo de ar tanto embaixo quanto acima delas. 

As asas dos aviões aproveitam alguns desses mesmos truques aerodinâmicos. Contudo, uma asa de ave é bem mais complexa do que qualquer coisa feita de placas metálicas e rebites. A partir da raque, o eixo central da asa, projeta-se uma série de barbas mais esguias, cada qual dando origem a bárbulas (filamentos) ainda menores, como ramos de um galho, todas dotadas de minúsculos ganchos. Eles se agarram aos ganchinhos das bárbulas adjacentes, criando uma trama leve e resistente. Quando um pássaro usa o bico para limpar as penas, as barbas se separam com facilidade e logo depois se recompõem.

A origem desse mecanismo admirável é um dos enigmas mais persistentes da evolução. Em 1861, dois anos depois de Darwin ter publicado A Origem das Espécies, os trabalhadores de uma pedreira na Alemanha toparam com fósseis espetaculares de uma ave do tamanho de um corvo, batizada de Archaeopteryx, que viveu há cerca de 150 milhões de anos. Ela tinha penas e outras características de aves vivas mas também resquícios de um passado reptiliano, tais como dentes na boca, garras nas asas e uma cauda óssea comprida. Como os fósseis de baleias com pernas, o Archaeopteryx parecia ser um instantâneo de uma metamorfose evolutiva crucial. "Para mim, é algo notável", confidenciou Darwin a um amigo.

O caso teria sido mais espantoso se os paleontólogos pudessem encontrar alguma criatura ainda mais primitiva dotada de penas - algo que buscaram em vão na maior parte do século e meio seguinte. Enquanto isso, outros cientistas tentaram elucidar a origem das penas por meio do estudo das escamas dos répteis modernos, os parentes vivos mais próximos das aves. Tanto as escamas como as penas são planas. Por isso, talvez as escamas dos ancestrais das aves tenham se esticado ao longo das gerações. Mais tarde suas bordas poderiam ter se rasgado e se dividido, transformando-as nas primeiras penas verdadeiras.

E também fazia sentido que essa mudança tivesse ocorrido como uma adaptação ao voo. Vamos imaginar os ancestrais das aves como pequenos répteis escamosos e quadrúpedes, vivendo na copa das árvores e saltando de uma árvore para outra. Se tivessem se tornado cada vez maiores, as escamas teriam proporcionado uma força de sustentação crescente, a qual teria permitido que essas protoaves planassem por distâncias cada vez maiores. Em resumo, a evolução das penas teria acompanhado a evolução do voo.

Essa hipótese de que as penas teriam levado ao voo começou a degringolar na década de 1970, quando o paleontólogo John Ostrom, da Universidade Yale, notou as surpreendentes semelhanças entre o esqueleto das aves e o dos dinossauros terrestres denominados terópodes, um grupo que inclui monstros famosos, como o Tyrannosaurus rex e o Velociraptor. Era óbvio, argumentou Ostrom, que as aves eram os descendentes vivos daqueles gigantes; mesmo assim, muitos dos terópodes conhecidos tinham pernas grandes, braços pequenos e cauda longa e robusta - características anatômicas que não combinam muito com criaturas acostumadas a saltar de uma árvore para outra.
Em 1996, paleontólogos chineses proporcionaram inesperada confirmação da hipótese de Ostrom. Era o fóssil de um pequeno terópode, de braços curtos e 125 milhões de anos de idade, o Sinosauropteryx, dono de uma característica extraordinária: uma camada de filamentos finos e ocos recobrindo a parte traseira do corpo e a cauda. Pelo menos havia indícios de penas primitivas - achadas em um terópode que se locomovia no solo. Ou seja, a origem das penas pode não ter nada a ver com o surgimento do voo.

Logo depois os paleontólogos encontraram centenas de terópodes emplumados, e com eles começaram a montar uma história mais detalhada das penas. Primeiro, surgiram os filamentos simples. Mais tarde, diferentes linhagens de terópodes desenvolveram vários tipos de penas, algumas parecidas com a penugem das aves atuais. Outros terópodes tinham penachos longos e rígidos ou filamentos largos, diferentes das penas de qualquer ave hoje existente.

Os filamentos longos e ocos encontrados nos terópodes intrigavam. Se eram penas primitivas, como haviam evoluído de escamas achatadas? Por sorte, hoje ainda podemos ver criaturas que, a exemplo dos terópodes, também exibem penas filamentosas: os bebês das aves. Em um filhote em crescimento, todas as penas surgem como cerdas que se erguem na pele; só depois elas se fendem e assumem formatos mais complexos. No embrião da ave, essas cerdas irrompem de minúsculas áreas de células ectodérmicas denominadas placoides. Um anel de células de crescimento rápido no topo do placoide ergue uma parede cilíndrica que se transforma numa cerda.

Os répteis também têm placoides. No embrião de um réptil, porém, cada um deles ativa genes que fazem com que apenas as células dérmicas na borda inferior do placódio cresçam e acabem formando as escamas. No fim da década de 1990, Richard Prum e Alan Brush exploraram a ideia de que a transição de escamas para penas poderia ter ocorrido em função de uma pequena mudança no conteúdo das instruções genéticas, levando as células a crescer na vertical, através da pele, em vez de horizontalmente. Após o surgimento dos primeiros filamentos, teriam sido necessárias apenas alterações menores para a obtenção de penas dotadas de complexidade crescente.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que as penas teriam surgido pela primeira vez em um espécime primitivo da linhagem dos terópodes que iria culminar nas aves. Em 2009, contudo, cientistas chineses anunciaram ter descoberto uma criatura de dorso hirsuto, o Tianyulong, no ramo ornitisquiano da família dos dinossauros - o parente mais distante possível dos terópodes. Isso levantou a chance assombrosa de que o ancestral de todos os dinossauros tinha penas semelhantes a cerdas, e de que, no decorrer da evolução, algumas espécies as teriam perdido. A origem das penas pode se situar em um passado anterior caso se confirme que a "penugem" encontrada em alguns pterossauros de fato sejam penas, pois esses répteis voadores compartilham com os dinossauros de um ancestral ainda mais antigo.

