Pensador da biodiversidade
O zoólogo Paulo Vanzolini foi um dos idealizadores da FAPESP, o autor
de uma teoria sobre a origem das espécies na América do Sul e um ícone
do samba paulista
Edição 207 - Maio de 2013
Vanzolini, que morreu de pneumonia no dia 28 de abril, cinco depois de ter completado 89 anos, também escrevia sambas, sua segunda paixão, depois da zoologia. Além de compor – seu maior sucesso é Ronda, de 1951 –, às vezes ele próprio subia ao palco. Uma de suas últimas apresentações foi na choperia do Sesc Pompeia, em São Paulo, em janeiro de 2012: a mulher, a cantora Ana Bernardo, interpretava suas músicas enquanto ele aguardava sentado em uma mesa, para depois contar histórias de sua vida. Em outra canção, Quando eu for, eu vou sem pena, gravada por Chico Buarque, ele diz:
O que eu fiz é muito pouco
Mas é meu e vai comigo
Deixo muito inimigo
Porque sempre andei direito
Agasalhei neste peito
Muita cabeça chorando
Morena minha até quando
Você de mim vai lembrar
Apesar da modéstia, o que ele fez não foi pouco – e ficará, porque
ele abriu caminhos não só na biologia, mas também na estruturação da
ciência brasileira. “Vanzolini participou do movimento de professores e
pesquisadores que propuseram a criação da FAPESP e, no governo Carvalho
Pinto, teve uma contribuição fundamental para a estruturação da
instituição e pela concepção do modelo de organização que rege a
Fundação até hoje”, afirmou Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Lamento
profundamente a sua morte. Vanzolini era alguém por quem eu tinha grande
admiração.”Mas é meu e vai comigo
Deixo muito inimigo
Porque sempre andei direito
Agasalhei neste peito
Muita cabeça chorando
Morena minha até quando
Você de mim vai lembrar
Vanzolini participou das primeiras reuniões sobre a criação da FAPESP logo depois da Constituição de 1947, que autorizou instituir-se uma fundação de amparo à pesquisa em São Paulo. Foi ele quem, em 1960, redigiu a lei de criação e os estatutos da FAPESP. Com Antonio Barros de Ulhôa Cintra, reitor da USP e presidente do Conselho Superior da Fundação que se instalava, Vanzolini participou da escolha dos primeiros diretores, dos assessores. Ele foi “uma das forças de coesão da FAPESP”, escreveu a historiadora da ciência Amélia Império Hamburger, no livro FAPESP 40 anos: abrindo fronteiras.
Vanzolini foi membro do Conselho Superior em três períodos (1961 a 1967, 1977 a 1979 e 1986 a 1993). Quando Oscar Sala, diretor científico de 1969 a 1975 e presidente do Conselho Superior de 1985 a 1993, viajava, era ele quem centralizava o julgamento e o acompanhamento dos pedidos de financiamento a pesquisas ou a bolsas. “… é muito difícil ser número dois e eu era, confortavelmente”, ele contou no depoimento a Amélia Hamburger. “Quando o Oscar viajava e eu assumia, eu não resolvia da minha cabeça, resolvia com a cabeça dele, sabia os pontos em que nós pensávamos diferente e decidia como eu achava que ele iria decidir.”
Como diretor do Museu de Zoologia da USP de 1962 a 1993, ele ampliou a coleção de pouco mais de mil exemplares catalogados para os mais de 300 mil de hoje. Ele próprio datilografava rótulos e fichas de identificação dos animais guardados, lembra-se Miguel Trefaut Rodrigues, biólogo que fez o doutorado sob a orientação de Vanzolini, depois foi contratado como professor da USP, tornou-se um dos maiores herpetologistas (especialista em répteis) do país, ao lado do próprio Vanzolini. Rodrigues depois o sucedeu na direção do museu, que hoje conta com uma das maiores e mais importantes coleções zoológicas neotropicais.
Entre a guerra e a boemia
Vanzolini ouvia falar da USP e ouvia música desde pequeno: seu pai era um engenheiro civil eletricista e professor da Escola Politécnica da USP e a mãe e a irmã, musicistas. Ele se interessou pelo estudo de répteis aos 10 anos, ao visitar o Instituto Butantan, e aos 14 era estagiário do Instituto Biológico. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando cursava medicina na USP, ele se alistou como voluntário na Força Expedicionária Brasileira para lutar na Itália, mas a guerra acabou antes que ele embarcasse. Como preferia estudar bicho a tratar de gente, quando terminou o curso de medicina, em 1947, Vanzolini embarcou para fazer o doutorado na Universidade Harvard, em Boston, nos Estados Unidos, e continuar ouvindo boa música, desta vez nos bares americanos.
Um dos primeiros biólogos paulistas a fazer um levantamento amplo da biodiversidade na Amazônia – projeto pioneiro apoiado pela FAPESP em 1966, em colaboração com pesquisadores de Manaus, de Belém e dos Estados Unidos –, Vanzolini aos poucos percorreu todo o país e o continente americano, dos Estados Unidos à Argentina. “Sempre trabalhei com a mesma linha de pesquisa, procurando explicar como teria surgido a grande diversidade da fauna sul-americana”, ele contou em 2010. Seu trabalho de campo lhe permitiu propor novas formas de explicar a biodiversidade nas florestas tropicais como a Amazônia e a mata atlântica.
Por muito tempo se acreditava que, nesses ambientes, o número elevado de espécies de plantas e de animais seria o resultado de longos períodos de estabilidade climática e geológica, que teriam favorecido o cruzamento e a reprodução. No final da década de 1960, Vanzolini resgatou conceitos empregados inicialmente para explicar a diferenciação de aves na Europa para apresentar a teoria dos refúgios, proposta simultânea e independentemente pelo geólogo alemão Jurgen Haffer. De acordo com essa interpretação, elaborada em conjunto com o geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber, a América do Sul teria passado por ciclos de variações climáticas intensas no último 1,6 milhão de anos – quando esfriava muito, como entre 18 mil e 14 mil anos, as florestas tropicais perdiam espaço e encolhiam, formando nichos geográficos, os refúgios, que teriam garantido a sobrevivência de espécies menos acostumadas ao frio. Vanzolini acreditava que as espécies se formavam e se diversificavam em consequência da formação dessas ilhas e do isolamento geográfico dos seres que a habitavam, não em consequência de evolução lenta e estável, como se pensava antes. É provável que três processos tenham ocorrido nestas regiões: a formação de novas espécies, a extinção de certas espécies e a adaptação de outras, que teriam passado sem mudanças genéticas importantes pelas alterações do ecossistema.
Vanzolini afirmou em 2012 que não fez teoria nenhuma: “Era apenas um trabalho com uma espécie de bicho. O que fiz acabou sendo trazer um exemplo prático, daquilo que o Haffer havia proposto do ponto de vista teórico. Nada mais é do que um modelo [conceitual], que pode ser replicado, inclusive, para outras regiões”. Em 1970, um ano depois de a revista Science ter publicado o artigo de Haffer propondo a teoria, Vanzolini e o pesquisador norte-americano Ernest Williams publicaram um estudo de cerca de 300 páginas sobre o surgimento de uma espécie de lagarto do gênero Anolis – e em momento algum usaram a expressão teoria dos refúgios, hoje adotada pelos biólogos para explicar a riqueza biológica das florestas tropicais do Brasil.
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