sexta-feira, 28 de julho de 2017

Abrindo a Terra

Físicos detalham as estruturas e as transformações de minerais em regiões profundas do interior do planeta
CARLOS FIORAVANTI | ED. 198 | AGOSTO 2012

© DRÜM
Chegar à Lua, a quase 400 mil quilômetros de distância, ou mandar satélites para conhecer outros planetas pode parecer mais fácil do que conhecer a composição e o funcionamento do interior da Terra, uma esfera quase perfeita com 12 mil quilômetros (km) de diâmetro. Os furos de sondagem chegaram a apenas 12 km de profundidade, mal vencendo a crosta, a camada mais superficial. Como não podem examinar diretamente o interior do planeta, os cientistas estão se valendo de simulações em computador para entender como se forma e se transforma a massa sólida de minerais das camadas mais profundas do interior do planeta quando submetida a pressões e temperaturas centenas de vezes mais altas que as da superfície. Como resultado, estão identificando minerais que se formam a milhares de quilômetros da superfície e reconhecendo a possibilidade de existir um volume de água superior a um oceano disperso na espessa massa de rochas sob nossos pés.

A física brasileira RenataWentzcovitch, pesquisadora da Universidade de Minnesota, Estados Unidos, é responsável por descobertas fundamentais sobre o interior do planeta empregando, justamente, técnicas matemáticas e computacionais que desenvolve desde 1990. Em 1993, ela elucidou a estrutura atômica da perovskita a altas pressões; a perovskita é o mineral mais abundante no manto inferior, a camada mais ampla do interior do planeta, com uma espessura de 2.200 km, bem menos conhecida que as camadas mais externas (ver infográfico a seguir sobre as camadas do interior da Terra).

Em 2004 Renata, com sua equipe, identificou a pós-perovskita, mineral que resulta da transformação da perovskita submetida a pressões e temperaturas centenas de vezes mais altas que as da superfície, como nas regiões mais profundas do manto. Os resultados ajudaram a explicar as velocidades das ondas sísmicas, geradas pelos terremotos, que variam de acordo com as propriedades dos materiais que atravessam e representam um dos meios mais utilizados para entender a composição do interior da Terra. Agora novos estudos de Renata indicaram que a pós-perovskita tende a se dissociar em óxidos elementares, como óxido de magnésio e óxido de silício, à medida que a pressão e a temperatura aumentam ainda mais, como no interior dos planetas gigantes, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.

“Estamos com a faca e o queijo na mão para descobrir a constituição e as diferenças de composição do interior de planetas”, diz. Segundo ela, as técnicas que desenvolveu podem prever o comportamento de estruturas cristalinas complexas, formadas por mais de 150 átomos. “Ao longo do manto terrestre, as estruturas cristalinas dos minerais são diferentes, mas a composição química das camadas do interior da Terra parece ser uniforme.”
Por meio de trabalhos como os de seu grupo agora se começa a ver melhor como os minerais do interior da Terra tendem a perder elasticidade e se tornarem mais densos quando submetidos a alta pressão e temperatura, que aumentam com a profundidade. Em razão do aumento da pressão é que se acredita que a densidade do centro da Terra – formado por uma massa sólida de ferro a temperatura próxima a 6.000 graus Celsius (ºC) – seja de quase 13 gramas por centímetro cúbico, quatro vezes maior que a da superfície, indicando que em um mesmo volume cabem quatro vezes mais átomos. Sem direito à ficção e apegados a métodos rigorosos como a análise dos resultados de cálculos teóricos, de experimentos em laboratório, de levantamentos geológicos e da velocidade das ondas sísmicas, físicos, geofísicos, geólogos e geoquímicos estão abrindo o planeta e ampliando o conhecimento sobre as regiões de massa rochosa compacta abaixo do limite de 600 km, que marca uma região mais densa do manto, a chamada zona de transição, a partir da qual se conhecia muito pouco. Os especialistas acreditam que poderão entender melhor – e talvez um dia prever – os terremotos e os tsunamis, além de identificar jazidas minerais mais facilmente do que hoje, se conseguirem detalhar a composição e os fenômenos das regiões inacessíveis do interior do planeta.

Oceanos submersos
 
Mesmo das camadas mais externas estão emergindo novidades, que desfazem a antiga imagem do interior do planeta como uma sequência de camadas regulares como as de uma cebola. Em 2003, por meio de levantamentos mundiais detalhados, pesquisadores dos Estados Unidos começaram a ver irregularidades da crosta, cuja espessura varia de 20 a 68 km, deixando as regiões mais finas mais sujeitas a terremotos e as mais espessas, a colapsos.
“Começamos a ver a interação da crosta e a região mais superficial do manto”, comentou o geofísico Walter Mooney, do Serviço Geológico dos Estados Unidos, no Frontiers in Earth Science, encontro realizado no início de julho na Universidade de São Paulo (USP). Os geofísicos dos Estados Unidos estão reexaminando as possíveis consequências de dois fenômenos que ocorrem com a crosta.

O primeiro é o mergulho das placas tectônicas – pedaços móveis e rígidos da litosfera, a camada superficial que inclui a região mais externa do manto – em regiões mais profundas do manto, ampliando o risco de tremores de terra nas regiões onde ocorrem. Os dados reiteram as conclusões de um estudo recente coordenado por Marcelo Assumpção, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Físico de formação, Assumpção, em colaboração com pesquisadores da Universidade de Brasília, verificou que os tremores de terra no Brasil ocorrem com maior frequência em regiões onde a crosta e a litosfera são mais finas, portanto mais frágeis.
A entrada de água na litosfera, abaixo da crosta, é outro fenômeno que está sendo delineado.


É intrigante porque a água não poderia ser armazenada na crosta inferior por causa da pressão exercida pelas camadas de rochas e da temperatura de cerca de 205ºC; portanto, evaporaria rapidamente. Na verdade, o que existe no interior da Terra não é exatamente água, mas os componentes da molécula de água, hidrogênio e oxigênio, ligados à estrutura cristalina dos minerais na forma de H2O ou OH.
Mooney e sua equipe detectaram uma intensa intromissão aquática em regiões dos Andes onde a crosta atinge 65 km de espessura, mas não souberam explicar a razão desse fenômeno. “Onde essa água está armazenada? Qual o volume?”, questionou-se, diante dos colegas de vários países que compareceram à reunião científica na USP. Talvez, ele comentou, a água venha das placas tectônicas que afundam ou se afastam. Os especialistas viram que a litosfera sem água é geologicamente mais antiga, enquanto a hidratada é mais recente, indicando que a hidratação poderia contribuir para a formação ou transformação das camadas mais externas ou mesmo do manto mais profundo, próximo ao núcleo.