E há uma possibilidade surpreendente. Os parentes vivos com maior proximidade das aves e dinossauros são os crocodilianos. Embora tais bichos escamosos não tenham penas, hoje a descoberta nos aligatores do mesmo gene associado à construção das penas nas aves indica que, há 250 milhões de anos, antes de as linhagens terem divergido, é provável que o mesmo não ocorresse com seus antepassados. Portanto, talvez a questão a ser colocada, de acordo com alguns cientistas, não é como as aves passaram a ter penas, mas como os aligatores as perderam.

O que nos leva a mais uma questão: se as penas não evoluíram primeiro em função do voo, que outra vantagem proporcionavam às criaturas emplumadas? Para alguns paleontólogos, as penas podem ter surgido como isolante térmico. Além dessa hipótese, outra que ganhou força em anos recentes é a de que as penas surgiram para ser vistas. Hoje as penas das aves exibem enorme variedade de cores e padrões, com reflexos iridescentes e faixas e manchas brilhantes. Um pavão desdobra a cauda irisada, por exemplo, para atrair uma fêmea. A ideia de que os terópodes tenham desenvolvido penas em função de algum tipo de exibição recebeu grande impulso em 2009, quando os cientistas começaram a examinar com mais atenção a estrutura delas.

No interior das penas descobriram bolsas microscópicas, denominadas melanossomos, cujo formato corresponde exatamente às estruturas associadas a cores específicas nas penas das aves atuais. Esses melanossomos encontram-se tão bem preservados que os cientistas podem, na verdade, reconstruir a cor das penas dos dinossauros. A cauda do Sinosauropteryx, por exemplo, deve ter apresentado faixas avermelhadas e brancas, úteis em caso de camuflagem contra predadores ou para atrair o sexo oposto.

Qualquer que tenha sido a finalidade original das penas, elas existiram por milhões de anos antes de qualquer linhagem de dinossauros começar a usá-las para voar. Os paleontólogos estudam os terópodes mais próximos das aves em busca de pistas sobre essa transição. Uma das mais promissoras é uma maravilha recém-descoberta e batizada de Anchiornis, que viveu há mais de 150 milhões de anos. Do tamanho de uma galinha, ele tinha penas nos membros anteriores com partes em preto e branco, criando o mesmo padrão reluzente que se costuma ver nos galos de raça. Na cabeça ostentava uma vistosa crista rubra. As plumas do Anchiornis eram quase idênticas às penas para voar, com a única diferença de que, ao contrário destas últimas, eram simétricas, ou seja, frágeis demais para permitir o voo.

O que faltava de resistência a essas plumas, contudo, era compensado por sua quantidade. O Anchiornis tinha superabundância de penas. Elas recobriam os membros anteriores e posteriores e até mesmo os dedos. É possível que a seleção sexual esteja por trás da evolução dessa plumagem extravagante, tanto quanto da evolução atual da cauda do pavão. E, do mesmo modo como essa cauda comprida e pesada constitui um fardo para o pavão, as penas extraordinárias do Anchiornis podem igualmente ter sido bastante incômodas.

Corwin Sullivan e seus colegas do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia, em Pequim, descobriram que nos terópodes que eram aparentados às aves atuais um determinado osso do carpo tinha a forma de cunha, permitindo que dobrassem as mãos. No caso do Anchiornis, o osso carpal era uma cunha tão acentuada que ele podia dobrar os braços para os lados, mantendo a plumagem dos membros anteriores longe do chão quando se deslocava.

As aves modernas usam um osso similar ao voar, trazendo as asas junto ao corpo quando fazem um movimento ascendente. Se Sullivan estiver correto, essa característica crucial do voo evoluiu bem antes de as aves começarem a voar. É um exemplo do que os biólogos evolutivos chamam de "exaptação": o aproveitamento de um elemento anatômico antigo em uma nova função.

Essa transição final continua a inspirar debates vigorosos. Para alguns cientistas, os dinossauros emplumados desenvolveram a capacidade de voar a partir do solo, batendo os membros emplumados enquanto corriam. Já outros contestam tal noção, salientando que as "asas posteriores" no Anchiornis e em outros parentes próximos das aves permitiriam apenas uma corrida desajeitada. Esses pesquisadores estão retomando aquela ideia antiga de que as protoaves usavam as penas primeiro como auxílio para saltar da copa das árvores, depois para planar e, por fim, para voar.

Correndo no solo, saltando de árvores ou ambos? Afinal, o voo não resultou da evolução em um mundo bidimensional, argumenta o estudioso de voo Ken Dial. Ele mostrou que em muitas espécies os filhotes batem as asas rudimentares a fim de obter tração quando fogem de predadores em superfícies inclinadas como tronco de árvore. Mas o bater das asas também ajuda o filhote a se estabilizar quando retorna a um terreno mais baixo. À medida que os filhotes amadurecem, tal descida controlada passa a dar lugar ao voo autônomo. Talvez, diz Dial, o caminho percorrido pelo filhote em seu desenvolvimento reproduza o caminho seguido por sua linhagem ao evoluir - experimentando pouco a pouco até alçar voo.

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