segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Por que é tão difícil definir o que é vida e o que são seres 'vivos'?

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    O Zika vírus, relacionado a casos de microcefalia em bebês
    O Zika vírus, relacionado a casos de microcefalia em bebês
A maioria das pessoas provavelmente não precisa pensar muito para distinguir seres vivos dos "não-vivos". Em tese, é fácil: um humano está vivo, uma rocha, não. A tarefa pode parecer simples, mas é bem mais complexa para cientistas e filósofos, que há milênios ponderam sobre o que faz uma coisa "estar viva".

Grandes intelectuais, como o grego Aristóteles e o cosmólogo americano Carl Sagan, debruçaram-se sobre esse problema, em milênios diferentes, e até hoje não há uma definição que agrade a todos.
Literalmente falando, ainda não temos um significado para vida, e a definição ficou ainda mais difícil nos últimos cem anos. Até o século 19, prevalecia a noção de que a vida era especial graças à presença de uma alma intangível, ou uma "fagulha vital".

Essa definição deu lugar a abordagens mais científicas. A NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, por exemplo, define vida como "um sistema químico autossustentável capaz de evolução Darwiniana".

Essa é apenas uma de pelo menos cem definições já propostas para tentar se chegar a um conceito simples que englobe todas as formas de vida. Todas as sugestões focam em algumas atribuições comuns como replicação e metabolismo.

A falta de consenso para se chegar a uma definição reflete a divergência de ideias entre cientistas sobre o que é necessário para se estabelecer que algo "está vivo". Enquanto um químico poderia dizer que a vida se resume a algumas moléculas, um físico talvez considerasse importante incluir na discussão a questão da termodinâmica.

Para se ter uma ideia de por que é tão difícil definir vida, apresentamos um resumo sobre o que pensam alguns dos cientistas que hoje trabalham nessa fronteira que separa coisas "vivas" do restante - e que tenta chegar a um conceito e a um consenso sobre o termo.

Vírus

Nas aulas de biologia, crianças memorizam sete processos necessários para que haja vida: movimento, respiração, sensibilidade, crescimento, reprodução, excreção e nutrição. Mas os processos estão presentes em muitas coisas que nós não classificaríamos como "vivas".
Segundo essa definição, por exemplo, alguns cristais, proteínas infecciosas chamadas de príons e até certos programas de computador estariam "vivos". Nesse sentido, os vírus são um exemplo clássico da dificuldade de estabelecer algo como "vivo" ou "não vivo".

"Eles não são células, não têm metabolismo e são inertes desde que não encontrem uma célula", diz Patrick Forterre, microbiologista do Instituto Pasteur, em Paris, na França.
Muitos cientistas chegaram à conclusão de que os vírus não são vivos. Forterre pensa diferente, mas o cientista relativiza e admite que tudo depende de onde você decide colocar o ponto de corte.
Faltam aos vírus quase todos os atributos que os qualificariam como seres vivos. No entanto, eles possuem informações codificadas em DNA ou RNA (Ácido Desoxirribonucleico e Ácido Ribonucleico).

O DNA é o material genético de todos os organismos celulares e de grande parte dos vírus. O RNA é o material genético de alguns tipos de vírus e, nos organismos celulares, a molécula que dirige as fases da síntese de proteínas. Juntos, DNA e RNA transportam a informação necessária para dirigir a síntese de proteínas e sua replicação.

Essas estruturas, compartilhadas por todas as criaturas vivas do planeta, permitem que os vírus evoluam e se repliquem --mesmo que, para isso, precisem "sequestrar" a maquinaria de células vivas.
O fato de que os vírus, assim como todas as formas de vida conhecidas, carregam DNA ou RNA, levou alguns cientistas a incluí-los na categoria dos "vivos". Outros sugerem até que os vírus podem trazer pistas que nos ajudariam a compreender como a vida começou.

Nesse caso, a definição de vida deixa de ser um conceito em branco e preto e ganha formas e contornos mais nebulosos. Adotando essa linha de pensamento, alguns cientistas caracterizam os vírus como coisas que existem na "fronteira entre a química e a vida".

Replicação Imperfeita

Os polímeros também poderiam ajudar a identificar se algo é vivo ou não. Eles são materiais que apresentam ligações em cadeia entre átomos de carbono com outros elementos químicos.
A partir desses polímeros --ácidos nucleicos que constituem o DNA, proteínas e polissacarídeos-- é construída praticamente toda a vida, em sua diversidade. "A vida como a conhecemos se baseia em polímeros à base de carbono", disse Jeffrey Bada, do Instituto Scripps de Oceanografia em San Diego, na Califórnia, Estados Unidos.

