segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Transição gradual

Análise de restos de comida em panelas de cerâmica de 6 mil anos sugere que a mudança de uma alimentação baseada na caça, na pesca e na coleta, para uma sociedade calcada na agricultura se deu de maneira lenta. 
 
Por: Sofia Moutinho
Publicado em 25/10/2011 | Atualizado em 26/10/2011
Transição gradual
A análise química dos vestígios de comida encontrados nas cerâmicas revelou uma dieta baseada na pesca e na coleta, o que mostra que a agricultura não se espalhou pelo mundo de forma abrupta, substituindo os hábitos anteriores. (foto: Anders Fisch) 
 
A transição do homem caçador para o homem agricultor pode não ter sido tão abrupta e rápida quanto acreditavam os arqueólogos. É o que mostra a análise de resquícios de comida em panelas e potes de cerâmica encontrados no mar báltico, no norte da Europa, datados de 6 mil anos, quando a agricultura já tinha começado a ser praticada.
A análise química de 133 potes recuperados em 15 sítios arqueológicos da região, entre Dinamarca e Alemanha, revelou que metade dos potes encontrados era usada para cozinhar frutos do mar e peixes de água doce e salgada, mesmo quando já existiam as plantações e a criação de animais.
O resultado do estudo, conduzido por pesquisadores de universidades dinamarquesas e inglesas e publicado esta semana na PNAS, vai contra as teorias mais aceitas sobre o surgimento e a expansão da agricultura. Segundo a ideia dominante, depois que o homem aprendeu a plantar e a domesticar animais, há cerca de 10 mil anos, teria rapidamente abandonado suas práticas alimentares anteriores, baseadas na caça, na pesca e na coleta.
“A caça e a coleta transcendem a chegada da agricultura”, afirma o principal autor do estudo, o arqueólogo Oliver Craig da Universidade de York, na Inglaterra. “Com certeza a agricultura foi uma grande transformação, mas não foi uma ‘revolução’ que se deu de forma simultânea [em grande parte do mundo] durante o Neolítico e substituiu os elementos da vida selvagem, como alguns arqueólogos gostam de dizer.”
Craig ressalta que tanto a cerâmica encontrada em zonas que na época eram costeiras quanto a de áreas mais interioranas eram usadas para cozinhar alimentos obtidos pela caça e pesca, o que reforça a sua teoria. Cerca de 28% dos potes encontrados em regiões mais afastadas do litoral apresentou resíduos de animais aquáticos.
A identificação do tipo de comida preparada pelos homens da época foi possível pela análise da estrutura molecular da gordura dos alimentos que ficou impregnada na cerâmica. Mesmo que os potes tenham sido recuperados debaixo da água, foi possível determinar a origem do alimento, pois a gordura pode ficar preservada na argila por séculos.
No entanto, os pesquisadores não sabem dizer quem eram os donos dos utensílios encontrados. Tanto podiam ser agricultores do interior que migraram para as regiões mais próximas à costa e começaram a explorar os recursos marinhos, quanto ser moradores do litoral adeptos da pesca, mas que, pelo contato com produtores, começaram a domesticar plantas e animais.
Escavação submersa
Alguns dos potes de cerâmica foram coletados debaixo d’água, no mar. Mesmo assim foi possível analisar os componentes da gordura dos alimentos consumidos há 6 mil anos. (foto: Anders Fischer)


Muitas dúvidas e uma pesquisa no Brasil

Apesar da nova visão sobre a disseminação da agricultura, existem ainda muitas dúvidas sobre como se deu esse processo em outras regiões do planeta e também muitas teorias para explicá-las.
Alguns estudiosos acreditam que a agricultura nasceu na Europa central e na Ásia em populações que não tinham a habilidade da caça e da pesca e se espalhou pelo mundo. Outros se baseiam em estudos etnográficos com populações indígenas atuais para dizer que os agricultores e os pescadores coexistiam como tribos de estilo de vida diferentes, com economia e ideologias bem distintas.
Um estudo semelhante ao de Craig, que talvez ajude a esclarecer esse processo, está em curso aqui no Brasil. Desde o início do ano, a Universidade de São Paulo (USP) e o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Universidade de York e outras instituições de pesquisa europeias, estudam as estratégias econômicas e o intercâmbio cultural entre grupos de caçadores e coletores que ocuparam a costa brasileira entre 8 mil e 10 mil anos atrás.

Esses povos foram responsáveis pela formação de sítios arqueológicos conhecidos hoje como sambaquis, montes de conchas e cerâmica encontrados em grande parte do litoral brasileiro. Agora, os pesquisadores pretendem aplicar a mesma técnica de análise química usada pela equipe de Craig para examinar as cerâmicas dos sambaquis e identificar o tipo de alimentação e organização social desses grupos.
“Com esse projeto, poderemos compreender melhor como esses humanos mantiveram uma economia relativamente estável e fortemente costeira [de pesca e coleta]”, conta um dos pesquisadores envolvidos no estudo, André Colonese, arqueólogo da Universidade de York.
“É uma questão extremamente importante, pois os restos arqueológicos dessa sociedade fornecem indícios de vida sedentária e de alta densidade demográfica, sugerindo que sociedades complexas podiam, sim, se desenvolver mesmo sem a agricultura.”


Sofia Moutinho

Ciência Hoje On-line

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