segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Era do gelo e da floresta

Pesquisa contradiz a hipótese de que as florestas tropicais tenham se reduzido e fragmentado durante a última era glacial. Segundo o estudo, possivelmente houve uma expansão da mata atlântica nesse período, aproveitando a retração dos oceanos e a consequente exposição da plataforma continental brasileira. 
 
Por: Catarina Chagas
Publicado em 11/01/2016 | Atualizado em 11/01/2016
Era do gelo e da floresta
As florestas tropicais estão entre as áreas de maior biodiversidade do mundo. Até agora, acreditava-se que a razão para isso teria sido a redução das áreas florestais durante o último período glacial. (foto: Leonardo Merçon/Instituto Últimos Refúgios) 
 
Talvez seja o cinema: confesso que o famoso filme de animação da Fox teve forte influência sobre a imagem mental que faço da era do gelo, com aquelas enormes áreas esbranquiçadas, poucas espécies zanzando solitárias por aí e uma realidade tão distante quanto possível das florestas tropicais como a Amazônia ou a mata atlântica. Mas um trabalho brasileiro publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) desta semana veio para virar meus devaneios glaciais do avesso. Segundo o artigo, há cerca de 21 mil anos, nossa mata atlântica se expandiu, ocupando uma área maior do que aquela que lhe costumamos atribuir. Os resultados contrariam o que até agora se dava como certo na história das florestas tropicais.

Desde 1969, a teoria mais aceita pela comunidade científica para explicar a enorme biodiversidade das florestas tropicais é a “hipótese dos refúgios florestais”, publicada pelo geólogo alemão Jurgen Haffer na prestigiosa revista Science em julho daquele ano. Segundo o trabalho, as florestas da América do Sul, durante os períodos glaciais, teriam se retraído e fragmentado, criando “refúgios ecológicos” isolados – isto é, cercados de campos abertos e sem comunicação com as outras áreas de floresta – nos quais as espécies haveriam evoluído de forma independente, gerando a enorme diversidade de animais e plantas que vemos hoje.

Desde 1969, a teoria mais aceita pela comunidade científica para explicar a enorme biodiversidade das florestas tropicais é a “hipótese dos refúgios florestais”
Para elaborar sua hipótese, Haffer se baseou em estudos da distribuição geográfica de aves amazônicas, mas a teoria foi logo aceita como verdadeira também para outros grupos de plantas e animais e outras florestas tropicais. Ao tentar replicar o estudo com espécies de pequenos mamíferos da mata atlântica, no entanto, uma equipe da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) surpreendeu-se com o resultado.
“Nosso objetivo era testar se espécies de mamíferos que dependem de floresta, ou seja, que não ocorrem em áreas abertas e, portanto, sofrem com a fragmentação atual da mata atlântica (causada pelo homem) teriam também sofrido reduções populacionais no último período glacial em função da suposta fragmentação (causada pelo clima) apontada pela hipótese dos refúgios”, conta o biólogo Yuri Leite, da Ufes, que coordenou a pesquisa. “Ou seja, a hipótese dos refúgios era o ponto de partida do nosso trabalho, assumida como verdadeira. No entanto, os dados obtidos não mostraram reduções nas populações de mamíferos de floresta durante o período glacial, mas sim expansões”.

Nossa Atlântida particular

Pesquisa científica é assim: por vezes, o resultado obtido é exatamente o oposto do que se esperava – o que, neste caso, tornou as coisas ainda mais interessantes. Instigados pela sugestão de que a mata atlântica teria ocupado, no último período glacial, uma área ainda maior (estamos comparando, vale lembrar, com a área que atribuímos à mata atlântica antes da devastação do bioma pelo homem nos últimos séculos), os cientistas começaram a buscar uma explicação para isso.
Litoral do Espírito Santo
O estudo sugere que, durante o período glacial, a retração dos oceanos fez emergir a placa continental brasileira, que se estende a leste do nosso litoral. Dessa maneira, a mata atlântica ocuparia um espaço maior do que costumamos pensar. (foto: Leonardo Merçon/Instituto Últimos Refúgios)
Segundo Leite, vários outros pesquisadores já haviam mostrado que, durante a glaciação, os locais onde há florestas tropicais ficaram mais frios, mas não necessariamente muito mais secos, de modo que as florestas poderiam ter resistido ao período a partir de uma mudança na sua composição de espécies vegetais. Mesmo assim, daí a imaginar uma expansão das áreas verdes haveria um grande salto. “Nossa explicação para isso é o aumento da área disponível em função do recuo do nível do mar, que expôs a plataforma continental”, esclarece o pesquisador.

Hoje submersa, a enorme plataforma continental sul-americana projetava-se, naquela época, em direção leste ao longo de nosso litoral, aumentando a área disponível para a expansão da floresta. Com o fim do período glacial e novo aumento no nível do mar, esta parte da mata atlântica teria se afundado, perdida para sempre em meio às águas. A ideia inspirou o nome simpático que os pesquisadores atribuíram a esta nova hipótese: Mata Atlândida, em referência ao lendário continente imaginado por Platão.

Estudar o presente para entender o passado

Para chegar a essas conclusões, a equipe combinou duas metodologias complementares: os modelos de distribuição geográfica da floresta e de algumas espécies animais e as simulações baseadas em sequências de DNA desses bichos.

O estudo da distribuição atual de animais e projeção de sua distribuição na pré-história consiste em selecionar uma espécie e mapear os pontos geográficos exatos onde ela ocorre hoje, identificando para cada um deles as condições climáticas, isto é, fatores como temperatura, índices de precipitação etc. Em seguida, um programa de computador cria um modelo matemático com as condições climáticas que permitem a existência dessa espécie. Com a ajuda de bancos de dados sobre as condições paleoclimáticas, é possível identificar onde, no passado, aquele animal poderia ter encontrado condições semelhantes para existir.

Para estudar o passado da mata atlântica, a equipe da Ufes selecionou espécies de pequenos mamíferos, como cuícas e ratos-do-mato.
 
Já as análises genéticas dos animais atuais partem do princípio de que as sequências de DNA dos indivíduos vivos hoje são um produto da história evolutiva de sua espécie. Por exemplo, se uma população animal passou por um gargalo evolutivo em dado momento da pré-história – isto é, um período de redução drástica –, no presente ela terá menor variabilidade genética do que outras espécies que não enfrentaram esse processo, pois seus representantes serão todos descendentes dos poucos sobreviventes do gargalo. Assim, é possível testar, a partir de indivíduos atuais, se as sequências de DNA são ou não compatíveis com os cenários que imaginamos para o passado das espécies, com períodos de redução ou expansão.

Para estudar o passado da mata atlântica, a equipe da Ufes selecionou espécies de pequenos mamíferos, como cuícas e ratos-do-mato. “Selecionamos esses animais por serem abundantes ao longo da mata atlântica, possibilitando amostras grandes e que permitem testes estatísticos mais robustos”, justifica Leite. “Além disso, as espécies que escolhemos dependem de floresta para viver, não ocorrendo em outros tipos de ambientes”. O estudo genético mostrou que as espécies estudadas passaram por uma ampliação de suas populações durante o período glacial, sugerindo que estavam distribuídas em uma área maior que a esperada. No futuro, para comprovar a nova hipótese de expansão da floresta durante a era glacial, os cientistas pretendem fazer o mesmo com outras espécies de animais e plantas.

Catarina Chagas
Instituto Ciência Hoje/ RJ

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