Bada foi aluno do bioquímico Stanley Miller, um dos cientistas responsáveis pela Experiência Miller-Urrey, que, na década de 50, foi um dos primeiros a explorar a ideia de que a vida surgiria de substâncias químicas não vivas e que é clássica sobre a origem da vida.

Bada recorre ao experimento para demonstrar que, ao simular as condições atmosféricas dos primórdios da formação da Terra, vários compostos orgânicos eram formados espontaneamente.
Mais tarde, ele ainda refez o experimento, provando que uma variedade ainda maior de moléculas biologicamente relevantes é formada quando se lança eletricidade sobre uma mistura de substâncias químicas que, acredita-se, estavam presentes nas origens da Terra.
Mas essas substâncias químicas não estão vivas. Então, o que é necessário para que elas ganhem vida?
A resposta de Bada é surpreendente: "replicação imperfeita de moléculas informacionais teria marcado a origem da vida e da evolução, e assim, a transição da química não viva para a bioquímica".

O início da replicação, e mais especificamente, a replicação com alguns erros, leva à criação de "filhotes" com níveis diferentes de habilidade. Esses filhotes moleculares podem então competir uns com os outros pela sobrevivência. "Isso é, basicamente, a evolução Darwiniana em escala molecular", disse Bada.

Vida Desconhecida

Será que nós perceberíamos a presença de vida em Marte? Tentar adivinhar como seria a vida alienígena é ainda mais complicado. Pesquisadores como Charles Cockell e outros do Centro Britânico de Astrobiologia da Universidade de Edimburgo, na Escócia, usam microrganismos capazes de sobreviver em ambientes extremos como modelos para a vida extraterrestre.
A argumentação é de que a vida em outros planetas pode existir em condições bastante diferentes, mas provavelmente mantenha muitas das características da vida que nós reconheceríamos na Terra. "[Mas] temos de manter a mente aberta para a possibilidade de encontrarmos algo que não se enquadre nessa definição", disse Cockell.

Historicamente, a tentativa de usar apenas nosso conhecimento sobre a vida terrestre para identificar vida alienígena trouxe resultados confusos. A Nasa, por exemplo, achava que tinha uma boa definição para vida quando, em 1976, a nave espacial Vicking 1 conseguiu pousar em Marte, equipada com três equipamentos para "testar a vida".

Um teste em particular pareceu indicar que havia vida em Marte: os índices de dióxido de carbono no solo do planeta eram altos, um indício de que havia micróbios vivendo e respirando na superfície do Planeta Vermelho.
Na verdade, porém, os índices de dióxido de carbono observados pelos pesquisadores são, hoje, quase universalmente atribuídos a um fenômeno bem menos interessante: as oxidações não-biológicas.

Os astrobiólogos estão usando essas experiências como aprendizado e apurando os critérios que usam para procurar por alienígenas --uma busca que ainda não obteve êxito e que sugere que os astrobiólogos não devam estreitar demais esses mesmos critérios.
Para Sagan, a visão "carbonocêntrica" da vida alienígena --que ele chamava de "chovinismo do carbono" pode atrapalhar a busca por extraterrestres.
"Algumas pessoas sugerem, por exemplo, que talvez os alienígenas sejam feitos à base de outros solventes [e não de água]", disse Cockell. "Já houve até discussões sobre a possibilidade de que existam organismos extraterrestres inteligentes nas nuvens."

Em 2010, a descoberta de bactérias com DNA contendo arsênico em vez de fósforo (como é padrão) deixou muitos astrobiólogos animados. De lá para cá, embora a descoberta tenha sido questionada, muitos pesquisadores continuam esperançosos de encontrar provas da existência de formas de vida que fujam das regras convencionais.
E em meio a essa discussão, há ainda cientistas trabalhando em formas de vida que não são baseadas em química.