Moléculas de água são importantes porque, “mesmo em proporções ínfimas, de 0,1%, podem mudar a viscosidade dos materiais, e portanto a visão sobre a circulação de matéria e energia no interior da Terra”, comenta o físico João Francisco Justo Filho, professor da Escola Politécnica da USP que trabalha com Renata Wentzcovitch desde 2007. “Uma grande quantidade de água pode estar escondida no manto inferior em minerais”, afirma o geoquímico Francis Albarède, da Escola Normal Superior de Lyon, França. “Talvez o equivalente a um oceano inteiro.” Ou mais, “talvez vários oceanos”, cogita Renata. Por meio de cálculos computacionais, ela começou a examinar as possibilidades de dois átomos de hidrogênio substituírem o magnésio ligado ao oxigênio e formarem unidades de H2O. “Quanto mais procuramos, mais encontramos defeitos nas estruturas cristalinas, onde o hidrogênio poderia entrar”, diz ela. O problema é que não se sabe quanto hidrogênio pode estar armazenado no manto.

Mais abaixo, as incertezas aumentam, diante da impossibilidade de medir com precisão o que se passa a 6.000 km de profundidade. Ainda se conhece pouco sobre a composição do núcleo terrestre, tão denso a ponto de concentrar 30% da massa do planeta em duas regiões, uma externa, líquida, e outra interna, sólida, onde a temperatura pode ir além de 6.000 oC. Uma equipe da University College London usou a mesma abordagem conceitual que o grupo de Minnesota, a teoria funcional de densidade, para estimar a intensidade do fluxo de calor que vem da região limítrofe entre o núcleo e o manto, a partir da quantidade de ferro, oxigênio e enxofre e silício sugerida pelas velocidades de ondas sísmicas que atravessam o núcleo e pelo fluxo de calor do manto inferior. Os resultados, publicados em maio na Nature, indicaram que o fluxo de calor que emana do núcleo deve ser duas a três vezes maior que o previamente estimado. Para onde foi ou vai essa energia, nem imaginam.
Minerais em decomposição
Muitos estudos em andamento se concentram no manto, uma espessa camada sólida, levemente flexível, que se deforma muito lentamente, como o piche. A não ser nas raras ocasiões em que o magma emerge por meio dos vulcões, trazendo material do manto, os estudos são feitos de modo indireto, por meio do monitoramento da velocidade das ondas sísmicas, e é difícil saber diretamente o que se passa no manto. Os japoneses querem ir além do recorde de 12 km já perfurados e chegar ao manto usando um navio com uma sonda semelhante à de um petroleiro. A missão, anunciada em julho na revista New Scientist, não será simples: os materiais das brocas a serem usadas para perfurar a crosta e chegar ao manto devem resistir a pressões 2 mil vezes maior que a da superfície e temperaturas próximas a 900ºC, uma tarefa similar ao plano de extrair petróleo da camada de pré-sal do litoral paulista.
“Eu cozinho rochas, para entender como se formaram”, diz o geólogo Guilherme Mallmann, pesquisador do Instituto de Geociências da USP, que adotou outro método para conhecer melhor o interior do planeta. Em laboratório, ele submete os componentes químicos que constituem os minerais a altas pressões e temperaturas. Fornos e prensas como os que ele usa, porém, só permitem reproduzir fenômenos que se passam a até 150 km de profundidade, a região do manto superior em que se formam o magma, que às vezes emerge por meio dos vulcões. As condições de pressão mais profundas do interior da Terra também podem ser alcançadas experimentalmente, segundo ele, mas é muito mais difícil. Como pressão é o resultado da força sobre uma área, o volume de material analisado teria de ser reduzido bastante para se alcançar essas pressões altíssimas. “Construir prensas maiores é muitas vezes inviável.” A perovskita, assim chamada em homenagem ao mineralogista russo Lev Perovski, forma-se em ambientes sob pressões e temperaturas elevadas, que no manto inferior podem variar de 23 a 135 gigapascal (1 gigapascal é cerca de 10 mil vezes maior que a pressão na superfície terrestre) e 2.000ºC a 4.000ºC. Renata apresentou a estrutura cristalina desse mineral – um silicato de magnésio e ferro – em 1993 na revista Physical Review Letters por meio de losangos verdes e amarelos, lembrando a bandeira brasileira. A razão era simples: “Saudade”, diz a pesquisadora, que mora nas cidades gêmeas Mineápolis-Saint Paul, com 2,5 milhões de habitantes, próximo à fronteira com o Canadá, onde a temperatura no inverno pode se manter em 20ºC negativos durante semanas.

Em colaboração com físicos da Itália e do Brasil, Renata verificou que os átomos de ferro de um mineral chamado ferropericlásio, o segundo mais abundante no manto inferior, perdem uma de suas propriedades mais marcantes, o magnetismo, desse modo explicando um fenômeno que havia sido observado em laboratório. Em 2007 João Justo trabalhou em Minnesota com Renata e desenvolveram uma série de equações que estabelecem a mudança de propriedades elásticas e velocidades sísmicas durante a surpreendente perda de magnetismo do ferro resultante do aumento da pressão no mineral ferropericlásio.

“O tamanho do átomo de ferro diminui quando perde o momento magnético e desse modo torna o ferropericlásio mais denso. Além disso, minerais com ferro amolecem durante o processo lento de densificação, como já havia sido observado em laboratório, mas ainda não havia sido explicado”, diz Justo. É um fenômeno surpreendente porque o normal é o material endurecer quando se torna mais denso.

Os resultados a que ele e Renata chegaram foram publicados em 2009 na revista PNAS e explicaram a perda de magnetismo sob pressão e temperatura equivalentes às do manto inferior, que James Badro, das universidades de Paris 6 e 7, havia detectado em laboratório e relatado na Science em 2003 e 2004. A verificação experimental desse fenômeno, uma das grandes descobertas da geofísica dos últimos anos, indicou que a proporção de ferro não magnético pode aumentar com a profundidade e, além disso, que as camadas mais profundas do manto inferior podem ser ainda mais densas que as menos profundas.

