Terra em trânsito
Cerca de 1 bilhão de anos atrás, boa parte das massas terrestres fazia parte do supercontinente Rodínia, nome derivado do termo russo para Terra-mãe. Até aí os especialistas parecem estar de acordo. Mas reconstituir essa imensa extensão de terra é um quebra-cabeça difícil de resolver mesmo com todas as ferramentas da geologia moderna. Em busca de se aproximar desse passado distante, um grupo internacional arquitetado em 1999 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) juntou esforços e reuniu novas evidências nos respectivos continentes. Eles não chegaram a um consenso, mas a edição de fevereiro da revista Precambrian Research traz a versão até agora mais cotada entre os autores. O mundo se aglomerava num único continente, praticamente inteiro ao sul do Equador. Os resultados vêm em bom momento, já que a própria Unesco declarou 2008 como o ano do planeta Terra.
Segundo o trabalho multinacional, Rodínia estava quase inteiramente ao sul do Equador. “Sabemos isso por causa de vestígios de glaciação que indicam quais regiões estavam perto dos pólos naquela época”, explica Benjamim Bley Brito Neves, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IG-USP). Territórios que hoje são a Índia e a China, agora no hemisfério Norte, estavam na linha equatorial. Ao norte estavam blocos que hoje integram Austrália e Sibéria. A Amazônia estava colada ao sul de Laurentia, que hoje é a América do Norte, com um fragmento a leste que hoje faz parte do México. O oeste da África estava ao sul da Amazônia, com parte de seu território no pólo Sul. A região que hoje abriga parte do sertão nordestino e por onde corre o rio São Francisco fazia parte da porção oeste da Amazônia e do ocidente africano. Já o que hoje é Bahia estava mais a noroeste, no bloco do Congo.
Comparado à distribuição atual dos continentes, esse mapa parece insano aos olhos de quem não é geólogo. Parece que as peças que formam o mundo estavam misturadas ao acaso. Os especialistas vêem algum sentido nos movimentos das massas terrestres, mas as informações de que dispõem para uma época tão remota não permitem certezas.
As informações que permitiriam localizar com mais precisão os continentes naquela época são escassas porque estão preservadas em rochas e associações rochosas raras. O geólogo da Universidade de Brasília (UnB) Reinhardt Fuck, que participou do projeto da Unesco, explica que rochas vulcânicas são material precioso porque se formam por um resfriamento rápido que cristaliza em seu interior o registro do campo magnético terrestre daquele momento. Milhões e milhões de anos depois, um especialista pode analisar esses dados paleomagnéticos e determinar a que distância do pólo aquela rocha se formou e qual era a sua orientação naquele momento. A partir disso o pesquisador pode reconstruir a trajetória que aquele pedaço de continente percorreu desde a sua origem. Esse tempo, a idade das rochas, é determinado por técnicas de datação por isótopos radiogênicos, em que elementos químicos se transformam por decaimento radioativo. “Isótopos de urânio e de tório se transformam em isótopos de chumbo”, conta Fuck, “numa taxa que conhecemos razoavelmente bem”. É essa taxa que lhe permite estimar a idade das rochas a partir das proporções de elementos que as compõem.
O paleomagnetismo resolve parte do quebra-cabeça: permite dispor as peças na orientação em que estavam, o lado superior para cima e assim por diante, e na distância correta em relação aos pólos. Mas qual fica à direita e qual à esquerda? Como elas se encaixam? Encontrar essas informações – a paleolongitude – requer um trabalho meticuloso: analisar a composição química e outras propriedades das rochas e compostos rochosos de cada área estudada e procurar onde há composições semelhantes em outros pontos do mundo. “Comparar fragmentos da crosta com base na geologia é o que os geólogos fazem todos os dias”, conta Fuck. Quando encontram associações de rochas com composição e idades semelhantes em continentes diferentes, presumem que aquelas regiões estiveram juntas em algum momento da história geológica. Assim o quebra-cabeça vai aos poucos encontrando forma, mas os encaixes dependem muito de interpretação. “Cada um tem sua opinião”, diz o geólogo da UnB, “e as hipóteses obviamente pululam”.
É por isso que o mapa de Rodínia está em constante mutação desde a primeira proposta em 1991 (ver Pesquisa FAPESP no 75). Nessa época o canadense Paul Hoffman, agora na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, cometeu o que Bley bem-humoradamente descreve como “um ato de irresponsabilidade científica” e, ao mesmo tempo, “um golpe de genialidade”. Consultado sobre por que os fósseis de plantas indicavam não haver barreiras à livre circulação e reprodução dos seres vivos, Hoffman reuniu as (insuficientes) informações já publicadas por ele e por outros pesquisadores, e propôs um supercontinente. Essa primeira versão era necessariamente inexata – e por isso poderia ser chamada de irresponsável – mas teve o efeito importante de lançar especialistas do mundo todo em busca de melhores encaixes.
