quarta-feira, 11 de abril de 2012

Pontas de um passado remoto

Projéteis de pedra do interior paulista de até 10 mil anos apresentam estilo diferente dos artefatos pré-históricos encontrados no Sul
MARCOS PIVETTA | Edição 194 - Abril de 2012
© LÉO RAMOS
Projéteis de Rio Claro (esquerda) e pontas do sul do país (direita)
As pontas líticas de flecha ou de lança oriundas da Pré-história nacional estão concentradas na porção do território brasileiro que se estende do Rio Grande do Sul até a região de Rio Claro, no interior paulista. Independentemente de seu local de origem e de terem sido confeccionados cerca de 500 anos atrás, pouco antes da chegada do conquistador europeu, ou há longínquos 10 milênios, todos os projéteis de pedra resgatados nessa vasta área costumam ser rotulados como pertencentes à tradição Umbu, uma cultura arqueológica associada a antigos caçadores-coletores. No entanto, um estudo comparativo das características morfológicas (físicas) de mais de mil pontas provenientes dos três estados do Sul e de São Paulo rechaça essa classificação, considerada simplista demais, e fornece indícios de que os projéteis encontrados no interior paulista são diferentes dos resgatados na parte mais meridional do país.
A maioria das pontas achadas nos arredores de Rio Claro, onde existe grande quantidade desses artefatos no interior paulista, tem o pedúnculo — cabo ou haste situada no lado oposto ao da superfície cortante — maior e mais afilado, com contornos similares aos da letra V, do que o das encontradas no Sul, especialmente no Rio Grande do Sul. Os projéteis da porção austral do país tendem a apresentar essa parte com um formato bifurcado, semelhante a um pequeno rabo de peixe. Em São Paulo não há pontas desse tipo. “A função das pontas em ambas as regiões era a mesma, eram uma arma de caça”, afirma a arqueóloga Mercedes Okumura, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (Mae-Usp), autora do estudo, que contou com uma bolsa de pós-doutorado do CNPq no início de suas pesquisas e hoje recebe apoio da FAPESP. “No entanto acreditamos que as formas do pedúnculo podem ser interpretadas como marcadores culturais, relacionados a grupos ou tribos distintas.”
Se o design das pontas de pedra do Sul era diferente do das de São Paulo, é possível que os habitantes das duas áreas também não fossem exatamente iguais pelo menos do ponto de vista cultural. Os artefatos dos antigos caçadores-coletores do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina até poderiam ser rotulados como exemplares da tradição Umbu, mas o mesmo não se pode dizer dos projéteis encontrados no interior paulista, segundo a arqueóloga. Eles podem ter pertencido a um grupo com hábitos e tecnologia lítica distintos dos da tradição Umbu, dominante na ponta meridional do Brasil. “As pontas são um artefato complexo, que contêm informações sobre quem as fez”, diz o arqueólogo Astolfo Araujo, também do Mae-USP, que participa dos estudos de Mercedes. “Sua construção demanda muitas etapas e um longo processo de transmissão cultural. Aprender a fazer uma ponta demora anos.”
De acordo com dados de Mercedes, o corpo das pontas do Sul e de São Paulo apresenta tamanho semelhante. Em média, tem entre 2,5 e 3 centímetros. Essa medida leva em conta apenas a parte perfurante do projétil, sem incluir as dimensões do pendúculo. A diferença mesmo entre as pontas das duas regiões aparece quando se olha a forma e as dimensões do pedúnculo. Nas do Sul, a haste que serve de base para o lado cortante do artefato tende a medir entre 0,9 e 1,1 centímetro. Nas de São Paulo, apresenta quase o dobro de tamanho médio, por volta de 1,7 centímetro — e nunca é bifurcada, quase sempre é afilada. Além de estudar pontas da coleção Plynio Ayrosa do Mae, Mercedes visitou o acervo de outras nove universidades e também de colecionadores particulares do Sul e de São Paulo durante o ano passado para realizar o trabalho.


Graduada em biologia e com experiência na análise dos traços anatômicos de crânios e ossos da Pré-história nacional, a pesquisadora adaptou métodos estatísticos, quantitativos, já comumente empregados em estudos de evolução humana, em seu trabalho com os projéteis de pedra. “Como há poucos esqueletos humanos antigos encontrados no Sul e em São Paulo, resolvi estudar arfetados formais que esses povos faziam, como as pontas de pedra”, explica Mercedes. Munida de um paquímetro, instrumento utilizado para aferir com precisão pequenas distâncias, registrou as dimensões de 1.102 pontas. Foram medidos 131 projéteis de São Paulo, 170 do Paraná, 258 de Santa Catarina e 543 do Rio Grande do Sul. Os artefatos analisados provinham de 10 zonas com sítios arqueológicos: cinco em terras gaúchas (Maquiné, Santo Antônio, Caí, Ivoti e Taquari), três catarinenses (Taió, Urussanga e Santa Rosa), uma paranaense (Reserva) e uma paulista (Rio Claro).

