quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Terra nativa

Algo extraordinário está acontecendo em território índio: tribos americanas que um dia foram despojadas de suas áreas mostram agora como recuperar a natureza.

Por Charles Bowden
Foto de Jack Dykinga


Terra nativa

Reserva Red Lake
O pôr do sol flameja sobre o lago Thunder, um dos 14 da Reserva de Red Lake.

No cânion Santa Clara, no Novo México, algo novo está surgindo debaixo do sol: uma tribo de nativos americanos está restaurando sua terra ancestral. Esculpidas em um penhasco vulcânico 60 metros acima de um arroio chamado Santa Clara, as habitações que o povo Puye escavou na rocha contêm centenas de cômodos em construções entalhadas, além de pelo menos outras 700 moradias abertas no tufo vulcânico mais abaixo no despenhadeiro. Ninguém vive lá há cinco séculos. A povoação provavelmente foi criada em uma época de boas chuvas, e, por volta de 1580, a seca esvaziou esse pueblo. Os descendentes de seus habitantes vivem às margens do rio Grande, 13 quilômetros abaixo, na Reserva Indígena Pueblo de Santa Clara. A tribo trabalha para restaurar toda a vertente do arroio a seu estado natural, após décadas de abandono. No futuro, milhares de hectares recuperarão a abundância nativa de plantas,


Os índios de Santa Clara estão entre um número crescente de tribos americanas empenhadas em programas para devolver à natureza terras arruinadas por gerações de uso humano. Existem 564 tribos reconhecidas pelo Departamento de Assuntos Indígenas (Bia, na sigla em inglês), cujas reservas abrangem 22 milhões de hectares (em contraste com 34 milhões de hectares controlados pelo Serviço Nacional de Parques). A maior parte dessas terras não é administrada como área de preservação, mas algo extraordinário está emergindo no território indígena. Os que um dia tiveram suas terras tomadas, os que já foram dominados, muitas vezes brutalmente, pelo governo americano, hoje dão um exemplo de como manejar o meio ambiente.

Em 1979, as tribos confederadas Salish e Kootenai, em Montana, foram as primeiras do país a destinar terras tribais à preservação: 37 mil hectares de montanhas e pradarias da Reserva Flathead. Depois disso, o povo Nez Perce adquiriu 6 590 hectares de terras ancestrais no nordeste do Oregon que serão deixados exclusivamente para os peixes e animais selvagens. As tribos Assiniboine e Sioux de Montana dedicam-se a trazer os bisões de volta à Reserva de Fort Peck. Em Minnesota, os chippewas, ou ojibwas, recuperaram uma devastada população de peixes do lago Red. Na Reserva de Fort Apache, no Arizona, a ameaçada truta-apache está encontrando novo lar.

O programa de conservação do Pueblo de Santa Clara começou de um modo inusitado. Era noite alta em maio de 2000 quando escapou do controle uma queimada para remover o mato na reserva vizinha, chamada de Monumento Nacional Bandelier. O "Incêndio de Cerro Grande", como esse desastre veio a ser chamado, destruiu 235 construções nas cidades de Los Alamos e White Rock e devorou mais de 19 mil hectares, incluindo o norte do cânion Santa Clara. Quando a fumaça se dissipou, a tribo de Santa Clara fechou o cânion, uma atração turística de longa data, e anunciou que assumiria a administração de suas terras, que estavam sob a jurisdição do Bia.

Hoje a fragrância de pinheiros e juníperos paira no ar da manhã sob o céu azul. A tribo removeu tamariscos, elmos siberianos e oliveiras russas, que são espécies exóticas e invasivas, de 263 hectares ao longo do rio Grande e restaurou 30 hectares de terras alagadiças. Na área da queimada acima do cânion foram plantadas 1,7 milhão de mudas de espécies como pinheiro-ponderosa, abeto-de-douglas e abetoi-branco. Onde o arroio Turkey se junta ao rio, há sinais da passagem de alce por toda parte: cascas mastigadas de choupos derrubados pelo vento, fezes na neve. Há 15 anos, o último castor deixou essa região. Agora as tribos esperam que, com a restauração da vegetação ribeirinha, os castores voltem. O diretor de recreação do pueblo, Stanley Tafoya, dá uma explicação singela: "Estamos tentando restaurar nossos recursos. Os mais velhos querem que seus netos desfrutem do cânion como nós o conhecemos".

