terça-feira, 29 de março de 2011

A floresta oculta
Uso da terra afeta a diversidade biológica do solo amazônico
Edição Impressa 181 - Março 2011

Besouros, pseudoescorpiões, cupins, bactérias, formigas, fungos, aranhas, ácaros, caramujos, larvas e raízes de plantas fazem parte de um mundo invisível. Pelo menos para quem anda pela floresta amazônica atordoado pelo tamanho das árvores, pelo ruído das aves, pelo calor úmido e pelas picadas de insetos. É justamente essa diversidade oculta que uma equipe de pesquisadores que reúne 15 instituições de vários estados brasileiros vem catalogando desde 2002 no alto Solimões, uma região da Amazônia próxima à fronteira com a Colômbia e o Peru. Coordenado pela microbióloga Fatima Moreira, da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais, o projeto Bios Brasil contou, por exemplo, 239 espécies de formigas, 75 de cupins e 53 de besouros nas amostras de solo analisadas. “Ninguém pensa nos organismos pequenos ou invisíveis, mas o solo é uma fonte imensa de recursos”, argumenta a pesquisadora. 
O projeto nasceu de uma iniciativa do Programa de Biologia e Fertilidade do Solo Tropical que, com apoio do programa ambiental da Organização das Nações Unidas, em 1995 reuniu representantes de vários países que ainda têm florestas e diversidade biológica importantes a serem protegidas. A ideia amadureceu aos poucos, e passados alguns anos sete países – Brasil, México, Uganda, Quênia, Costa do Marfim, Indonésia e Índia – começaram o trabalho com métodos padronizados.

A vertente brasileira envolveu 40 pesquisadores e mais de 100 estudantes, que escavaram 100 pontos de amostragem junto das comunidades estudadas. Somando todos esses pontos, a amostragem chega a 54 hectares, algo como 54 campos de futebol transformados em buraco. Nas escavações era preciso sempre estarem presentes pelo menos um professor e um aluno para cada uma das 15 especialidades de estudo, trabalhando à sua maneira. Os especialistas em solo analisavam as propriedades e recolhiam amostras para depois fazer análises químicas e físicas; os entendidos em organismos microscópicos, como as bactérias, fungos e nematoides, também coletavam amostras para depois examinar ao microscópio e extrair material genético revelador da diversidade invisível a olho nu. Já os estudiosos de minhocas e insetos, por exemplo, esquadrinhavam a terra revirada em busca de seus organismos prediletos. Outra equipe identificou todas as espécies de plantas encontradas nas áreas estudadas.
Trabalhando juntos, os pesquisadores têm segurança em relacionar a diversidade de um tipo de organismo com outro e buscar a correspondência dessa diversidade com o tipo de solo e de uso: floresta, capoeira, roça, sítio e pastagem. Precisaram vencer não só as dificuldades intrínsecas ao trabalho, mas também conquistar a confiança dos moradores. “No começo eles achavam que estávamos procurando ouro”, se diverte Fatima, “mas depois nos aceitaram e se interessaram pelo estudo”.

Os brasileiros escolheram o alto Solimões, na Amazônia, por ser uma zona ainda de difícil acesso e por isso preservada. Ali só se chega pelo rio, depois de meia hora de barco desde Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, até o município de Benjamin Constant, onde estão as comunidades indígenas de Nova Aliança e Guanabara II. A zona é isolada, o que não quer dizer que ali só vivam alguns índios caçando com arco e flecha em meio à mata virgem. São comunidades  com cerca de 50 famílias que praticam a queima e o corte da floresta para plantar alimento.

Corte permitido – O achado mais importante do estudo, até agora, diz respeito às consequências do método usado por lá, de desmatar áreas pequenas e, depois de um tempo de plantio, deixar regenerar a floresta. “Existe uma noção de que a derrubada e a queima sejam procedimentos maléficos”, explica Fatima. Mas sua equipe descobriu que, associados à conservação de grandes áreas de floresta, pequenos trechos desmatados se regeneram bem como capoeiras, uma forma de floresta imatura. E que o solo das capoeiras logo readquire características e riqueza biológica semelhantes às das florestas. “As comunidades ali fazem isso há centenas de anos, e funciona”, conta. E contrasta: “Desmatar grandes áreas, como se faz no Acre, em Rondônia e no Pará, é maléfico mesmo”.
Esse foi o tema do doutorado de Ederson Jesus, orientado por Fatima, que recebeu menção honrosa pela  Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes. Ele mostrou que mudanças no uso do solo alteram a estrutura das comunidades bacterianas, mas quando a capoeira cresce essas comunidades voltam a ser semelhantes às que se veem em florestas primárias. Segundo artigo de 2009 no ISME Journal, essas alterações nas comunidades bacterianas estão ligadas às propriedades químicas do solo, sobretudo a acidez e a concentração de nutrientes. Concluir que as técnicas de plantio usadas nessas comunidades não bastam para perder a diversidade de bactérias é essencial, porque esses organismos microscópicos são indissociáveis das propriedades do solo e ajudam a manter um fluxo de nutrientes adequado.

