sexta-feira, 6 de abril de 2012

Em busca do cão ideal

Como o homem alterou a evolução canina

por Evan Ratliff Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL

                Cachorros: Pug e São Bernardo
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O pug Oakley (em primeiro plano) e o são-bernardo Little Dude são exemplos da rara diversidade morfológica da espécie. Se as pessoas fossem tão diferentes em altura, o cão menor teria pouco mais de meio metro, e o mais alto, quase 10 metros.

Os donos desses casacos são os frequentadores daquela que é a mais exclusiva reunião de cães no mundo, a qual ocorre todos os anos na véspera da exposição canina do Westminster Kennel Club. No dia seguinte, os melhores cães do país, abrangendo 173 raças, vão disputar um momento de glória no outro lado da rua, no ginásio Madison Square Garden. Hoje, porém, a função lembra mais uma recepção a convidados de quatro patas, enquanto seus donos fazem fila para se inscrever naquele que é o alojamento oficial da competição. Em um carrinho de bagagens, um basset hound fita com olhar desanimado um terrier hiperativo. Diante da lojinha de lembranças, um mastim tibetano, com patas tão grandes quanto mãos humanas, esfrega seu focinho no de um pug, que funga sem parar.

A diversidade explícita no saguão do hotel – uma vertiginosa gama de dimensões corporais, formatos de orelha, comprimentos de focinho, hábitos de latir – é o que faz os amantes de cachorros serem fanáticos. Por motivos tanto práticos quanto fantasiosos, o melhor amigo do homem foi sendo aperfeiçoado a ponto de se tornar o animal mais diversificado do planeta – uma realização assombrosa, pois a maioria das 350 ou 400 raças hoje existentes surgiu apenas há um par de séculos. O que os criadores fizeram foi acelerar o ritmo normal da evolução, mesclando características caninas disparatadas e acentuando- as ao privilegiar os filhotes que apresentavam de modo mais marcante os atributos buscados. Por exemplo: a fim de obter um cão bem adaptado a encurralar texugos, considera-se que os caçadores alemães nos séculos 18 e 19 tenham realizado algum tipo de cruzamento entre cachorros de caça – o basset hound, nativo da França, sendo o mais provável – e de toca, como os terriers, criando uma variação sobre o tema do cão com pernas curtas, corpo roliço e capacidade de ir atrás das presas mesmo dentro de suas tocas. Assim surgiu o dachshund, ou “caçador de texugo” em alemão. A pele frouxa e flexível servia como mecanismo de defesa, permitindo que o cão suportasse mordidas de dentes afiados. E a cauda longa ajudava os caçadores a puxá-los para fora da toca, com o texugo preso à boca.

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Os caçadores, é lógico, não levavam em conta o fato de que, ao forçar o surgimento dessas estranhas variedades, eles também estavam, antes de tudo, mexendo com os genes que determinam a anatomia canina. Desde então os cientistas consideravam que, sob a diversidade morfológica, havia uma multiplicidade genética equivalente. Mas um recente surto de pesquisas sobre o genoma canino aponta para conclusão oposta: o imenso mosaico de formas, cores e tamanhos dos cães deve-se, em boa parte, a alterações em apenas um punhado de regiões do genoma. A diferença entre o corpo diminuto do dachshund e o corpo maciço do rottweiler é ocasionada pela sequência de um único gene. O mesmo ocorre com a disparidade entre as pernas curtas do dachshund – conhecidas como condrodisplasia, um tipo de nanismo – e as pernas longas e finas do galgo.
E isso se repete em todas as raças e quase todas as suas características. Em um projeto denominado CanMap – uma parceria entre a Universidade Cornell, a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) americanos –, pesquisadores colheram amostras do DNA de mais de 900 cães, abrangendo 80 variações, e também de canídeos selvagens, como lobos e coiotes. Eles constataram que o tamanho corporal, o comprimento e o tipo do pelo, o formato do focinho, a posição das orelhas, a cor do pelame e outros traços que em conjunto definem a aparência de uma raça são controlados por 50 comutadores genéticos. A diferença entre as orelhas caídas e as eretas é determinada por uma única região dos genes no cromossomo canino 10, ou CFA10. A pele enrugada de um shar-pei depende de outra região, denominada HAS2. Basta mexer em alguns comutadores e um dachshung vira um doberman, pelo menos em aparência. Outra mexida e o doberman vira um dálmata. “O que está ficando mais evidente”, comenta o biólogo Robert Wayne, “é que a diversidade dos cães domésticos resulta de um instrumental genético restrito.”

