sexta-feira, 22 de junho de 2012

Os peixes das cavernas brasileiras: bagres, cascudos e cia.



Marcus Cabal

Departamento de Zoologia, Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo

Dentro do previsto pela teoria da pré-adaptação, a grande maioria dos peixes encontrados em cavernas brasileiras pertence aos grupos dos Siluriformes (bagres e cascudos) e dos Gymnotiformes (peixes elétricos, como os ituís e sarapós). Esses peixes são, em geral, noturnos ou vivem em águas turvas, orientando-se pela gustação, olfação, percepção de vibrações e, no caso dos últimos, também de campo eletromagnético. Em todas as províncias espeleológicas carbonáticas bem estudadas foram registradas populações troglófilas e troglóbias de bagres. Peixes de escamas (Characiformes e outros grupos menores) são mais raros, em sua maioria trogloxenos ou acidentais.

O Brasil destaca-se mundialmente pela riqueza em peixes subterrâneos e também pelo número de espécies troglomórficas. Há pelo menos 17 espécies subterrâneas troglóbias conhecidas para o Brasil (ver Tabela 1), incluindo habitantes de riachos em cavernas e do lençol freático em áreas cársticas (acessível através de cavernas ou não), assim como no meio intersticial na bacia do Amazonas (Phreatobius cisternarum). Esses números certamente aumentarão no futuro, quando tais habitats forem melhor estudados. Note-se que a riqueza em peixes troglomórficos é característica de regiões tropicais; na Europa, por exemplo, não foi encontrada nenhuma espécie de peixe cego.

Os peixes troglóbios estão entre os organismos cavernícolas que mais têm despertado a atenção e o interesse tanto de pesquisadores como do público em geral. O primeiro troglóbio brasileiro conhecido foi o bagre cego do Alto Ribeira, Pimelodella kronei. Este animal foi descoberto por R. Krone (o pai da espeleologia paulista) no fim do século passado e descrito, em 1907, pelo ictiólogo Miranda Ribeiro como Typhlobagrus kroneiPimelodella kronei é uma das espécies cavernícolas brasileiras mais bem estudadas até o momento. Na década de 40, foi objeto da Tese de Doutorado do conhecido geneticista C. Pavan, a qual constituiu o primeiro estudo detalhado sobre um cavernícola brasileiro. Esta espécie voltou a ser pesquisada a partir da década de 80 por E. Trajano e colaboradores, e atualmente há um grande volume de informações acerca de sua ecologia, comportamento e morfologia. [mudanças no nome das espécies são relativamente comuns em biologia, devendo-se ao progresso natural dos estudos de sistemática - ciência que estuda a evolução e as relações de parentesco entre as espécies, classificando-as de acordo com estas relações].

Um dos fatores que muito contribuiu para se compreender a evolução dos bagres cegos do Alto Ribeira é a ocorrência, na mesma área, de um parente próximo com olhos e pigmentação normais, o mandi Pimelodella transitoria. Este bagre é encontrado não só em rios epígeos como também em cavernas habitadas por P. kronei. É provável que, há milhares de anos, populações troglófilas de P. transitoria tenham ficado isoladas em poças dentro das cavernas durante períodos secos (que, no Vale do Ribeira, ocorreriam principalmente durante os períodos glaciais), quando vários rios epígeos secaram. Estas populações isoladas começaram a se modificar como resposta às condições especiais do meio subterrâneo (ausência de luz, escassez de alimentos, ausência de predadores), perdendo os olhos e parte da pigmentação e mudando seu comportamento, de modo a tornar-se uma outra espécie. Devido a estas modificações, mesmo depois que a região voltou a tornar-se úmida (o que, em boa parte da América do Sul, ocorreria nos períodos interglaciais, como é o caso da época presente), os bagres cegos já não podiam mais viver fora das cavernas. Por outro lado, P. transitoria, que sobreviveu durante os períodos secos nos rios maiores, longe das cavernas, pode voltar à região assim que a drenagem epígea foi restabelecida na época úmida.


Tabela 1. Espécies de peixes troglóbios registradas para o Brasil, incluindo localidades (municípios, áreas cársticas ou regiões) e tipos de habitat.
Ancistrus formoso Sabino & Trajano,1998
Ancistrus formoso Sabino & Trajano,1998
Táxon Localidade Habitat
CHARACIFORMES

Stygichthys typhlops Jaíba, MG Meio freático
GYMNOTIFORMES

Eigenmannia vicentespelaea Triques,1996 São Domingos, GO Cavernas (riachos)
SILURIFORMES

Loricariidae

Ancistrus cryptophthalmus Reis, 1987 São Domingos, GO Riachos (nível de base)

Bonito, MS Caverna inundada
Trichomycteridae

Trichomycterus itacarambiensis Trajano & Pinna, 1997 Itacarambi, MG Riacho (nível de base)
Trichomycterus sp.1 Bonito, MS Cavernas inundadas
Trichomycterus sp. 2 Serra do Ramalho, BA Riachos (nível de base)
Ituglanis passensis Fernández & Bichuette, 2002 São Domingos, GO Riacho (nível de base)
Ituglanis (três spp. em fase de descrição) São Domingos, GO Tributários vadosos
Heptapteridae

Pimelodella kronei (Ribeiro, 1907) Alto Ribeira, SP Riachos (nível de base)
Pimelodella sp. (em fase de descrição) São Domingos, GO Tributário vadoso
Rhamdia sp. Serra do Ramalho, BA Riachos (nível de base)
Taunayia sp. Campo Formoso, BA z. freática sup.(caverna)
Gênero novo Chapada Diamantina, BA z. freática sup.(cavernas)
Phreatobius cisternarum Goeldi, 1904 Delta do Amazonas Lençol freático

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