A jornada
Quando era pré-adolescente, Renata gostava de fazer os testes de matemática que seu avô Adolfo Foffano lhe passava todos os dias em que estavam juntos, nas férias de final de ano em Sumaré, interior paulista. Ela estudou física na Universidade da São Paulo e chegou à Berkeley, nos Estados Unidos, em 1983, por recomendação de José Roberto Leite e Cylon Gonçalves da Silva.

A jornada de Renata incluiu uma temporada em Cambridge e em Londres, de 1990 a 1992, depois de ela ter ampliado as possibilidades de uso de suas técnicas de simulações de materiais. Suas novas técnicas eram tão gerais que serviam para estudar o movimento atômico e as transformações de estrutura cristalina a altas pressões e temperaturas. Para isso, ela usou o chamado cálculo de primeiros princípios, baseado na teoria funcional de densidade, cuja essência é simples: a energia total de um conjunto de elétrons em seu estado de equilíbrio depende da densidade total de elétrons.
Depois de muito trabalho, deu certo. “Em menos de um mês, com minhas técnicas, resolvi a estrutura do silicato de magnésio a alta pressão, em que os pesquisadores de Cambridge trabalhavam havia dois anos”, diz ela. Resolver uma estrutura, ela explica, “significa identificar a posição de equilíbrio e os graus de liberdade de uma estrutura cristalina com certa simetria que minimizam a energia interna”. Até então podiam-se determinar facilmente apenas estruturas como a do diamante, formada por dois átomos na base e um grau de liberdade, que se reflete na distância entre os átomos de carbono. A estrutura da perovskita tem 20 átomos de silício, magnésio e oxigênio e 10 graus de liberdade, “é muito mais complexa que a estrutura dos semicondutores e por isso o seu comportamento a altas pressões era até então desconhecido”, diz ela.

No início, um de seus problemas era que não podia conferir experimentalmente suas previsões teóricas. Mas, em 2003, trabalhando com pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Tóquio, Renata e sua equipe de Minnesota analisaram o espectro de raios X que diferiam muito dos esperados a pressões muito altas.  Eles concluí-ram que havia ocorrido uma transformação de fase – ou mudança de estrutura cristalina – para uma estrutura desconhecida. “No início não acreditei”, diz ela, “porque a perovskita parecia tão estável!” No ano seguinte, um artigo na Science apresentou a nova estrutura cristalina e lançou a pós-perovskita, hoje reconhecida como o material mais abundante na região do manto conhecida como D’’, em contato com a camada mais externa do núcleo da Terra. “A pós-perovskita explica muitas características geofísicas dessa região da Terra”, observou Mallmann, da USP.
A pós-perovskita tem uma estrutura em camadas, através das quais viajam as ondas sísmicas, em velocidades que dependem da direção inicial. Esse trabalho reforçou a conclusão de outros estudos, que haviam indicado que esse mineral poderia se formar em diferentes profundidades do manto inferior.

No relato publicado na Science em 24 de março de 2004, o físico Surendra Saxena, da Universidade Internacional da Flórida, Estados Unidos, contestou as conclusões, disse que ainda acreditava que a perovskita se decompõe apenas nas regiões do manto mais próximas do núcleo e lembrou que a teoria ainda não era perfeita, mas estudos subsequentes sobre a propagação de ondas sísmicas parecem confirmar a presença da pós-perovskita na região D’’. “Temos tido muita sorte”, comentou Renata. “Os resultados de cálculos computacionais de velocidades na pós-perovskita são surpreendentes, pois reproduzem muitas observações sismológicas da região D”, até então inexplicáveis. Não dever ser simples coincidência.”

Foi também em 2004, quando esse trabalho começou a circular, que Renata recebeu um financiamento de US$ 3 milhões da National Science Foundation, dos Estados Unidos, para montar o Laboratório Virtual de Materiais Planetários e Terrestres (VLab) no Instituto de Supercomputação da Universidade de Minnesota. O VLab reuniu químicos, físicos, cientistas da computação, geofísicos e matemáticos que, motivados pela possível existência da pós-perovskita em outros planetas, começaram a ver as prováveis transformações que os minerais poderiam sofrer no interior dos planetas gigantes do sistema solar – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, com massa pelo menos 10 vezes maior que a da Terra, sob pressões e temperaturas ainda mais altas.
Os resultados de seu grupo, como os detalhados na Science em 2006, apresentando as prováveis transformações do silicato de magnésio nos planetas gigantes mais próximos da Terra, indicaram que essas técnicas de cálculo podem ser úteis para estudar a evolução de planetas. “Os padrões de comportamento dos minerais em planetas diversos não podem ser só coincidência”, ela comentou, diante da plateia que a ouvia atentamente durante o seminário na USP.

As simulações do comportamento de materiais em altas profundidades e os estudos experimentais, principalmente quando se casam, ajudam a elucidar os fenômenos do interior da Terra. Em julho, pesquisadores franceses anunciaram que conseguiram recriar em laboratório as condições ambientais do limite do núcleo externo com o manto inferior. Eles mostraram, por meio de análises de raios X, que as rochas parcialmente derretidas quando submetidas a alta temperatura e pressão podem se mover em direção à superfície da Terra, originando ilhas vulcânicas como as do Havaí.

Uma Terra mais real
 
As novas informações sobre o interior do planeta alimentam o trabalho de grupos brasileiros de pesquisa em geofísica básica, focados no exame da Terra em grande escala, em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Distrito Federal. De modo mais amplo, beneficiam as equipes de geofísica aplicada, que trabalham com petróleo, mineração e água subterrânea, da Bahia, Pará, Rio, São Paulo, Rio Grande do Norte, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.

Vistos em conjunto, os resultados ajudam a construir uma imagem mais sólida da Terra, já representada de muitos modos nos últimos séculos. O conhecimento sobre a estrutura e o interior da Terra avançou bastante desde 1912, quando o geofísico alemão Alfred Wegener concluiu que a Terra deveria ser formada por placas rígidas que se movem, e se distancia cada vez mais das imagens poéticas da Viagem ao centro da Terra, a magnífica obra do escritor francês Júlio Verne, publicada em 1864. “Hoje sabemos que o interior da Terra, diferentemente do que Júlio Verne escreveu”, assegura Justo, “é absolutamente misterioso e certamente inabitável”. Nem por isso, diz Assumpção, nosso planeta deixa de ser fascinante.