Cabe aqui uma observação: não há éden a ser restaurado. A paisagem que os invasores europeus encontraram na América do Norte não tinha nada de natureza intocada, como costumamos imaginar. No fim da Idade do Gelo, os primeiros caçadores humanos talvez tenham contribuído para dizimar mamutes e outras espécies da megafauna da época. Depois disso, por milhares de anos, os nativos americanos manipularam a terra com represas, canais e campos, conforme suas necessidades de sobreviver. Derrubaram e queimaram regularmente as florestas para plantar e caçar.

Em nossa era, algumas terras tribais estão atulhadas de lixo, e certas tribos aumentam suas receitas abrindo lixões para dejetos sólidos. No cânion Santa Clara, o desaparecimento do castor quase certamente foi apressado pelos índios - ainda hoje essas terras servem de pasto para o rebanho bovino da tribo. Mas, com a intenção de restaurar a vegetação das margens e trazer de volta os castores, a tribo começou a erigir cercas para impedir o acesso do gado às áreas alagadiças e adotou um plano de manejo das pastagens.

Muitos dos projetos de conservação que conseguem avançar estão sendo financiados com dinheiro de jogo e outros empreendimentos. O Pueblo de Santa Clara, por exemplo, possui e dirige um hotel-cassino, o Black Mesa Golf Club, além do Cinema Dreamcatcher, na vizinha Española. E é claro que alguns nativos são tão ignorantes das coisas da terra quanto um típico americano suburbano que roda por aí num utilitário esportivo grandalhão e mata o tempo à noite vendo DVD. No entanto, a cultura deles viveu próxima da terra por séculos, e seus anciões contam histórias de um tempo não alcançado pela imaginação da civilização industrial. Assim permanece entre os nativos americanos a fé de que eles podem redescobrir o ambiente no qual seus ancestrais sabiam como falar com os deuses.

Em um nevoento trecho da costa 320 quilômetros ao norte de San Francisco, menos de 2% das velhas sequoias originais sobreviveram ao incessante desmatamento de algumas décadas atrás. Tiveram mais sorte que os nativos, que foram caçados e mortos durante a imoderada era surgida na esteira da corrida do ouro, em meados do século 19. Suas terras foram entregues a companhias madeireiras. Hoje as tribos formadoras de um consórcio para proteger a terra trabalham juntas no manejo e na recuperação de 1 578 hectares de terras dos sinkyones, destinadas à preservação da Lost Coast, "Costa Perdida". Esse trecho de litoral tem tal nome porque seu terreno é tão acidentado que forçou a Highway 1, a rodovia que corta grande parte da costa californiana, a desviar seu traçado para o interior. Em Sinkyone, as tribos estabeleceram um precedente: criaram uma área intertribal de preservação onde as árvores nunca mais serão derrubadas para uso comercial.

O chão agora é um tapete marrom de folhas. As árvores são torres, e tudo é sombra. Por muito tempo, essa costa foi de fato perdida para os europeus. Os espanhóis, ao chegar, não encontraram nenhuma enseada aproveitável e foram rechaçados por tempestades. Antes da vinda dos colonizadores, os índios sinkyones pontilhavam o vale com aldeias, entalhavam canoas no tronco da sequoia e singravam as águas caçando leões-marinhos e outros animais. Para eles, aquelas árvores gigantescas eram membros de sua comunidade, e o condor, um mensageiro do céu. O povo Sinkyone "conserta o mundo" anualmente, com uma série de cerimônias. Uma de suas histórias explica que o criador fez o mundo e assentou tudo direitinho, mas "homens maus não ficaram satisfeitos e derrubaram tudo, demoliram as barrancas do oceano, cortaram as árvores, arrasaram as montanhas". Desde então, dizem os membros da tribo, "temos de cantar e dançar todo ano para repor as coisas em seu lugar".