© ADRIANA SCHMIDT DIAS
Abrigo na região gaúcha de Caí: estado sulino concentra boa parte das pontas da tradição Umbu

Quatro medidas
Em seu primeiro trabalho com o conjunto de pontas, cujos resultados já foram apresentados em congressos e serão relatados num artigo a ser submetido a uma revista científica, a arqueóloga comparou especificamente quatro medidas: o comprimento da lâmina, o tamanho do pedúnculo, a largura do pescoço (região em que termina a parte cortante e começa o cabo) e a espessura da flecha na altura da metade de seu corpo. De posse desses dados, ela usou métodos estatísticos e programas de computador para comparar as medidas e averiguar se elas poderiam ser associadas a apenas uma mesma cultura material, à  tradição Umbu, ou a mais de uma forma de produzir projéteis. É uma estratégia semelhante à dos arqueólogos que quantificam o tamanho e a forma de um crânio para tentar inferir os traços físicos ou até a etnia do dono da antiga ossada, se era, por exemplo, um africano ou um tipo mais asiático.
Das quatro medidas escolhidas, somente o tamanho do pedúnculo apresentou discrepâncias estatisticamente relevantes. Em seis das nove áreas da Região Sul havia predominância de cabinhos bifurcados. Rio Claro, onde esses artefatos eram confeccionados a partir de silexito e em menor escala de quartzo, se mostrou um caso à parte, com suas pontas afiladas. “Não se pode dizer que os projéteis do Sul sejam todos iguais, mas eles certamente formam um grupo distinto dos de Rio Claro”, afirma Mercedes. As pontas do interior paulista costumam ser classificadas como sendo da fase Rio Claro, que, segundo alguns autores contemporâneos,  seria um sotaque regional no âmbito da língua-mãe, uma manifestação local dentro da tradição Umbu.

Mercedes e Araujo suspeitam que as pontas de São Paulo sejam mais do que isso. Elas pertenceriam a um outro idioma lítico, a uma tradição própria, tendo sido talvez lapidadas por um grupo culturalmente distinto dos antigos habitantes do Sul. Os arqueólogos da USP consideram pouco provável que apenas uma tradição cultural tenha se mantido por tanto tempo (cerca de 10 mil anos) numa faixa de terra tão longa como a que vai do Sul até o interior paulista (do Chuí até Rio Claro são 1.800 quilômetros). “Pode ter havido duas populações de caçadores-coletores distintas, uma na parte meridional do país e outra aqui”, comenta Araujo. “Ou a de São Paulo pode ser culturalmente derivada da do Sul, onde há um grande número de projéteis.”

O Projeto
Métodos estatísticos aplicados à questão da caracterização de indústrias líticas paleoíndias: estudos de caso no Sudeste e Sul do Brasil
Modalidade
Bolsa Regular de Pós-doutorado
Co­or­de­na­dor
Astolfo Araujo – MAE-USP
Investimento
R$ 153.974,88 (FAPESP)    

Para o arqueólogo Tom Miller, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que estudou as pontas líticas do interior paulista na década de 1970, a hipótese de que os projéteis de Rio Claro pertençam a uma cultura distinta da presente no Sul faz sentido. “A tentativa de classificar o material de Rio Claro como Umbu foi um engano desde o começo”, afirma Miller. “As formas distintas de pedúnculo podem representar uma diferença de estilo ou de encabamento (de colocar um cabo num artefato).” Ele no entanto acredita que as tradições culturais não podem ser definidas somente a partir do estudo de um tipo de artefato, como as pontas encontradas numa região, mas sim por meio de análises mais complexas, que levem também em conta a tecnologia e as estratégias de adaptação adotadas pelos antigos povos de uma área.

O argentino Marcelo Cardillo, arqueó-logo da Universidade de Buenos Aires, que também realiza análises semelhantes às da pesquisadora da USP com projéteis líticos da Patagônia e da região de Puna, segue uma linha de raciocínio não muito diferente da de Miller. Embora reconheça não ser um especialista em arqueologia brasileira, argumenta que a análise estatística das medições feitas nas pontas do Sul e de São Paulo tornam as conclusões de Mercedes plausíveis. “É bastante possível que o estilo ou o desenho dos projéteis apresentem variações ao longo do tempo e do espaço”, afirma Cardillo, um crítico do próprio conceito de tradição. “Isso pode ocorrer por causas muito distintas, relacionadas, por exemplo, a fatores ambientais ou a processos aleatórios, como deriva cultural, ou à disponibilidade de diferentes materiais num lugar ou época.”
Objetos cunhados pela mão do homem, a chamada cultura material, contam algo sobre quem os confeccionou, especialmente quando são o único ou o principal vestígio arqueológico associado a um povo ou sociedade desaparecida. Essa situação não ocorre apenas no Sul do país e em São Paulo.

Nos Estados Unidos, a famosa cultura Clovis, que teria surgido há cerca de 13 mil anos e foi considerada durante muito tempo como a mais antiga das Américas (hoje essa hipótese é bastante contestada), é conhecida fundamentalmente por meio das pontas de pedra resgatadas em localidades do estado do Novo México. Esqueletos humanos associados à cultura Clovis nunca foram encontrados. Nem por isso a importância dessa antiga ocupação deixou de ser reconhecida, com suas pontas alongadas, que, em alguns casos, lembram uma fina taça de champanhe de ponta-cabeça.

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