O Projeto
 
Simulação e modelagem de minerais a altas pressões (09/14082-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador João Francisco Justo Filho – USP; Investimento R$ 184.378,73

Artigos científicos
 
WENTZCOVITCH, R.M. et al. Ab initio molecular dynamics with variable cell shape: Application to MgSiO3. Physical Review Letters. v. 70, p. 3.947-50. 1993.

TSUCHIYA, T. et al. Phase transition in MgSiO3 perovskite in the earth’s lower mantle. Earth and Planetary Science Letters. v. 224, n. 3-4, p. 241. 2004.

WENTZCOVITCH, R.M. et al. Anomalous compressibility of ferropericlase throughout the iron spin crossover. PNAS. v. 106, p. 8.447-52. 2009.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Patrimônio de bilhões de anos

Especialistas identificam 142 lugares de importância geológica em 81 municípios do estado de São Paulo
CARLOS FIORAVANTI | ED. 257 | JULHO 2017

© EDUARDO CESAR
Preservadas em um parque de Itu, rochas com camadas claras e escuras formaram o fundo de um lago próximo a uma geleira, há 270 milhões de anos.

Começou a circular uma lista de 142 sítios geológicos em 81 municípios do estado de São Paulo, organizada por um grupo de 30 especialistas de universidades, institutos de pesquisa e empresas, para incentivar sua preservação. Com o mesmo propósito, a Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (Sigep) apresentou em 2012 um levantamento nacional, com 116 sítios de relevância geológica, dos quais 16 em São Paulo.

O novo inventário contempla uma área com vestígios da exploração de ouro nos séculos XVI e XVII em uma mata na periferia do município de Guarulhos, na Grande São Paulo. “Neste local havia um veio de quartzo, com o qual o ouro estava associado”, descreve o geólogo Edson Barros, da prefeitura de Guarulhos, indicando o fundo de uma cavidade. Muros de pedras em meio à mata e túneis de escoamento de água constituem outros vestígios das primeiras minas de ouro abertas pelos portugueses no Brasil, no final do século XVI, 100 anos antes do início da mineração em Minas Gerais.

Descritos em um artigo publicado em janeiro deste ano na revista Geoheritage ,os sítios – ou geossítios – constituem lugares cientificamente relevantes. “Devem ser conservados pelos órgãos responsáveis de modo a preservar a história geológica do estado”, observa a geóloga Maria da Glória Motta Garcia, professora do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) e coordenadora do trabalho. “Na Europa, inventários desse tipo fundamentaram a criação ou adequação de leis para a proteção do patrimônio geológico.” Um dos autores do levantamento, o geólogo José Brilha, professor da Universidade do Minho, coordenou um inventário similar, concluído em 2010, que apresentou 320 geossítios em Portugal.

Com base no valor científico e nas políticas de conservação, sete geossítios já foram reconhecidos pelo governo do estado de São Paulo como monumentos geológicos do estado e estão abertos à visitação. Monumentos geológicos são geossítios que impressionam pela beleza ou pela importância cultural, como o Corcovado, no Rio de Janeiro, ou a Foz do Iguaçu, no Paraná. Rochas com sinais de geleiras de 260 milhões de anos estão conservadas em dois parques nos municípios de Itu e Salto. O morro do Diabo, com depósitos de arenitos formados há cerca de 80 milhões de anos, integra um parque estadual no município de Teodoro Sampaio, a 660 quilômetros (km) da capital.

Outros lugares, porém, estão bastante vulneráveis, como as rochas com icnofósseis – pegadas fósseis – no município de Rosana, que correm o risco de ser decompostas em razão da variação do nível da água em consequência da operação da Usina de Porto Primavera. “Os icnofósseis de Porto Primavera estão em antigos depósitos de areia, no interior de um grande deserto que existiu ali entre 90 milhões e 65 milhões de anos”, diz o geólogo Luiz Fernandes, professor da Universidade Federal do Paraná que participou do levantamento.

O geógrafo Rogério Rodrigues, diretor técnico do Núcleo de Monumentos Geológicos do Instituto Geológico de São Paulo, recomenda: “As equipes das prefeituras e os proprietários das áreas com sítios geológicos primeiramente devem adotar medidas de segurança e conservação, instalando cercas, portarias e infraestrutura para visitantes, antes de explorar o potencial turístico dos lugares”.
“No Brasil, falta uma legislação específica para a preservação dos patrimônios geológico e da geodiversidade”, afirma o geólogo Gustavo Beuttenmuller, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo. Mesmo assim, há avanços. Segundo o geólogo Oswaldo Landgraf Júnior, também da Secretaria do Verde, a prefeitura prevê a expansão do parque municipal cratera de Colônia, no bairro de Parelheiros, na capital, criado em 2007, para proteger as encostas e o interior de uma concavidade criada pelo impacto de um corpo celeste há cerca de 35 milhões de anos. Barros, com sua equipe e outros grupos, trabalha para preservar e dar visibilidade às estruturas geológicas e construções ligadas à mineração em Guarulhos.
O passado gravado nas rochas
Os geossítios representam a história geológica do estado de São Paulo
Clique nas imagens para ver as legendas
Clique para acessar a lista completa dos geossítios do estado de São Paulo.

Artigo científico
 
GARCIA, M. G. M. et al. The inventory of geological heritage of the state of São Paulo, Brazil: Methodological basis, results and perspectives. Geoheritage. No prelo. 201

Pequenas variações genéticas alteram cor das penas de aves

Alterações em regiões do DNA associadas à produção do pigmento melanina explicariam as diferentes plumagens das 11 espécies de caboclinhos 

MARCOS PIVETTA | Edição Online 0:51 25 de maio de 2017

© EDSON ENDRIGO
Sporophila palustris macho…

O DNA das 11 espécies conhecidas de caboclinhos, pequenas aves de áreas abertas da América do Sul do gênero Sporophila, é tão parecido que, na maioria dos casos, não se consegue diferenciar uma da outra por meio de análises genéticas. As fêmeas e os filhotes de cada espécie são também praticamente indistinguíveis em termos de aparência externa. Os machos adultos, no entanto, apresentam plumagens com padrões únicos de cores para cada espécie. Segundo um estudo publicado hoje (24/05) na revista científica Science Advances, um grupo de biólogos e ornitólogos do Brasil, Argentina e dos Estados Unidos encontrou as sutis diferenças genéticas responsáveis pela coloração particular das penas de cada tipo de caboclinho.