Geólogos brasileiros até agora acharam em poucas áreas rochas com cerca de 1 bilhão de anos, a época de Rodínia. O mais recente mapa dos descendentes desse supercontinente na América do Sul está também na Precambrian Research de fevereiro. Elaborado por Fuck, Bley e Carlos Schobbenhaus, do Serviço Geológico do Brasil, o trabalho mostra que representantes de Rodínia se concentram no sul da Amazônia, no estado do Mato Grosso, e na Região Nordeste, sobretudo Bahia e Pernambuco. “A América do Sul é um mosaico de fragmentos de Rodínia”, afirma Bley.
Sem certezas – Parte das rochas necessárias para reconstruir Rodínia está agora inacessível – embaixo de cadeias montanhosas, de bacias sedimentares ou no fundo do mar. O custo de amostrar essas áreas é proibitivo para pesquisadores, que acabam dependendo de empreendimentos de grande porte como perfurações em busca de petróleo. Foi esse tipo de amostras que permitiu incluir no mapa do projeto da Unesco a região de Paranapanema, hoje no Sudeste brasileiro, cujas rochas se escondem debaixo da bacia do Paraná e que por isso até agora fora ignorada em reconstituições de Rodínia.
Os pesquisadores brasileiros estão bastante convencidos de que o bloco amazônico compunha Rodínia pelo menos nas proximidades do continente Laurentia, que reunia as atuais América do Norte e Groenlândia. Talvez estivesse encostado. Mas há discussões quanto à posição relativa das duas massas terrestres. Manoel D’Agrella Filho, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), é um dos que não estão convencidos da versão publicada pelo grupo ligado à Unesco. Para ele, o bloco amazônico se chocou contra o sul de Laurentia, que depois contornou em sentido horário. Esse modelo, proposto pelo norte-americano Eric Tohver, também do IAG, explica as cicatrizes deixadas pelo choque no continente norte-americano – deformações geológicas conhecidas como cinturão Grenville – e encaixa o território amazônico a sudeste da posição atual da América do Norte durante o período de Rodínia.
A grande diferença entre a proposta internacional e a dos pesquisadores do IAG não é a posição relativa das atuais Amazônia e América do Norte. Eles discordam, porém, a respeito das características da colisão entre as duas massas terrestres. Para D’Agrella, o mapa de Rodínia era mais dinâmico do que aparece nas propostas vigentes. Um trabalho coordenado por ele, publicado este ano na Earth and Planetary Science Letters, uma das revistas de maior prestígio nas ciências da Terra, reforça a idéia de que o bloco amazônico deslizou em torno de Laurentia e dá força a um continente em que a posição relativa das massas terrestres mudou constantemente. Diante do trabalho do grupo da Unesco, o pesquisador do IAG mantém sua opinião, mas admite que por enquanto não há como declarar vencedores no debate. “Os dados paleomagnéticos podem ser interpretados de diversas maneiras”, diz. E as informações disponíveis não permitem refutar nenhuma das hipóteses.
Outro ponto de contenda diz respeito à bacia do rio São Francisco. No mapa do grupo internacional, o bloco que hoje abriga a bacia do rio São Francisco faz parte de Rodínia. Para D’Agrella, porém, essa interpretação não leva em conta indícios do grande oceano Brasiliano que nessa época separaria boa parte dos blocos africanos e sul-americanos – a região do São Francisco inclusive – do conjunto formado por Amazônia, Laurentia e oeste da África. Para D’Agrella, o oceano realmente separava Rodínia do território que agrupava o que hoje é a bacia do rio São Francisco e as regiões africanas do Congo e o Kalahari.
Continentes ciganos - Seja qual for seu tamanho e forma, um continente muito grande não pode persistir. “Estamos sobre uma bomba térmica”, explica Bley. Debaixo dos nossos pés há entre 150 e 300 quilômetros de litosfera, ou crosta terrestre, sólida. É uma membrana finíssima em relação ao resto do planeta – cerca de 6 mil quilômetros até o centro da Terra. As altas temperaturas do manto terrestre, a camada abaixo da crosta, conferem características viscosas aos minerais que o compõem, que ao longo dos milhões de anos fazem movimentos com o efeito de liberar o calor. Quando um supercontinente se forma, o calor se acumula sob a litosfera e pode chegar a rachá-la, como quando se apóia uma chaleira com água fervente sobre uma mesa de vidro. É o que aconteceu com Rodínia: o continente se quebrou em quatro grandes massas – Laurentia, Gondwana, Báltica e Sibéria – que há cerca de 230 milhões de anos voltaram a congregar-se em Pangéia. Foi esse supercontinente, mais conhecido, que deu origem ao mapa-múndi de hoje.
Enquanto geólogos discutem hipóteses e escavam rochas em busca de respostas, os continentes continuam sua incansável migração. As placas oceânicas são mais pesadas do que as continentais e por isso tendem a entrar por baixo dos continentes. Nesse processo o oceano Pacífico enrugou a América do Sul, dando origem à cordilheira dos Andes, e causa terremotos freqüentes ao longo do litoral. Muito lentamente o Pacífico se está fechando, enquanto o Atlântico, o Índico, o Tasmânico, o mar Vermelho e o golfo Pérsico se alargam alguns centímetros por ano. Se as rotas atuais continuarem as mesmas, em cerca de 50 milhões de anos os geólogos prevêem que Ásia e América se encontrarão num novo grande continente. Ele ainda não existe mas já tem nome: Amásia.
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