As notícias na imprensa a respeito de genes específicos a cabelo ruivo, alcoolismo ou câncer de mama dão a falsa impressão de que a maioria das características é governada apenas por um ou alguns genes. Na verdade, a genética simplificada da morfologia canina é uma aberração. Na natureza, em geral, uma característica física ou um estado de enfermidade são o resultado de uma complexa interação de muitos genes, cada qual fazendo a sua contribuição. Nos seres humanos, a altura de uma pessoa é determinada pela interação de 200 regiões do gene.
Então, por que motivo cachorros são tão diferentes uns dos outros? A resposta, dizem os pesquisadores, está em sua história evolutiva incomum. Os canídeos foram os primeiros animais a ser domesticados – um processo que teve início entre 20 mil e 15 mil anos atrás, quando os lobos começaram a rondar o núcleo de povoamentos, em busca de alimentos. Há divergências entre os especialistas sobre quão ativo foi o papel desempenhado pelos homens na etapa seguinte, mas o relacionamento acabou sendo vantajoso para ambas as espécies, à medida que os cães passaram a nos ajudar nas caçadas, a montar guarda e a nos fazer companhia. Protegidos das duras condições naturais em que sobrevivem apenas os mais aptos, os animais semidomesticados prosperaram mesmo quando abrigavam mutações genéticas deletérias – pernas atarracadas, por exemplo –, que os teriam levado à extinção se fizessem parte de pequenas populações selvagens.
Milhares de anos mais tarde, os criadores aproveitavam esse material bruto diversificado quando começaram a aperfeiçoar as estirpes modernas. Eles tendiam a buscar características desejáveis em um amplo conjunto, de modo a obter o tipo de cão desejado. Também privilegiavam a novidade, pois, quanto mais diversa uma linhagem, mais provável que ela alcançasse reconhecimento oficial como nova raça. Uma das consequências dessa seleção artificial foi o favorecimento de genes isolados de maior impacto, possibilitando que certas características fossem fixadas com maior rapidez do que jamais seria possível em grupos de genes de menor impacto.

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Essa descoberta tem implicações que os cientistas estão começando a compreender – e elas podem ajudar no entendimento dos transtornos genéticos em seres humanos. Até agora, mais de uma centena de doenças caninas foram correlacionadas a mutações em genes específicos, muitos dos quais com equivalentes humanos. Essas enfermidades podem refletir toda uma gama de mutações que concorre para aumentar a probabilidade de doenças caninas, tal como em nós. Porém, como os cães foram segregados em raças desenvolvidas de poucos indivíduos originais, cada estirpe apresenta um conjunto bem mais restrito de genes fora do padrão – com frequência, apenas um ou dois – associados à enfermidade. Por exemplo, pesquisadores que estudavam uma doença degenerativa do olho, a retinose pigmentar – encontrada nos seres humanos e nos cachorros –, identificaram 20 genes caninos que causavam a doença. Mas um gene era culpado no caso dos schnauzers e outro no dos poodles, o que deu algumas pistas específicas para investigar a causa da doença em pessoas.
Ao mesmo tempo que aperfeiçoavam animais para adequá-los a suas necessidades, os criadores da época vitoriana criavam populações geneticamente isoladas, sem se dar conta de quão úteis viriam a ser aos cientistas. As perspectivas são promissoras no caso do câncer, do qual certos tipos podem se manifestar com frequência de até 60% em algumas raças caninas, mas atingem apenas uma em cada 10 mil pessoas. “Somos nós que estamos fazendo o estudo dos genes”, diz Elaine Ostrander, uma especialista em evolução e enfermidades caninas do Instituto Nacional de Pesquisas do Genoma. “Mas foram os criadores que realizaram todo o trabalho de campo.”

Um tipo de característica que até agora se mostrou resistente à análise no âmbito do projeto CanMap é o comportamental. Até hoje apenas um único gene mutante associado ao comportamento foi identificado: a versão canina do gene do transtorno obsessivo-compulsivo em seres humanos, que pode levar os dobermans a sugar o próprio pelo até sangrar. Traços típicos mais corriqueiros, como lealdade, tenacidade e o instinto de pastoreio, têm uma base genética. Mas também podem ser afetados por fatores que variam desde a alimentação até a convivência com crianças, e por isso é difícil quantificá-los com o rigor necessário a um estudo científico. Mesmo assim, “temos ótimas condições para entender o comportamento dos cães”, diz o geneticista Carlos Bustamante, do CanMap. Afinal, salienta ele, existem por aí milhões de amantes desses bichos dispostos a ajudar na pesquisa de campo.



 

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