Depois de sequenciar o genoma completo de nove das 11 espécies, eles identificaram grandes picos de divergências genéticas em 25 regiões do DNA, que abrigam 246 genes, boa parte deles associados às vias de produção de melanina. Esse pigmento gera cores como preto, marrom e distintos tons avermelhados e amarelados. “Essas diferenças genéticas devem ter sido fixadas por um processo de seleção sexual e gerado as plumagens específicas de cada espécie”, sugere Luís Fábio Silveira, curador da coleção de ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos autores do trabalho. “A fêmea de cada caboclinho reconhece o macho de sua espécie pela coloração das penas e por cantos específicos.”
© EDSON ENDRIGO
… e Sporophila melanogaster macho no município gaúcho de São Francisco do Sul

Segundo Silveira, que cria exemplares das 11 espécies em sua casa, as fêmeas até cruzam com machos de outras espécies, mas os filhotes não se mostram saudáveis e morrem em questão de dias. Essa particularidade seria a explicação para o fato de não haver, na natureza, híbridos das espécies. É interessante notar que, no artigo da Science Advances, os pesquisadores verificaram que, das 25 regiões com picos de divergência genética entre as espécies, 10 estão no cromossomo Z, cujos machos carregam duas cópias e as fêmeas apenas uma.

Distintas espécies da ave, como o caboclinho-de-barriga-vermelha (S. hypoxantha), o caboclinho-de-chapéu-cinzento (S. cinnamomea) e o caboclinho-branco (S. pileata), apresentam variações nas mesmas áreas de seus respectivos genomas, de acordo com o novo estudo. Essas diferenças são minúsculas e representam entre 0,03% e 0,3% de seu genoma. “Mas diferentes espécies carregam distintas variações nessas áreas, com diferentes alelos [versões] de seus genes”, explica o biológo evolutivo argentino Leonardo Campagna, do Laboratório de Ornitologia da Universidade Cornell, Estados Unidos, primeiro autor do artigo. “Na verdade, os genes propriamente ditos nessas regiões não apresentam alterações. O que varia no genoma de cada espécie são pequenas sequências em torno desses genes que os ligam e desligam e regulam seu funcionamento.” A maneira como esses genes funcionam seria então o mecanisco molecular por trás da grande variação de cor na plumagem dos caboclinhos.

Desde 2013, Silveira e Campagna têm estudado o processo de especiação e a evolução das distintas formas de caboclinhos, aves comedoras de sementes que têm cerca de 10 centímetros de comprimento e 7 gramas de peso e são admiradas por seu canto (ver reportagem na edição 236 de Pesquisa FAPESP). A dupla estima que a maioria das espécies atuais da ave se originou de um ancestral comum entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás.
CAMPAGNA, L. et al. Repeated divergent selection on pigmentation genes in a rapid finch radiationScience Advances. v. 3, n. 5. 24 mai. 2017.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

RECLASSIFICAÇÃO DOS DINOSSAUROS

Répteis da cizânia

Proposta polêmica altera árvore genealógica dos dinossauros e divide especialistas
MARCOS PIVETTA | ED. 255 | MAIO 2017



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Em 22 de março, em um artigo científico que foi a principal chamada de capa da revista científica Nature, o aluno de doutorado Matthew Baron e seus dois coorientadores, David Norman, da Universidade de Cambridge, e Paul Barrett, do Museu de História Natural de Londres, apresentaram uma nova e polêmica classificação filogenética que altera as relações e o grau de parentesco entre as principais linhagens que compõem os dinossauros. A proposta refuta a validade da clássica divisão desses répteis em dois grandes grupos, em razão do tipo de estrutura presente em sua pélvis, e advoga a adoção de outros parâmetros anatômicos para estabelecer o grau de proximidade entre as diferentes formas de dinossauros
 
Se estiver correto e vier a ser adotado pelos demais paleontólogos, esse ordenamento alternativo vai  modificar de forma profunda a árvore genealógica, o cladograma na linguagem dos taxonomistas, que vem sendo construída desde o final do século XIX para dar abrigo a dinossauros de distintos tamanhos, hábitos ecológicos e características físicas. “Sabíamos que, se correta, a proposta seria uma grande mudança de paradigma e teria grandes implicações em nossa área. Por isso, passamos muito tempo testando os resultados, explorando e checando nossos dados à procura de erros, antes de publicarmos qualquer coisa”, explica Baron, primeiro autor do estudo. 
 
Em 1887, o paleontólogo inglês Harry Seeley estabeleceu uma divisão essencial que, com algumas modificações e ajustes, persiste até hoje e baliza o trabalho de classificação genealógica dos dinossauros. Segundo essa clivagem, há dois grandes tipos ou ramos de dinossauros: os que têm a pélvis parecida com a de aves, os Ornithischia, e os que apresentam essa estrutura semelhante à de lagartos, os Saurischia (ver quadro). Fazem parte do primeiro grupo os dinossauros com chifres (como o tricerátopo), com armaduras (caso do estegossauro) e bicos semelhantes aos dos patos. Eles podiam ser bípedes ou quadrúpedes e, na maior parte dos casos, eram herbívoros. Os Saurischia são formados por dois subgrupos: os terópodes, carnívoros bípedes como o tiranossauro e o velociraptor; e os saurópodes, em geral quadrúpedes, de grande porte e pescoço alongado, que comiam plantas, como o diplodocus e o braquiossauro.
© MICHAEL B. H / WIKIMEDIA COMMONS
Reconstituição do Ornithischia Pisanosaurus mertii

Essas são as três linhagens mais antigas e basais, originadas há cerca de 230 milhões de anos no período Triássico Médio, das quais deriva a maioria das espécies conhecidas de dinossauros. Há ainda uma quarta tipologia de dinossauros, descoberta nos anos 1960 na Argentina e posteriormente no Brasil: os pequenos carnívoros do grupo denominado Herrerasauridae. Eles são provavelmente mais antigos que os membros das outras três linhagens, mas de classificação historicamente problemática, com apenas meia dúzia de espécies conhecidas, como os argentinos Herrerasaurus ischigualastensis e Sanjuansaurus gordilloi e o brasileiro Staurikosaurus pricei. Dependendo do autor, são considerados terópodes, saurópodes ou mesmo fora da árvore dos dinossauros. O registro fóssil atual indica que a linhagem dos herrerassauros durou cerca de 30 milhões de anos e não deixou descendentes.