Sally Bell tinha 10 anos há um século e meio quando homens brancos apareceram em sua casa, próxima a Needle Rock, e mataram sua família, arrancaram o coração de sua irmã ainda bebê e o jogaram no mato onde Sally se escondia. "Eu não sabia o que fazer. Meu pavor era tanto que fiquei ali escondida nem sei por quanto tempo, segurando o coração da minha irmãzinha." Só em fins dos anos 1920, as palavras de Sally finalmente foram anotadas, e o antropólogo visitante descreveu-a como "cega, senil, vê espíritos em jangadas".

O nome Sally Bell tornou-se um chamado à militância nos anos 1980, quando a madeireira Georgia-Pacific tentou derrubar algumas das últimas sequoias originais sobreviventes em um bosque de 36 hectares hoje batizado em honra a Sally. Ambientalistas acorrentaram-se às árvores, a derrubada cessou, e indícios de mudança surgiram na Costa Perdida. Em 1985, uma decisão judicial proibiu a derrubada total de 2 875 hectares de terras florestais, e cerca de metade desse trecho foi acrescentada ao Parque Estadual de Vida Selvagem dos Sinkyones. Nativos, madeireiros e ambientalistas reuniram-se para negociar um plano para a outra metade. O acordo original demarcava algumas áreas como reservas, com o restante a ser explorado após algumas décadas de descanso.

As tribos, contudo, defenderam um plano diferente. Priscilla Hunter, uma das fundadoras do conselho intertribal para preservação das terras dos sinkyones, bateu o pé e insistiu que aquelas terras não deviam ser exploradas nunca mais. Essa atitude provocou ressentimento e quase inviabilizou o acordo. Após anos de reuniões e uma forte dose de obstinação, o conselho tornou-se a principal força nas iniciativas de vários parques estaduais e ONGs para aposentar trechos de mata a fim de que as florestas históricas pudessem retornar.

Em 1997, depois de mais de um século de expropriação, o conselho adquiriu os 1 578 hectares de terras indígenas e os transformou na primeira área intertribal de preservação do país. "Chegou a hora de o nosso povo reaver a terra para protegê-la", diz Priscilla. "A costa e as florestas de sequoia são sagradas para as tribos. É onde nosso povo coleta alimento e remédio, e as montanhas são um local sagrado em que podemos sentir o poder de nossa Mãe Terra. As velhas sequoias são espiritualmente muito poderosas para nós."

Na esperança de atrair de volta um cardume de salmão, o conselho está restaurando, em conjunto com os parques estaduais da Califórnia, um arroio chamado Wolf, que atravessa Wheeler, cidade madeireira abandonada. Velhas estradas foram removidas pelo conselho e pelos parques, e a terra começa a se recobrar. Em uma serrania baixa, sequoias se retorcem com os galhos moldados pelos ventos marítimos: quase um coro florestal cantando uma música que os seres humanos modernos apenas começam a ouvir.

Do outro lado do continente, no sul da Flórida, outra tribo que já esteve à beira do extermínio faz um esforço parecido. No século 20, metade do pântano Big Cypress e do vizinho Everglades foi destruída para dar lugar a cidades e fazendas. Árvores invasivas, como a melaleuca e a aroeira, ameaçam o que ainda resta. Um projeto aprovado em 2000 acenou com um esforço para reviver as terras alagadas com a restauração de cursos d’água mais naturais; porém, até recentemente, o plano permaneceu emperrado por falta de fundos. Por isso, o povo Seminole tomou a iniciativa: em 850 hectares da Reserva de Big Cypress, os índios removem sistematicamente as plantas invasoras, restauram o pântano a níveis de água próximos aos normais e recuperam parte da natureza selvagem.

