domingo, 30 de outubro de 2016

As raposas da América

Desmatamento promove encontro entre espécies distintas e propicia surgimento de híbridos
MARIA GUIMARÃES | ED. 247 | SETEMBRO 2016
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© CINTIA POSSAS
...e raposinha-do-cerrado procriam no estado de São Paulo
Raposinha-do-cerrado (foto) procria com graxaim-do-campo no estado de São Paulo.

Com espécies distribuídas em todos os continentes, exceto o antártico, as raposas não gozam de muita popularidade no Brasil. Não que tenham má fama: na verdade sua existência quase passa despercebida, apesar de serem vítimas frequentes de atropelamento em estradas. Mesmo os biólogos não costumam lhes dar atenção, mas o grupo do geneticista Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), começou a reconstruir a história da diversificação desses animais na América do Sul e indica como alterações no ambiente podem afetar geneticamente essas espécies – embora seja incerto que isso cause problemas aos animais.

De acordo com artigo publicado na edição de julho/setembro da revista Genetics and Molecular Biology, a raposinha-do-cerrado (Lycalopex vetulus) foi a primeira espécie desse grupo de canídeos a divergir evolutivamente das linhagens norte-americanas, entre 1 milhão e 1,3 milhão de anos atrás, depois que um ancestral comum atravessou o istmo do Panamá rumo ao sul. Entre as oito espécies de raposas sul-americanas, essa é a única restrita ao Brasil, habitante de toda a extensão do Cerrado e por isso afeita a paisagens abertas.

As análises realizadas pela geneticista Ligia Tchaicka como parte do doutorado orientado por Thales de Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e coorientado por Eizirik, mostram que o surgimento e a diversificação do gênero Lycalopex aconteceram já na América do Sul.
A conclusão se encaixa na hipótese desenvolvida por outros grupos de que uma elevação no nível do mar teria separado a América do Sul em duas partes durante o Pleistoceno. A divisão teria deixado um grupo no leste brasileiro, que deu origem à raposinha-do-cerrado, e outro ocidental, que se expandiu até a região dos Andes e ali se diversificou, dando origem às outras espécies.

Híbridos
 
Ao comparar o material genético de cinco espécies de raposas da América do Sul, Ligia, hoje professora na Universidade Estadual do Maranhão (Uema), notou outro enigma: alguns indivíduos que haviam sido classificados como graxaim-do-campo (L. gymnocercus) – típico da região Sul brasileira, além de Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia – tinham o DNA mitocondrial (recebido apenas da mãe) mais aparentado à raposa-cinzenta-argentina, L. griseus, amplamente distribuída no Chile e na Argentina – nas duas vertentes dos Andes, portanto. Uma explicação possível seria que essas raposas fossem na verdade híbridas, uma conclusão surpreendente já que, apesar de haver sobreposição entre as distribuições das duas espécies, não há registros de locais onde ambas existam.

Estudos mais recentes, ainda não publicados, apontaram outro foco de hibridização, desta vez entre o graxaim-do-campo e a raposinha-do-cerrado, em São Paulo. “Com o desaparecimento gradual da Mata Atlântica, a raposa vai ocupando áreas abertas e expandindo sua distribuição para fora do domínio do Cerrado”, explica o geneticista. “Já havíamos imaginado a possibilidade de que ela poderia acabar se encontrando com o graxaim-do-campo.” A formação de híbridos não é novidade para ele, que já encontrou resultados semelhantes em gatos-do-mato (ver Pesquisa FAPESP nº 159).
É exatamente o que vem mostrando o trabalho do biólogo Fabricio Garcez durante o mestrado e agora o doutorado, em andamento no laboratório de Eizirik, na PUC-RS. Alguns animais com aparência de L. vetulus têm o DNA mitocondrial de L. gymnocercus, uma mistura corroborada por marcadores no material genético nuclear, que cada animal recebe tanto do pai quanto da mãe. Garcez agora está fazendo análises genômicas, com resultados preliminares que indicam que todas as raposas paulistas amostradas até o momento combinam material genético das duas espécies. Os resultados também sugerem que ao menos alguns desses animais já não eram da primeira geração mestiça. Sinal de que os híbridos, nesse caso, são ao menos parcialmente férteis.

“Estamos vendo que o DNA de L. gymnocercus está invadindo mais as populações de L. vetulus do que o contrário”, conta o professor da PUC. É uma hibridação muito provavelmente causada pelas alterações resultantes da ocupação humana, o que lhe causa preocupação. “Ainda não sabemos se esse processo causará mudanças genéticas profundas que possam afetar a existência da espécie”, reflete Eizirik, que apresentou essas descobertas no simpósio sobre os 20 anos da genética da conservação no Brasil no congresso da Sociedade Brasileira de Genética ocorrido este mês em Caxambu, Minas Gerais.

Para ampliar os estudos e aprofundar o entendimento genético do que está acontecendo com essas raposas, Eizirik defende que o ideal seria a formação de uma rede – tanto de pesquisadores como de cidadãos não ligados à esfera acadêmica – que pudesse coletar e compartilhar informações, fotografias e até amostras de material biológico adquiridas de animais atropelados (os doadores involuntários mais frequentes de material genético), assim como dados obtidos em expedições de campo e animais mantidos em cativeiro.
Artigo científico
TCHAICKA, L. et al. Molecular assessment of the phylogeny and biogeography of a recently diversified endemic group of South American canids (Mammalia: Carnivora: Canidae). Genetics and Molecular Biology. v. 39, n. 3, p. 442-51. jul./set. 2016.

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