A genealogia alternativa defendida por Baron, Norman e Barrett advoga o fim da dicotomia Ornithischia-Saurischia e rearranja as linhagens basais em dois novos ramos centrais. O nome Saurischia seria preservado, mas o grupo perderia os terópodes e seria composto por saurópodes e herrerassauros. Os Ornithischia e os terópodes dividiriam 21 traços anatômicos comuns e seriam as duas linhagens de um novo grupo batizado de Ornithoscelida. A julgar pela movimentação de paleontólogos que não estão convencidos da robustez da nova classificação, a proposta terá de vencer o ceticismo e o escrutínio científico de parte de seus pares. “Não se trata de discutir o método usado por eles no trabalho, que é o mesmo empregado por todos da área. Mas sim a qualidade dos dados usados”, pondera o paleontólogo Max Langer, da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, especialista na origem e diversificação dos dinossauros. “Dados errados levam a resultados errados. Um resultado excepcional, como o deles, tem de ser amparado por evidências excepcionais.”
© THE LORD OF THE ALLOSAURS / WIKIMEDIA COMMONS
…e esqueleto do terópode Eoraptor lunensis, dinossauros do grupo Ornithoscelida, segundo a nova classificação

Langer e mais nove paleontólogos de várias partes do mundo estão reexaminando as informações divulgadas no trabalho dos ingleses em busca de falhas. Baron assegura que os dados foram revisados várias vezes. “Pode haver um ou dois erros em todo o dataset, algo quase inevitável, e algumas das nossas interpretações podem ser questionadas”, retruca o aluno de doutorado. “À medida que as pessoas conhecerem melhor nosso trabalho, vão se dar conta de que não se trata de um erro e de que há um debate científico a ser travado.”

O grupo de Cambridge e do Museu de História Natural de Londres analisou 457 caracteres anatômicos de 74 espécies de dinossauros e de répteis que viveram pouco antes do surgimento dos dinossauros. Essa montanha de informação gerou uma matriz com quase 34 mil dados. “No passado, os paleontólogos faziam manualmente as comparações anatômicas entre as espécies”, conta Langer. “Hoje, sobretudo quando se trabalha com um número elevado de caracteres e de espécies, usamos programas de computador para desempenhar essa tarefa.” Softwares como o TNT, usado pelo grupo inglês, ou o Paup, juntam as espécies em grupos com caracteres anatômicos comuns, sugerem que espécies apareceram antes das outras e, por fim, fornecem árvores genealógicas a partir de uma matriz de dados.

Cada traço anatômico de cada espécie é transformado em um código numérico, que pode assumir duas formas, 0 ou 1, de acordo com seu significado. Por exemplo, no estudo de Baron e colegas, a presença de dentes pré-maxilares – caractere de número 150 na lista elencada pelos autores – equivale a 0 e a ausência, a 1. Quando não há certeza sobre as características de um traço anatômico em uma espécie, ele pode ser codificado como um ponto de interrogação (?). Se o caractere não se aplica a uma espécie, ele é representado por um travessão (−). “Os programas calculam o menor número de passos evolutivos possíveis para que uma espécie mais basal possa levar a outra, com traços derivados”, explica Langer.

Boa parte do conhecimento produzido sobre os dinossauros, criaturas quase míticas que viveram na Terra entre aproximadamente 230 milhões e 66 milhões de anos, terá provavelmente de ser reescrito ou emendado caso as teses de Baron prevaleçam. Onde e quando os dinossauros surgiram? O carnivorismo apareceu uma ou duas vezes? Essas questões sempre foram mais ou menos polêmicas, mas estavam sendo estudadas dentro de um contexto evolutivo ancorado em uma árvore genealógica dos dinossauros que, apesar de não ser perfeita, era aceita havia mais de 130 anos. A nova classificação altera significativamente esse cenário e implica rever hipóteses até agora bastante difundidas.
As origens
A maioria dos paleontólogos atuais, por exemplo, defende a ideia de que os dinossauros surgiram no hemisfério Sul, visto que os fósseis mais antigos, com idade de cerca de 230 milhões de anos, foram encontrados na Argentina, no Brasil e na Tanzânia. Segundo a nova classificação, eles podem ter se originado em qualquer parte do globo, talvez até mesmo no hemisfério Norte. Afinal, de acordo com a filogenia apresentada pelo grupo de Cambridge, o réptil não dinossauro anatomicamente mais próximo dos primeiros grupos de dinossauros seria o Saltopus elginensis, um bípede carnívoro de 60 centímetros que viveu há aproximadamente 240 milhões de anos no que hoje é a Escócia. Os autores da nova proposta de classificação genealógica também defendem a ideia de que os primeiros dinossauros seriam onívoros, ingeriam plantas e animais, e insinuam que o carnivorismo teria surgido duas vezes, de forma independente, nos herrerassauros e nos terópodes. A visão dominante atual sugere que o hábito de comer carne apareceu apenas uma vez e já estava presente nos primeiros dinossauros.
No modelo atual, os paleontólogos têm dificuldade em classificar os pequenos carnívoros Herrerasaurus ischigualastensis…

Em pelo menos um ponto o estudo do trio inglês concorda com trabalhos filogenéticos recentes. Como outros estudos, advoga que os primeiros dinossauros eram bípedes pequenos, com no máximo 2 metros de comprimento, dotados de membros superiores livres para agarrar suas presas. “Não podemos transformar as discordâncias em um debate como se fosse sobre uma partida de futebol”, pondera o paleontólogo Fernando Novas, do Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia, de Buenos Aires, um dos maiores especialistas e descobridores de dinossauros em atividade. “Não sei se a hipótese de Baron está equivocada ou certa. A evolução é complexa. Todos os paleontólogos fazem algum tipo de especulação.” Ele, no entanto, estranhou a inclusão no estudo da Nature de dados fósseis de duas espécies vistas como pré-dinossauros, o S. elginensis e o Agnosphytis cromhallensis, que viveram há cerca de 240 milhões de anos. “Esses ossos estão mal preservados. Eu não os utilizaria”, diz Novas.

