domingo, 30 de outubro de 2016

América aquática

Degradação de hábitats pode ameaçar estabilidade da maior diversidade de peixes do mundo
ANDRÉ JULIÃO | ED. 248 | OUTUBRO 2016
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© FOTOS: LÉO RAMOS , FEITAS NO AQUÁRIO DE SÃO PAULO
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A América do Sul tem uma diversidade de peixes ainda maior do que se pensava. Enquanto há menos de 20 anos era considerada exagerada a estimativa de 8 mil espécies, as mais de 100 descrições de novas espécies por ano na última década permitem agora estimar a ictiofauna do continente em cerca de 9 mil espécies. 

Dessas, um número relativamente baixo, entre 4 e 10%, está ameaçado de extinção, enquanto na América do Norte e Europa as taxas são de 27 e 37%, respectivamente. Aqui, porém, o avanço do desmatamento, da urbanização, do barramento de rios, entre outros fatores, ameaça esse relativo conforto. É o que mostra o artigo do biólogo Roberto Reis, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), publicado em uma edição especial do Journal of Fish Biology lançada em julho, que traz dados inéditos acerca da conservação de hábitats aquáticos: não só de rios e do mar, mas também de manguezais, estuários, lagoas costeiras, lagos e riachos.

Mais sensíveis a alterações provocadas pelo homem do que grandes corpos d’água, os estuários são importantes locais de reprodução e berçário de peixes que vivem nos rios ou no mar. Além disso, lagoas e riachos abrigam espécies endêmicas que, por não existirem em outro lugar, podem ser extintas quando esses hábitats são alterados. “Especialmente na costa do Nordeste e Sudeste do Brasil, muitas lagoas nem sequer mapeadas se converteram em brejos ou secaram completamente por conta da drenagem e do assoreamento, tornando impossível saber se havia espécies endêmicas”, diz a bióloga Ana Cristina Petry, do Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em colaboração com uma equipe de pesquisadores do Piauí a Mar del Plata, na Argentina, Ana Cristina compilou dados de 103 lagoas na costa atlântica do continente, que somaram cerca de 5.400 quilômetros quadrados (km2) de superfície e um número variável de espécies: de apenas uma até 76. Uma informação alarmante é que cerca de 80% das lagoas investigadas estão fora de unidades de conservação. “As lagoas costeiras prestam serviços ecossistêmicos importantes como locais de reprodução e crescimento não só para peixes marinhos e de água doce, como para insetos, anfíbios, répteis e aves, além de serem locais de pesca”, explica. Várias das lagoas estudadas ao longo de décadas sofreram profundas modificações em área e diversidade de espécies.

Uma ameaça é a introdução de espécies exóticas, que competem por alimento e áreas de reprodução com as nativas e causam desequilíbrio ao sistema. Nas pequenas lagoas costeiras nordestinas, com menos de 1 km2 de área, essas forasteiras representam 50% das espécies.

Outros ambientes aquáticos sensíveis à ação humana são os riachos. Com dimensões menores que os rios, eles estão normalmente próximos à floresta, e os organismos que vivem em suas águas dependem do alimento que ela fornece na forma de folhas, frutos e insetos. Alguns riachos formam microbacias independentes das grandes bacias hidrográficas e são ainda mais ameaçados pelo desmatamento e pela poluição. É o caso do rio Mato Grosso, que apesar do nome é um riacho e fica no Rio de Janeiro. A bióloga Rosana Mazzoni, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), analisou a fauna de três diferentes trechos desse riacho: um bem preservado, com águas transparentes e sem penetração de luz por conta da copa fechada das árvores, um segundo com a floresta parcialmente removida e o terceiro totalmente desmatado, com bastante incidência de luz e águas turvas devido ao excesso de algas e à erosão das margens.
© FOTOS: LÉO RAMOS , FEITAS NO AQUÁRIO DE SÃO PAULO
Pirarucu: pesca controlada na Amazônia, embora não se saiba quantas espécies estão ameaçadas
Pirarucu: pesca controlada na Amazônia, embora não se saiba quantas espécies estão ameaçadas

