A dança das bacias
No último 1,3 milhão de anos, a bacia do rio São Francisco perdeu
espaço para a do rio Doce, que cedeu área à do Paraíba do Sul
SALVADOR NOGUEIRA |
Edição 203 - Janeiro de 2013
À primeira vista, o resultado poderia preocupar quem teme pelo futuro de bacias como a do São Francisco. Mas não é o caso. Primeiro porque esse processo de desgaste ou denudação da paisagem é muito lento. Segundo porque os estudos geológicos são, em certo sentido, bem parecidos com aplicações na bolsa de valores: resultados do passado geológico não permitem fazer projeções acuradas.
“Os dados indicam como foi o processo no último 1,3 milhão de anos e não permitem fazer especulação preditiva, pois, em ciências da Terra, existem processos de baixa frequência e alta intensidade [como os grandes terremotos] que invalidariam qualquer previsão”, afirma Luis Felipe Cherem, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) e primeiro autor do estudo, feito em colaboração com pesquisadores das universidades federais de Ouro Preto (Ufop) e de Minas Gerais (UFMG) e do Centro Europeu de Pesquisa e Ensino do Meio Ambiente, na França.
As feições mais superficiais da região, desde o litoral até a chegada à bacia do São Francisco, já bem dentro do continente, são resultado em grande parte de processos geológicos violentos, causados pela tectônica de placas, o mesmo fenômeno que leva à eterna dança dos continentes pelo globo. O primeiro desses grandes movimentos ocorreu cerca de 130 milhões de anos atrás. Ele rompeu o supercontinente chamado Gondwana originando a Antártida, a América do Sul, a África, a Austrália, a península Arábica, a Índia e o oceano Atlântico.
Após esse estágio inicial de formação da costa sul-americana, dois eventos tectônicos adicionais afetaram a região nos últimos 65 milhões de anos, criando três degraus, segundo os pesquisadores da UFMG e da Ufop. O mais baixo é o da bacia do rio Paraíba do Sul, um planalto situado a cerca de 400 metros acima do nível do mar. Mais para o interior encontra-se a bacia do rio Doce, com altitude média de 800 metros e, mais adiante, as bacias dos rios São Francisco e Paraná, a 1.100 metros acima da superfície do oceano.
No trabalho que demonstrou o avanço progressivo dos planaltos mais baixos em direção ao interior do continente, os pesquisadores coletaram amostras de sedimento fluvial do chamado degrau de Cristiano Otoni, uma escarpa com 30 quilômetros de extensão e altura variando de 250 a 350 metros que separa a bacia do São Francisco da do rio Doce. Eles também analisaram material obtido ao longo dos 65 quilômetros da serra de São Geraldo, que divide a bacia do rio Doce e a do Paraíba do Sul. Em ambos os casos, eles buscaram amostrar material tanto na borda como no reverso das escarpas, os declives acentuados que separam um degrau do outro. O objetivo era quantificar, ao longo do último milhão de anos, o fenômeno conhecido como denudação.
Trata-se de um processo causado por erosão constante ao longo do tempo. Chuva e vento decompõem e removem as rochas mais superficiais, descobrindo o terreno que está embaixo. É como se a superfície da região fosse paulatinamente perdida, deixando exposta a rocha do subsolo.
Para calcular o ritmo da denudação, os pesquisadores analisaram os sedimentos fluviais no alto e no sopé dos degraus. Contrastando o material dessas áreas, é possível estimar quantos milímetros são desgastados a cada mil anos (ou quantos metros a cada milhão de anos).
Como era de esperar em processos erosivos, com a ajuda do declive, as escarpas naturalmente sofrem mais denudação que os planaltos em si. Para o caso do planalto da bacia do São Francisco notou-se que ele perde, em média, 8,77 metros a cada milhão de anos. Já na bacia do rio Doce, a perda é de 15,68 metros no mesmo período. Nas escarpas, esse número é compreensivelmente maior: 17,5 metros a cada milhão de anos para o degrau de Cristiano Otoni e 21,22 metros para a serra de São Geraldo.
Esses resultados indicam que o processo de denudação, fenômeno de causas múltiplas que pode ocorrer em ritmos que variam de uma região para outra, ainda se encontra em curso. Segundo Cherem, esses valores são consistentes com o que se esperaria observar na comparação entre os planaltos: os que se encontram mais próximos do interior dos crátons, a parte mais estável das placas tectônicas, em geral são mais maduros e sofrem menos denudação com o passar do tempo.