Para o paleontólogo Sterling Nesbitt, da Virginia Tech, Estados Unidos, outro estudioso dos primeiros dinossauros e de seus antecessores, não faz muito sentido discutir se os dinossauros surgiram acima ou abaixo do Equador. “Os atuais continentes estavam unidos na Pangea quando surgiram os dinossauros”, explica Nesbitt. Pangea era o nome de um antigo supercontinente composto pela união de duas grandes massas de terra: a Laurásia, que abrigava a América do Norte, Europa e Ásia, e o Gondwana, que abarcava a maior parte da América do Sul, África, Antártida e Madagascar. A Laurásia e o Gondwana se separaram há aproximadamente 200 milhões de anos, bem depois do aparecimento dos primeiros dinossauros. No mês passado, Nesbitt descreveu, também nas páginas da Nature, um possível ancestral dos dinossauros, o Teleocrater rhadinos, um réptil com corpo de crocodilo, rabo e pescoço excepcionalmente alongados e alguns ossos típicos de dinossauro. A espécie viveu 245 milhões de anos atrás no que hoje é o território da Tanzânia.
Sem DNA
 
Para confeccionar seus cladogramas, a paleontologia não conta com amostras de DNA de dinossauros, ferramenta hoje empregada em vários campos da biologia em estudos filogenéticos. Os especialistas nesses répteis são, portanto, obrigados a ancorar seus trabalhos somente no exame das particularidades anatômicas dos ossos e dentes fossilizados recuperados em suas escavações. Nesse caso, amostras mais bem preservadas são mais informativas do que resquícios fragmentados. O grau de parentesco e a proximidade das espécies são determinados pelo número e importância evolutiva dos caracteres presentes nas amostras em análise. Assim, alguns caracteres são considerados mais basais, ou seja, mais antigos e primitivos, pois surgiram em um ancestral comum e se mantiveram em espécies dessa linhagem. Outros são interpretados como traços derivados, que não estavam presentes no ancestral comum e aparecem mais tarde apenas em alguns membros da linhagem. “O paleontólogo trabalha com dados morfológicos e faz comparações”, explica Novas. “Estamos procurando novidades evolutivas, traços anatômicos até então desconhecidos.”

Um dos grandes desafios dos paleontólogos é estabelecer se a identificação de um traço evolutivo novo e comum a duas linhagens distintas significa que ambas são aparentadas, e um dia dividiram um ancestral comum em algum ponto de sua história, ou se sinaliza que o surgimento dessa estrutura se deu de forma independente nos dois casos. As aves e os morcegos (mamífero placentário) têm asas que lhes permitem voar. Mas é sabido que, em ambos os grupos, as asas exibem estruturas anatômicas distintas e aves e morcegos não dividem a mesma história evolutiva. Esse aparecimento de estruturas com funções análogas (voar), mas de maneira independente, é denominado convergência evolutiva. No caso de traços que aparecem em mais de uma das quatro linhagens basais de dinossauros, essa distinção geralmente é problemática. “Às vezes, também nos encontramos em um impasse: os ossos da cabeça nos contam uma história evolutiva e os da cauda, outra”, comenta o paleontólogo Alex Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), especialista em pterossauros, répteis alados extintos que surgiram pouco antes dos dinossauros.
© MARK WITTON / MUSEU DE HISTORIA NATURAL DE LONDRES
Há cerca de 240 milhões de anos, quando viveu o pré-dinossauro Teleocrater rhadinus, os blocos de terra do planeta estavam unidos no supercontinente Pangea

Segundo Kellner, que ocasionalmente também estuda dinossauros, novas propostas de classificação taxonômica precisam ser vistas com cautela e resistir ao escrutínio de outros cientistas. Ele lembra da confusão causada recentemente por interpretações erradas divulgadas por um paleoartista gráfico e paleontólogo amador, David Peters, que mantém sites e tem livros e artigos publicados sobre pterossauros. Além de defender a ideia jamais comprovada de que havia pterossauros vampiros, que se alimentavam de sangue, Peters chegou a propor na década passada uma nova árvore genealógica para esses répteis voadores, que não vingou. As discussões em torno do paper da Nature sobre a nova proposta de classificação dos dinossauros se dão e se darão em outro nível. O artigo foi feito por paleontólogos de renomadas instituições britânicas. “Se não forem encontrados erros na maneira como os autores codificaram os traços anatômicos dos dinossauros, a proposta pode parar em pé. Essa é a regra do jogo”, opina Kellner. “Se houver erros, a ciência vai corrigir.”

Projeto
 
A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 14/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer (USP); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.959.890,17.

Artigo científico
 
BARON, M. G., NORMAN, D. B. e BARRETT, P. M. A new hypothesis of dinosaur relationships and early dinosaur evolution. Nature. 22 mar. 2017.

Bactérias que preservam fósseis

Ação de microrganismos pode favorecer a conservação de fragmentos de tecidos moles, como olhos, veias e coração
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | ED. 255 | MAIO 2017

Revista Pesquisa FAPESP
Podcast: Gabriel Osés
00:00 / 09:59
A bacia do Araripe, na divisa dos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, é uma das raras regiões no mundo a abrigar uma grande variedade de fósseis de animais pré-históricos com tecidos moles bem preservados.

Em geral, essas estruturas — olhos, tecidos conjuntivos e fragmentos de fibras de coração — são as primeiras a se decompor e dificilmente se fossilizam. Nas raras vezes em que são preservadas, permitem o desenvolvimento de estudos acerca da biologia e da evolução de espécies extintas há milhões de anos. Sabe-se há algum tempo que a preservação dessas estruturas se dá em razão da ocorrência de processos geoquímicos específicos, como a substituição do material orgânico pela pirita, mineral composto basicamente por ferro e enxofre, ou pelo querogênio, a parte insolúvel da matéria orgânica que fica retida em rochas sedimentares. 