A própria queimada permite neutralizar a acidez e reduzir a concentração de alumínio disponível, que é naturalmente alto no solo da região e tem efeito tóxico para as plantas. Mas essa melhoria do solo não passa de temporária, conforme mostrou a equipe de Fatima em artigo de 2009 na revista Science of the Total Environment. Depois que as plantas cultivadas consomem os nutrientes, o solo rapidamente fica empobrecido sem a produção e a deposição de matéria orgânica, o que acontece quando a floresta cresce. É por isso que o grupo encontrou as piores condições, com alta acidez e baixa concentração de nutrientes, nos pastos. 
Em colaboração com bactérias e fungos, os grandes (embora minúsculos) responsáveis pelo enriquecimento do solo por meio da decomposição da matéria orgânica são os artrópodes, sobretudo os ácaros oribatídeos e os colêmbolos. Um estudo liderado por José Wellington de Morais, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e publicado em 2010 na Neotropical Entomology, mostrou que o conjunto de organismos dos sistemas de roça não é muito diferente daquele que caracteriza a floresta primária. Já o sistema agroflorestal, com desmatamento mais extenso, acaba ficando mais parecido com o dos pastos, que são bastante pobres. O trabalho indicou também que os ácaros parecem ser mais resistentes às condições adversas, já que são os organismos dominantes no solo das áreas de pastagem. 
Os pesquisadores do Bios Brasil ainda estão quebrando a cabeça para encaixar todas essas peças e tentar entender as relações cíclicas que ligam o solo, os organismos que vivem nele e o tipo de uso feito pelas populações humanas. “Tudo se relaciona”, ressalta Fatima, “mas é como o enigma do ovo e da galinha”. 
Para os pesquisadores, os achados equivalem a ouro: muitas novidades surgem da exploração desse mundo desconhecido logo debaixo dos pés. “Já descrevemos espécies novas de nematoides, de formigas, de cupins e de fungos”, comemora a coordenadora do projeto. Alguns dos cupins encontrados chegaram a representar um gênero novo, descrito na Zootaxa por Reginaldo Constantino, da Universidade de Brasília, e Agno Acioli, da Universidade Federal do Amazonas. O nome dos insetos, Ngauratermes, vem do idioma ticuna, falado pelos índios  mais comuns na região. Significa cupim que habita a serrapilheira.

Ação local – Além de render um grande número de publicações científicas, que estão longe de chegar ao fim, o grupo produziu também uma cartilha para expor os resultados às comunidades locais, disponível no site do projeto (www.biosbrasil.ufla.br). “O trabalho do pesquisador é essencial”, destaca Fatima, “mas quem vai preservar de fato é a população local, por isso precisamos mostrar a importância dessa riqueza de maneira que possam entender”. As cartilhas, em português, espanhol (por ser uma região fronteiriça com a Colômbia e o Peru) e inglês (a língua oficial do projeto internacional), têm sido bem usadas pela equipe. Foram o material didático para cursos em que apresentaram os dados à população e agora são usadas nas escolas, explicando noções de ecologia em termos integrados ao cotidiano das crianças.

Manter intacta essa riqueza é muito mais do que sentimentalismo. Fatima esclarece que a região produz importantes fontes de alimento, como a pupunha, o cupuaçu e várias hortaliças típicas dali. A agrobiodiversidade vem sendo explorada não só como maneira de cultivar essas plantas e tê-las disponíveis em outras regiões, mas também de entender as parcerias naturais que as tornam mais saudáveis e produtivas. Um exemplo são bactérias e fungos que se associam às raízes de plantas e as ajudam na nutrição.

O grupo da pesquisadora da Ufla tem usado bactérias amazônicas para melhorar a produtividade do feijão-caupi (Vigna unguiculata) em outras regiões. Esse enfoque vem do mestrado de Fatima, no Inpa, com Johanna Döbereiner, reconhecida no mundo todo por seu trabalho pioneiro com bactérias fixadoras de nitrogênio.


Gláucia Alves e Silva, sob orientação de José Oswaldo Siqueira, da Ufla, e Sidney Stürmer, da Fundação Universidade Regional de Blumenau, testou a eficiência da associação entre fungos e o feijão-caupi. Ela verificou, conforme publicado na Acta Amazonica, que os fungos mais eficientes para a absorção de fósforo são mais comuns em roças e em pastagens. Além disso, Fatima lembra que a diversidade biológica é uma proteção natural: nenhuma praga consegue dizimar uma floresta, elas só são eficientes contra monoculturas.
Fatima considera que outro grande benefício do projeto foi agregar pesquisadores que de outra maneira teriam continuado isolados. “Formamos um grupo unido que está aumentando.” O trabalho não deve ficar restrito à Amazônia. Acaba de ser aprovado um projeto de R$ 2,5 milhões pela Vale, como parte de um edital com participação da FAPESP e da Fapemig, para fazer um estudo semelhante nos estados de Minas Gerais e São Paulo, que deve ter início ainda este ano.
Para a pesquisadora, preservar a Amazônia é um assunto de interesse mundial, e ela defende uma bolsa-floresta que ajude as comunidades locais a preservar a floresta amazônica e evitar as transformações drásticas que já aconteceram, sem possibilidade de retorno, em outras regiões do mundo. “A região do Irã e do Iraque, o berço da civilização, já foi toda floresta; hoje é deserto.”     

>Artigos científicos 
1. JESUS, E. da C. et al. Changes in land  use alter the structure of bacterial  communities in Western Amazon soils.  The ISME Journal. v. 3, p. 1.004-11. 2009.
2. MOREIRA, D. M. de S. et al. Differentiation in the fertility of Inceptisols as related to land use in the upper Solimões river region, western Amazon. Science of the Total Environment. v. 408, p. 349-55. 2009.
3. MORAIS, J. W. de et al. Mesofauna  do solo em diferentes sistemas de uso da terra no alto rio Solimões, AM. Neotropical Entomology. v. 39, n. 2, p. 145-52. 2010.
4. SILVA, G. A. et al. Eficiência de fungos micorrízicos arbusculares isolados de solos sob diferentes sistemas de uso na região  do alto Solimões na Amazônia. Acta Amazonica. v. 39, n. 3, p. 477-88. 2009.

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