Vida Artificial

A criação de vida artificial - restrita, no passado, ao plano da ficção científica - é hoje um campo bastante estabelecido da Ciência.
Essa área pode envolver, por exemplo, biólogos criando novos organismos em laboratório ao "juntar" partes de duas ou mais formas de vida já existentes ou conceitos ainda mais abstratos de "vida artificial".
Desde a década de 1990, quando o programa de computador Tierra, criado por Thomas Ray, pareceu demonstrar a síntese e a evolução de "formas de vida" digitais, pesquisadores vêm tentando criar programas de computador que realmente simulem a vida - algumas equipes trabalham até na criação de robôs com características similares às da vida convencional.
"A ideia é tentar compreender as propriedades essenciais de todos os sistemas vivos, não apenas os sistemas vivos que por acaso estão presentes na Terra. Temos uma visão mais ampla do que é vida, que ultrapassa aquelas formas que estamos familiarizados", disse o especialista em vida artificial Mark Bedau, do Reed College, em Portland, no estado de Oregon, Estados Unidos.
Ainda assim, muitos pesquisadores trabalhando com vida artificial usam o que sabemos sobre a vida na Terra como base para seus estudos. Bedau disse que os pesquisadores usam o que ele chama de "modelo PMC" (sigla para program, metabolism and container, ou "programa, metabolismo e recipiente", em português). Nesse modelo, por exemplo, o DNA poderia ser um programa e o recipiente, a parede de uma célula.

"É importante notar que isso não é uma definição de vida, apenas uma definição de vida química mínima", acrescentou.
Para os especialistas que pesquisam formas "não químicas" de vida, a tarefa é criar versões desses componentes PMC na forma de programas de computador. "Não acho que haja uma definição exata (de vida), mas precisamos continuar buscando uma", disse Steen Rasmussen, que trabalha na criação de vida artificial na Universidade Southern Denmark, em Odense, na Dinamarca.
Grupos de cientistas em todo o mundo vêm trabalhando em componentes individuais do modelo PMC, criando sistemas que demonstram um ou outro aspecto dele.
Até agora, no entanto, ninguém conseguiu unir todas as partes para formar um tipo de vida sintética que funcione. "É um processo de baixo para cima, construindo (a vida sintética) pedaço por pedaço", explicou.

Talvez as pesquisas nesse campo possam funcionar em uma escala mais ampla, criando formas de vida completamente estranhas às nossas expectativas ou poderiam ainda ajudar a redefinir nosso entendimento sobre o que é vida. Mas, segundo Bedau, os cientistas ainda não chegaram a esse ponto.

"Eles não têm de se preocupar em definir todas as formas de vida, talvez conversem sobre isso quando tomam uma cerveja, mas não precisam incluir (o conceito) em seu trabalho."
Portanto, se até entre os que pesquisam --e constroem-- novas formas de vida não há preocupação em encontrar uma definição universal única, será que os cientistas deveriam deixar a questão de lado por um tempo?

Para a filósofa Carol Cleland, da Universidade Colorado Boulder, no Colorado, nos Estados Unidos, a resposta é sim. Pelo menos por enquanto.
"Se você está tentando fazer uma generalização sobre mamíferos usando uma zebra, que característica você vai escolher?", perguntou Cleland. "Com certeza não serão as glândulas mamárias, porque somente a metade delas tem mamas. As listras parecem ser a escolha óbvia, mas são apenas um acidente, e não o que caracteriza as zebras como mamíferos", disse.

E é a mesma coisa com a vida. Talvez as coisas que pensamos ser essenciais sejam apenas peculiares à vida na Terra. Afinal, tudo --de bactérias a leões-- é derivado de um único ancestral comum, o que significa que no nosso mapa da vida no Universo temos apenas uma única informação.
"O homem tende a fazer definições em termos do que é familiar. Mas a verdade fundamental pode não ser familiar", disse Sagan.

Vida Estranha

Até que tenhamos descoberto e estudado formas alternativas de vida, não poderemos saber se as características que julgamos ser essenciais à vida são mesmo universais.
Criar vida artificial talvez seja uma maneira de explorarmos formas alternativas de vida, mas, pelo menos no curto prazo, a tendência é embutirmos nossas preconcepções sobre sistemas vivos nas vidas que imaginamos dentro do computador.

Para definirmos a vida direito, talvez precisemos encontrar alguns alienígenas. A ironia é que tentativas de chegar a uma definição de vida antes da descoberta desses alienígenas podem tornar a busca por eles ainda mais difícil.

Já pensou que tragédia seria se, em 2020, o novo Mars Rover (veículo não-tripulado que a Nasa pretende colocar no solo de Marte) passasse sem notar por um marciano, simplesmente por não ter sido capaz de perceber que ele era um ser vivo.

"A definição pode, na verdade, atrapalhar a busca por nova vida", diz Cleland. "Nós precisamos nos afastar do nosso conceito atual, para que possamos estar abertos e prontos a descobrir a vida como ainda não conhecemos."

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