Impacto
 
A bióloga e seus colaboradores detectaram diferenças significativas entre os locais na densidade de peixes e seu padrão alimentar. Enquanto cinco espécies de peixes estão presentes em cada um dos três locais, a área sem floresta favoreceu a ocorrência de animais tolerantes a sedimentos, no caso o cascudinho-pintado (Hypostomus punctatus) e o limpa-vidro (Parotocinclus maculicauda), duas espécies de cascudo. Além disso, enquanto na área preservada a principal fonte de alimento dos peixes eram invertebrados como larvas, nas partes desmatadas essa dieta era substituída por detritos, matéria orgânica e algas – que se tornam abundantes na ausência de cobertura florestal, devido à incidência maior de luz para fotossíntese. “Pelo menos nesse caso a remoção da floresta não eliminou espécies, que conseguiram se adaptar”, diz Rosana. “No entanto, a densidade de algumas varia bastante de acordo com as condições locais.” Da mesma forma que os cascudos estão presentes em maior quantidade em áreas degradadas, os lambaris Astyanax taeniatus e Characidium vidali, abundantes na área preservada, vão se tornando mais raros à medida que aumenta o desmatamento.

O biólogo Mário Barletta, editor da edição especial do Journal of Fish Biology e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), chama a atenção para a necessidade de embasar as políticas de conservação em dados científicos, algo que nem sempre é feito. “O desenvolvimento econômico é necessário, mas ele sempre deve levar em conta o impacto que causa no ambiente”, recomenda. Barletta se refere principalmente às grandes obras de infraestrutura, cuja realização nem sempre é precedida de pesquisa. Em um dos casos em que isso ocorreu, ele conseguiu fazer o levantamento da fauna de uma área de estuário antes, durante e depois de uma dragagem para a construção de um terminal portuário no complexo estuarino da baía de Paranaguá, no Paraná. Transição entre rio e mar, o gradiente de salinidade dos estuários favorece peixes e crustáceos.
A dragagem, retirada de sedimentos do fundo, ocorre em áreas portuárias para aumentar a profundidade e permitir que grandes navios possam atracar. “O acúmulo de sedimentos no fundo ocorre, em parte, porque as margens dos rios foram desmatadas. A floresta faz o trabalho de segurar esse material e não deixar que ele vá para a água”, explica Barletta. Sem vegetação ao redor, algum tempo depois de feita a dragagem, ela pode voltar a ser necessária, pois o sedimento tende a acumular-se no leito outra vez.

No estudo do estuário da baía de Paranaguá, importante área de pesca artesanal e local de reprodução e berçário de peixes marinhos e estuarinos, espécies importantes economicamente como a betara (Menticirrhus americanus) e a pescada-branca (Cynoscion leiarchus) praticamente desapareceram durante e logo depois da obra. Ao mesmo tempo, atraídos pelos animais mortos, os bagres Cathorops spixii e Aspistor luniscutis aumentaram em até 10 vezes em densidade durante a obra. Barletta e outros pesquisadores envolvidos na pesquisa concluíram, portanto, que as dragagens devem ser feitas entre o final da estação chuvosa e início da seca, quando não há atividade reprodutiva na área. “Graças ao estudo prévio, determinamos a melhor época para realizar a obra e reduzir o impacto”, conta.
© FOTOS: LÉO RAMOS , FEITAS NO AQUÁRIO DE SÃO PAULO
Tambaqui: diversidade genética pode ser alterada por interferências na Bacia Amazônica
Tambaqui: diversidade genética pode ser alterada por interferências na Bacia Amazônica

