quinta-feira, 13 de julho de 2017

Tensão sob a terra

Caracterização dos movimentos de falhas geológicas na crosta elucida tremores sísmicos no Brasil
EVERTON LOPES BATISTA | ED. 256 | JUNHO 2017

© JOSENILDO TENÓRIO / ESTADÃO CONTEÚDO
Moradores de João Câmara, no Rio Grande do Norte, no início de dezembro de 1986, após um tremor de magnitude 5,3

Na manhã do dia 2 de maio deste ano um ponto vermelho começou a piscar em um dos monitores de parede do Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo, formado pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) e pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE).

Era um terremoto de magnitude 4,0, que ocorria a cerca de 3 mil quilômetros (km) dali, na fronteira entre o Peru e a Bolívia, detectado pela Rede Sismográfica Brasileira (RSBR), da qual o centro faz parte. Desde 2010, registrando continuamente episódios como esse, as 80 estações sismológicas da RSBR permitem o detalhamento e o estudo das prováveis causas dos tremores de terra no Brasil. Dotadas de um sismógrafo e de um transmissor de dados, as estações são gerenciadas por universidades, institutos de pesquisa e empresas.

Com base nos dados da RSBR, em estudos anteriores e em análises das ondas geradas pelos tremores de terra, pesquisadores da USP, da Universidade Estadual do Oeste do Pará e Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, identificaram os tipos e a direção das tensões que causam a movimentação das falhas geológicas – as rupturas dos grandes blocos de rocha superficiais – na América do Sul. A quebra dos blocos de rocha da crosta, a camada mais superficial do planeta, libera uma energia que se expressa na forma de terremotos.

Os pesquisadores estudaram os movimentos horizontais ou verticais das falhas geológicas, os chamados mecanismos focais, associados a quase 400 terremotos da América do Sul, a maioria ao longo da cordilheira dos Andes e 76 no Brasil. No artigo publicado em novembro de 2016 na revista Journal of South American Earth Sciences, eles argumentaram que a identificação do padrão de tensão da crosta poderia fornecer novas informações sobre os movimentos das placas litosféricas, formadas pelas camadas mais externas da Terra, complementando os modelos matemáticos adotados para descrever esses fenômenos.

A caracterização da direção e do tipo dos movimentos das falhas geológicas ajudou a compreender as tensões que geraram os três tremores registrados nas últimas décadas no estado do Amazonas e o maior de todos já ocorrido no Brasil. Em 1690, um terremoto com magnitude estimada em 7,0 revirou a terra, derrubou árvores e ergueu no rio Amazonas ondas que alagaram povoados, a 45 km de onde hoje é Manaus, de acordo com o relato de jesuítas da época (ver Pesquisa FAPESP nº 224).
“Os mecanismos focais revelam a direção dos esforços que causaram o movimento das falhas geológicas, mas não as causas das falhas”, explica o geofísico Fabio Luiz Dias, pesquisador da USP, atualmente no Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, e um dos autores desse estudo. “Antes do nosso trabalho, a determinação do mecanismo focal desses tremores não era possível em virtude da limitação das técnicas existentes.” O aprimoramento dessa metodologia permitiu a identificação do mecanismo focal de 12 tremores mais próximos das estações sismográficas, com magnitude de 3,0 a 5,3, ocorridos no Brasil desde 1992, cujas causas permaneciam incertas. Agora, com base nessa abordagem, o tremor de magnitude 4,0 ocorrido em Montes Claros, norte de Minas Gerais, em 2012, está associado à movimentação de uma falha geológica a apenas 1 km de profundidade, sob um dos bairros do município mineiro.

A ruptura das rochas sob a superfície é o resultado da compressão ou do estiramento da crosta. Os dois efeitos expressam a pressão aplicada principalmente pela expansão da cordilheira meso-oceânica, que ocupa a região central do oceano Atlântico, e pelo mergulho da placa tectônica de Nazca sob a placa Sul-americana, sobre a qual está o Brasil. “Constatamos que a maioria dos terremotos da região Sudeste e do Pantanal são gerados por tensões que concordam com essa compressão leste-oeste”, afirma Dias.