Para os membros da tribo, os pântanos Big Cypress e Everglades são relíquias da própria terra que um dia os salvou do genocídio. Quando os espanhóis desembarcam na Flórida durante a expedição de Juan Ponce de Léon, em 1513, essa área era o lar de 250 mil nativos, chamados pelos espanhóis de cimarrones, "selvagens". No século 18, esses índios eram uma pedra no caminho do poderio branco. Em 1819, os Estados Unidos compraram a Flórida da Espanha, por 5 milhões de dólares, e em seguida enterraram mais de 30 milhões nas Guerras Seminoles. Quando a carnificina terminou, cerca de 4 mil índios estavam exilados na região do atual estado de Oklahoma, e talvez uns 300 permanecessem escondidos no pântano. Durante quase todo o século 20, seus descendentes arrancaram magra sobrevivência, servindo de atração turística na área de Miami ou nos Everglades, lutando com jacarés, dançando e fabricando quinquilharias para os visitantes.

A reviravolta veio em 1988, quando o jogo foi legalizado para os índios. Hoje cada homem, mulher e criança dos 3,5 mil membros da tribo recebe uma polpuda fatia dos lucros dos cassinos. Em dezembro de 2006, a tribo fez um negócio de 965 milhões de dólares: comprou quase todos os cassinos da rede Hard Rock no mundo.

A prosperidade permite que os índios salvem um fragmento de Big Cypress que nunca foi desenvolvido porque não serve para a agricultura - o resto da reserva é ocupado por pomares, hortas e fazendas de gado. "Isso permite trazer de volta à terra o aspecto tradicional", diz Brian Zepeda, diretor da Turismo Seminole. "Os ciprestes eram tão altos e densos que pareciam um forte criado pela natureza."

Zepeda vai na frente ao pântano, abrindo caminho com um facão. Freixos, sabais e salgueiros dividem espaço com os ciprestes.
A estação seca está no começo; por isso o chão parece firme, apesar de ceder um pouco nas partes baixas e encharcadas. Cervos dardejam na orla da floresta, e algumas suçuaranas remanescentes sobrevivem na Reserva de Big Cypress - talvez 20 da possível população ameaçada, que contém uma centena desses animais em todo o estado.

Laranjas-amargas silvestres, introduzidas pelos espanhóis, também persistem. Para adocicá-las, os seminoles as preparam assadas. Em uma parte da reserva que está em recuperação há um trecho elevado no pântano onde existiu um povoado. Ali, no meio das árvores, os nativos se esconderam dos soldados quando a Guerra Seminole estava no fim. Zepeda conta que lutava com jacarés. "Mas envelheci, e os jacarés continuam jovens", lamenta.

Esta é a canção de Big Cypress e dos Everglades: a nação envelheceu, e essa terra, que agora revive ao redor da povoação abandonada, recorda um mundo que foi mais novo e primevo. O projeto abrange pouco mais de 800 hectares, em contraste com toda a área dos Everglades, que engloba mais de 1,5 milhão de hectares. E os contratados para remover as espécies exóticas são trabalhadores migrantes, não seminoles (também é assim no Pueblo de Santa Clara). Seria fácil, por isso, menosprezar a iniciativa como um gesto que não custa muito. Só que um jacaré ou um cipreste não pensariam desse modo.

Em um canal que serpenteia a área em recuperação, um jacaré aligátor salta da água à luz do sol e apanha um peixe. O canal, parte do imenso esforço de drenagem que destruiu grande área dos Everglades, é praticamente apenas uma vala industrial. No entanto, é lá que o aligátor vive, arqueado sob a luz: selvagem, pulsando de vida num mundo que se entulha de concreto, condomínios e rodovias.

Fonte: National Geographic

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