Plástico
 
Mesmo quando a época de reprodução dos peixes é respeitada, uma ameaça crescente afeta o início da vida desses animais: a presença de plástico nos corpos d’água. Em outro estudo publicado no mesmo volume, Barletta procurava determinar as espécies presentes nos manguezais do estuário do rio Goiana, na costa de Pernambuco, de acordo com as fases da lua. Segundo o biólogo, estudos de populações de peixes normalmente levam em conta escalas de tempo de meses a anos, raramente ciclos lunares ou períodos de dias e semanas. No entanto, é nesses intervalos curtos que se percebe uma relação mais direta entre o ambiente e seus recursos (alimentação, abrigo, proteção de predadores e outros comportamentos).
Além de quantificar as espécies, em todas as áreas analisadas foram encontrados micro e macroplásticos (pedaços menores e maiores do que 5 milímetros, respectivamente), em densidades similares às dos ovos e larvas da terceira espécie mais abundante, a sardinha (Rhinosardinia bahiensis). Na lua minguante, quando há menos zooplâncton (larvas e animais muito pequenos), é justamente o período em que se encontra mais microplástico, resultado da degradação de garrafas pet, sacolas, cordas e redes de pesca pelo sol e pela água.
A presença
 desse lixo nos manguezais é especialmente preocupante, pois nesses ambientes larvas, filhotes de peixe e de outros animais aquáticos vivem até chegar numa idade segura para migrar para um rio, estuário ou mar. “Como o microplástico divide o hábitat com os peixes e as larvas, ele pode ser ingerido e entrar na cadeia trófica, junto com os poluentes contidos nele como cádmio, cobre e zinco”, explica Barletta. Isso significa que os poluentes não só ficarão nos seres que comerem o microplástico como passarão para os predadores destes e, sucessivamente, para os que se alimentarem deles, chegando aos seres humanos.
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Pirarara: dieta inclui outros peixes, aumentando o risco de contaminação por mercúrio
Pirarara: dieta inclui outros peixes, aumentando o risco de contaminação por mercúrio

Pesca
 
Por essa razão, projetos de conservação precisam levar em conta o fator humano. O pirarucu (Arapaima sp.), por exemplo, apesar de ter a pesca proibida no Amazonas, é largamente comercializado naquele estado. Uma solução possível é o chamado manejo comunitário. O biólogo Thiago Petersen, atualmente doutorando no Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), acompanhou de perto a recuperação da população de pirarucus da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, um dos poucos lugares onde o peixe, que vive em lagos, pode ser pescado no Amazonas.

“No manejo é feita a contagem da população de pirarucus de cada lago, em seguida cria-se um plano de gestão com a comunidade, no qual se definem quais lagos terão pesca para comercialização, para consumo da comunidade e em quais não se pode pescar”, diz Petersen. Em locais onde esse modelo de gestão existe há mais tempo, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, também no Amazonas, é permitida a retirada de até 30% da população por ano. Em áreas que estão começando a fazer uso do manejo, como a Piagaçu-Purus, é estipulado um limite mais conservador, entre 8 e 10%. O esforço deu resultado nesse caso: de 2008, quando o manejo foi implementado, até 2014, o aumento das populações de peixe variou de 62 a 99%.

Apesar de algumas tentativas bem-sucedidas de preservação, Leandro Castello, coautor do artigo sobre pirarucus e professor do Virginia Polytechnic Institute and State University, nos Estados Unidos, alerta que faltam informações para saber com mais precisão quantas espécies estão ameaçadas. “Na Amazônia, por exemplo, a degradação desses ecossistemas é relativamente baixa, mas isso está mudando rapidamente e é uma questão de tempo até que o panorama seja completamente alterado”, afirma. Um dos fatores que afetam diretamente os peixes amazônicos são as hidrelétricas. “Eles até passam pelas barragens para pôr os ovos na parte alta do rio”, conta Roberto Reis. “Quando os ovos estão descendo o rio e chegam a um lago de hidrelétrica, porém, acaba a correnteza e eles afundam para a parte sem oxigênio e morrem. Os que restam acabam sendo comidos pelos milhões de piabas que habitam os reservatórios.”

Artigos científicos
 
REIS, R. E. et al. Fish biodiversity and conservation in South America. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 1-16. jul. 2016.

LOBÓN-CERVIÁ, J. et al. Effects of riparian forest removal on the trophic dynamics of a Neotropical stream fish assemblage. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 50-64. jul. 2016.

BARLETTA, M. et al. Effects of dredging operations on the demersal fish fauna of a South American tropical–subtropical transition estuary. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 890-920. jul. 2016.

LIMA, A. R. A. et al. Changes in the composition of ichthyoplankton assemblage and plastic debris in mangrove creeks relative to moon phases. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 619-40. jul. 2016.

PETERSEN, T. A. et al. Recovery of Arapaima sp. populations by community-based management in floodplains of the Purus River, Amazon. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 241-48. jul. 2016.

PETRY, A. C. et al. Fish composition and species richness in eastern South American coastal lagoons: Additional support for the freshwater ecoregions of the world. Journal of Fish Biology. v. 89, p. 280-314. jul. 2016.

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