A compressão horizontal das rochas da crosta explica também o tremor de magnitude 3,6 ocorrido na madrugada de 6 de janeiro de 2006 no município de Telêmaco Borba, no Paraná. “Caracterizar a movimentação da falha geológica associada a esse tremor foi um dos dados mais surpreendentes desse trabalho, porque são escassos os registros de tremores para a região Sul”, afirma Dias. Em busca de mais informações, uma equipe coordenada pelo geofísico Marcelo Assumpção, coordenador do Centro de Sismologia e professor do IAG-USP, está implantando cerca de 40 estações sismológicas no Sul do país, em colaboração com instituições da Argentina, do Uruguai, do Paraguai e da Bolívia.

De acordo com o estudo publicado na South American Earth Sciences, toda a região equatorial do Brasil – do Rio Grande do Norte até a foz do rio Amazonas – está sujeita a um mesmo tipo de tensão geológica: “A superposição de uma compressão paralela à costa, na direção leste-oeste com uma extensão devido ao contraste da densidade das crostas continental e oceânica”, descreve Dias. Esse tipo de tensão foi a causa de um tremor de magnitude 4,3 em Vargem Grande, no Maranhão, o evento de maior magnitude dos últimos quatro anos no Brasil, ocorrido em janeiro de 2017. “A estação sismológica mais próxima está a 40 quilômetros do epicentro desse tremor, o que ajudou a determinar seu mecanismo focal com boa precisão”, afirma Assumpção.

Nas regiões Norte e Centro-Oeste, também predominam as compressões da crosta, mas na direção noroeste-sudeste. As causas dessa orientação diferente são incertas, mas, para os especialistas, poderiam estar relacionadas com movimentos de convecção do manto na região da Amazônia. Inversamente, nos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte a crosta está sendo esticada, por causa da proximidade da costa e da ação da gravidade, de acordo com Assumpção.

Segundo ele, há uma tendência de a crosta continental se esparramar em direção ao oceano, “causando uma tensão de tração”. No Nordeste, além da crosta ser menos espessa, a litosfera, a camada formada pela crosta e pela camada superior do manto, também é mais fina do que no interior do país, o que facilita a ocorrência de terremotos. “Onde a litosfera é mais fina, a pressão que vem do encontro das placas litosféricas vizinhas se distribui por uma área menor, concentrando as tensões e facilitando a ocorrência de rupturas nas falhas geológicas.”

Como no Nordeste, onde os sismos são mais frequentes, no Centro-Oeste há áreas em que a crosta terrestre é mais fina. A diferença é que, na região central, o manto, a camada mais densa abaixo da crosta, é mais raso do que em outras regiões. Como resultado, a litosfera, formada pela crosta e pela camada mais externa do manto, curva-se e trinca, gerando os tremores de terra (ver Pesquisa FAPESP no 207).
© JOÃO MIRANDA /O TEMPO /FOLHAPRESS
Tremor de magnitude 4,0 destruiu a sacada desta casa de Montes Claros (MG) em dezembro de 2012
Risco de terremotos
 
As informações da RSBR indicaram as regiões com maior risco de serem atingidas por tremores de terra: os estados do Ceará e Rio Grande do Norte, o sul de Minas Gerais e o Pantanal mato-grossense, de acordo com o mapa de risco sísmico apresentado em dezembro de 2016 no Boletim da Sociedade Brasileira de Geofísica. No artigo que contém o mapa, os pesquisadores informam que, no Brasil, apenas instalações críticas fazem análises sismológicas sistematicamente, como usinas nucleares e barragens hidrelétricas. “Aqui quase ninguém planeja a construção de casas e edifícios em função dos possíveis sismos, que podem ocorrer em qualquer lugar”, afirma o geofísico Lucas Vieira Barros, professor da Universidade de Brasília (UnB). O poder de destruição de um terremoto não depende apenas da magnitude do tremor. A qualidade das construções e a capacidade de resposta da população podem aumentar ou diminuir o impacto.
No Brasil, com base em registros históricos, ocorrem em média dois tremores de magnitude 6,0 ou maior por século, enquanto nos Andes os eventos com essa intensidade são mensais. “Um terremoto resulta da liberação abrupta de energia, acumulada ao longo de muitos anos, mas logo após um sismo a energia começa a se acumular outra vez”, diz Barros. Por essa razão, um tremor de mesma magnitude  poderia ocorrer no mesmo lugar, muitos anos depois.