Em um estudo publicado em maio na revista Scientific Reports, pesquisadores analisaram esses processos em nível microscópico e sugeriram que eles seriam condicionados pelo mecanismo de respiração de bactérias decompositoras.

No trabalho, a equipe da paleontóloga Mírian Pacheco, do Departamento de Biologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Sorocaba, e do geólogo Setembrino Petri, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), examinou exemplares fósseis de uma espécie de peixe primitivo chamado Dastilbe crandalli, que viveu na região há cerca de 113 milhões de anos.

Os fósseis, abundantes no Araripe, foram encontrados em dois tipos de calcário, rochas sedimentares ricas em carbonato de cálcio: um da cor cinza, com mais matéria orgânica, e outro bege, com menos abundância desse conjunto de compostos químicos. As primeiras amostras estavam envoltas por um material fibroso acinzentado. Já os exemplares encontrados em calcário bege tinham uma coloração alaranjada, semelhante a um favo de mel, com um revestimento difuso de cristais microscópicos.

Os pesquisadores verificaram que as estruturas moles dos fósseis bege haviam sido preservadas por meio do processo de piritização. “Isso significa que os elementos que constituem esses fósseis foram substituídos por pirita”, explica Mírian. Segundo a paleontóloga, essa é a primeira vez que se observa um caso de piritização em um fóssil de vertebrado. Os poucos registros conhecidos são de insetos ou invertebrados diversos. Por sua vez, os tecidos moles dos espécimes do calcário cinza foram fossilizados por meio da formação de querogênio. Nesse processo, o carbono orgânico assume uma forma mais estável, capaz de perdurar por milhões de anos. Enquanto a piritização ajudou a preservar tendões, membranas e núcleos celulares e tecido dos olhos, a querogenização conservou, sobretudo, tecidos conjuntivos, tegumento e fibras musculares.
© OSÉS, G. L. ET AL / SCIENTIFIC REPORTS
Dois processos geoquímicos conservam estruturas delicadas de vertebrados: a querogenização e a piritização (foto)

Em ambos os casos, no entanto, esses processos geoquímicos teriam sido condicionados pela ação de bactérias decompositoras. Por meio do processo de respiração anaeróbia — sem oxigênio —, os microrganismos teriam auxiliado na substituição da matéria orgânica em decomposição pela pirita ou pelo querogênio, dependendo do tipo de calcário em que os fósseis se preservaram. À medida que esses processos avançaram, os elementos que compunham as estruturas orgânicas desses animais foram sendo lentamente destruídos e substituídos por pirita ou querogênio. Ao mesmo tempo, deixaram marcas nas rochas que os envolviam.

Como na China
 
A hipótese baseia-se essencialmente em análises de microscopia eletrônica. Ao examinar os fósseis piritizados, os pesquisadores identificaram resquícios da atividade desses microrganismos. “Encontramos estruturas lisas e flexíveis, semelhantes a uma teia de aranha, resultantes da metabolização da pirita pelas bactérias”, esclarece Mírian. Isso explicaria por que cada processo geoquímico preservaria de forma distinta essas estruturas moles. Apesar de ambos conservarem essas estruturas de modo único, os fragmentos fósseis dos tecidos moles encontrados em sedimentos bege, de tamanho microscópico, são ainda mais bem preservados do que os depositados em calcários cinza”, explica o geólogo Gabriel Osés, primeiro autor do estudo e orientando de Setembrino Petri à época em que desenvolvia parte da pesquisa, no mestrado.

“O estudo é importante porque amplia a área de ocorrência desses processos para outros depósitos geológicos e elucida quais foram as condições geoquímicas que permitiram a preservação de tecidos moles em fósseis da bacia do Araripe”, afirma o paleontólogo Marcello Guimarães Simões, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, que não participou do estudo. Segundo ele, antes, pensava-se que esses processos só ocorriam em estruturas moles de fósseis de regiões específicas, como os da Formação Gaojiashan, na China, e de períodos geológicos anteriores ao Cretáceo, que durou de 145 a 66 milhões de anos atrás. “Agora sabemos que esses processos geoquímicos podem ser observados também em fósseis de eras geológicas mais recentes e, possivelmente, em outros depósitos geológicos do mundo.”

Projeto
 
Aplicações de espectroscopia Raman em paleobiologia e astrobiologia (nº 12/18936-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Setembrino Petri (USP); Investimento R$ 584.668,54.

Recifes marinhos podem ter surgido 20 milhões de anos antes do imaginado

ED. 256 | JUNHO 2017

© FELIPE DANIEL DE CASTRO SALES
Reconstituição artística de como seria o animal marinho do gênero Namacalathus

Rochas de aproximadamente 550 milhões de anos de idade coletadas no norte do Paraguai guardam vestígios do que podem ter sido os primeiros recifes marinhos formados por organismos visíveis a olho nu. Uma equipe internacional de geólogos e biólogos identificou nas rochas calcárias extraídas em Puerto Vallemí, próximo à fronteira com o Mato Grosso do Sul, fósseis de animais marinhos de três gêneros distintos que viviam em conjunto, ancorados no sedimento depositado por cianobactérias no fundo de um mar raso.

Com poucos centímetros de comprimento, os fósseis pertencem a exemplares de Corumbella, Cloudina e Namacalathus, os primeiros seres vivos com esqueleto, que existiram entre 550 milhões e 542 milhões de anos atrás.

Essa é a primeira vez que fósseis desses três gêneros são encontrados em amostras de rocha de uma mesma região e a quinta ocorrência no mundo – a primeira na América do Sul – de organismos do gênero Namacalathus, seres cujo esqueleto, formado por uma pequena haste sustentando uma esfera no alto, lembra o botão de uma papoula (Precambrian Research, maio). “Até pouco tempo atrás, acreditava-se que os primeiros recifes tivessem surgido por volta de 530 milhões de anos atrás, constituídos por organismos semelhantes a esponjas calcárias chamadas arqueociatídeos”, conta o geólogo Lucas Warren, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e primeiro autor do artigo. “A presença em um mesmo tipo de rocha desses organismos que viveram há 550 milhões de anos sugere que eles já eram capazes de se unir e crescer sobre um mesmo substrato, como ocorre atualmente com os corais em um recife”, explica.