Contraste de resultados
Cherem, Varajão e seus colegas chegaram a essas taxas de denudação ao analisar a presença de certa variedade do elemento químico berílio nas rochas. O berílio é o quarto elemento químico da tabela periódica, com quatro prótons em seu núcleo. Para medir a idade das rochas, os pesquisadores avaliam a presença de berílio-10, versão do elemento com seis nêutrons que tende a decair com o tempo, perdendo um de seus nêutrons. No caso do berílio-10, a meia-vida, tempo em que metade dos átomos da amostra leva para se desintegrar, é estimada em 1,38 milhão de anos. Assim, comparando a quantidade dele num solo, é possível ter uma ideia da idade da amostra. “Os resultados obtidos em Minas são semelhantes aos observados em outras margens divergentes [onde ocorre a separação entre dois continentes] ao redor do mundo”, afirma Cherem.
Estudos anteriores feitos em uma região próxima dali, mas com técnicas diferentes, havia chegado a taxas de denudação distintas. Em 2010, os pesquisadores Silvio Hiruma, do Instituto Geológico de São Paulo, Claudio Riccomini, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, e colaboradores publicaram um estudo na Gondwana Research indicando que a velocidade de denudação poderia ser bem maior.
“Nossos dados sugerem que algumas partes da serra da Bocaina apresentaram denudação superior a 3 mil metros nos últimos 60 milhões de anos, o que daria algo em torno de 50 metros por milhão de anos”, diz Riccomini, que, com pesquisadores da França, acaba de publicar um novo estudo sobre o assunto no Journal of Geophysical Research.
A divergência nos ritmos de denudação pode ser decorrente de dois fatores. O primeiro é que a técnica usada pela equipe da USP permite analisar o que ocorreu num período maior de tempo – e a denudação pode arrefecer à medida que os planaltos amadurecem. O segundo é que o estudo de Riccomini e colegas se concentra na serra do Mar, que, apesar de próxima à área estudada por Cherem e colaboradores, tem uma história geológica diferente da vista nas regiões mais interiores do continente. “Não há contraposição ou negação mútua, mas complementaridade na busca do melhor entendimento da dinâmica do relevo do Sudeste do Brasil”, diz o pesquisador da UFG.
Cada amostra, uma história
Segundo Cherem, o número de amostras analisadas confere segurança sobre os resultados. Ainda assim é possível que as taxas de denudação variem um pouco à medida que se aumente o número de amostras. “Eu poderia indicar vários locais onde os ganhos ou perdas de espaços das citadas bacias variam muito de uma para outra”, afirma Allaoua Saad, da Universidade Federal de Minas Gerais, estudioso da geomorfologia do Sudeste brasileiro.
Saadi reconhece, porém, a qualidade do estudo conduzido por Cherem e Varajão. “Os resultados apresentados em termos de taxas de denudação são fruto de medições em pontos escolhidos com base em critérios de homogeneidade nas diversas bacias”, diz. “O que essas medidas expressam é uma crença de que aquilo representa uma medida real de denudação de longo termo e generalizável a ponto de conduzir às conclusões apresentadas”, comenta o geomorfólogo da UFMG.
Além das medições do berílio usadas no estudo da Geomorphology, Cherem afirma que outros dados, apresentados em sua tese de doutoramento, corroboram a ideia de que, no Sudeste brasileiro, as escarpas estão recuando aproximadamente 0,01 milímetro por ano, fazendo as bacias mais altas perderem área para as mais baixas. De toda forma, ele admite que os mistérios geológicos do Sudeste brasileiro ainda estão longe de ter sido todos desvendados. “As escarpas continuam lá”, diz, “e devem continuar a ser estudadas”. n
Artigo científico
CHEREM, L.F.S. et al. Long-term evolution of denudational escarpments in southeastern Brazil. Geomorphology. v. 173-4. p. 118-27. 2012.
COGNE, N. et al. Post-breakup tectonics in southeast Brazil from thermochronological data and combined inverse-forward thermal history modeling. Journal of Geophysical Research. v. 117. 2012.
HIRUMA, S.T. Denudation history of the Bocaina Plateau, Serra do Mar, shoutheastern Brazil: relationships to Gondwana breakup and passive margin development. Gondwana Research. v. 18. p. 674-87. 2010
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