Essa perspectiva pode ser inquietante para regiões como o município de Porto dos Gaúchos, norte de Mato Grosso. Ali ocorreu o maior terremoto já registrado no Brasil, de magnitude 6,2, em 1955, dois anos antes da chegada dos primeiros colonizadores à região. Hoje vivem cerca de 300 mil pessoas num raio de 100 quilômetros em torno do epicentro desse abalo. Por meio de sismógrafos, Barros e sua equipe identificaram uma falha geológica com 5 km de comprimento, evidenciando o risco de outro tremor avassalador. Em abril de 2009, um terremoto de magnitude semelhante, 6,3, arrasou a cidade italiana de L’Aquila e causou a morte de quase 300 pessoas.

A ideia de que os terremotos no Brasil são inofensivos está começando a mudar em razão de episódios trágicos. Em 2007 um abalo de terra de magnitude 4,9 na comunidade rural de Caraíbas, no município de Itacarambi, norte de Minas Gerais, fez a primeira vítima fatal decorrente de terremoto no país, uma criança de 5 anos de idade, e pôs abaixo quase todas as casas do bairro.
Resposta rápida
No Centro de Sismologia, três monitores recebem dados via satélite ou de internet das 80 estações sismológicas. Outros três acompanham a movimentação do site do IAG e da página do centro no Facebook, pelos quais chegam relatos de terremotos no Brasil. Desde 2015, o site já recebeu mais de 700 relatos, a maior parte de moradores das regiões Sudeste e Nordeste.

Foi assim que a equipe do IAG soube dos tremores em Jurupema, distrito de 2 mil habitantes no município de Taquaritinga, interior paulista, no início deste ano. “O que mais assusta é o estouro que vem debaixo da terra e o barulho que parece vir da tubulação do esgoto”, relatou o empresário Paulo César Andreguetto, de 46 anos, que trabalha em Jurupema. Em resposta, os pesquisadores instalaram o primeiro sensor em Jurupema em abril e outros três nos meses seguintes, já que os tremores se tornaram frequentes – no final de maio, já haviam passado de 100. Os tremores são de intensidade baixa, não atingem magnitude 2,0, mas, por surgirem próximos ao solo, assustam os moradores, fazem tremer as janelas e os quadros caírem das paredes.

“Os tremores em Jurupema ocorrem com maior frequência quando chove mais”, observa José Roberto Barbosa, técnico do Centro de Sismologia responsável pela instalação dos sensores em Taquaritinga. Segundo ele, a hipótese provisória é de que os poços para extração de água perfurados há pouco tempo contribuam para os abalos, como já aconteceu em Bebedouro, também no interior paulista (ver Pesquisa FAPESP no 170). As perfurações poderiam intensificar as fraturas das rochas basálticas sob a superfície. Por causa desses poços, supõe-se que, quando chove, a água penetre mais facilmente e em maior quantidade pelas fraturas das rochas, atuando como um lubrificante e ajudando a liberar as tensões acumuladas nessas fraturas. “Os poços anteciparam um tremor que deveria acontecer somente daqui a uns 100 anos”, supõe Barbosa.

Projeto
 
Mecanismos focais no Brasil com modelagem em forma de onda (nº 14/26015-7) Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Marcelo Sousa de Assumpção (USP); Bolsista Fabio Luiz Dias; Investimento R$ 59.667,09.

Artigo científico
 
ASSUMPÇÃO, M. et al. Intraplate stress field in South America from earthquake focal mechanisms. Journal of South American Earth Sciences. v. 71. p. 278-95. 2016.

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