Caminho inverso
Estudo indica que árvores da serra da Mantiqueira captam água pelas folhas e a transportam para o solo
IGOR ZOLNERKEVIC |
Edição 208 - Junho de 2013
Em uma expedição no início de maio à serra da Mantiqueira, o biólogo Paulo Bittencourt parou diante de um córrego de água fria e cristalina numa estrada de terra entre fazendas de criação de ovelhas próximas ao Parque Estadual de Campos do Jordão. “Pode beber que não tem como estar poluída. Essa água vem lá de cima”, disse, apontando para o local onde nasce o riacho, a cerca de 2 mil metros de altitude, em um morro coberto por uma mata de árvores baixas com folhas pequenas. “São riachos assim que descem a serra para alimentar e manter estáveis os rios maiores lá embaixo”, explicou. Paulo faz mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sob a orientação do ecólogo Rafael Oliveira, que trabalha para quantificar a contribuição desse tipo pouco conhecido de mata atlântica para o abastecimento de água do Vale do Paraíba.
“Há uma importante relação entre essas matas e as nascentes da serra da Mantiqueira”, afirma Oliveira. Sem essa vegetação, a chamada floresta tropical montana nebular, a neblina que sobe a serra seguiria continente adentro, carregando a umidade que obtém a partir da evaporação dos rios e a transpiração das plantas no vale. As pequenas matas nebulares nas encostas montanhosas retêm umidade quando o vapor da neblina se condensa em gotas sobre suas folhas e escorre para o solo. Estudos em matas nebulares tropicais da Costa Rica sugerem que a captação de água da neblina pelas árvores pode contribuir com até 30% do volume dos rios de uma região.
Uma porção menor da água da neblina retorna ao solo de um modo surpreendente: por dentro das árvores. Em artigo publicado on-line em março na New Phytologist – será a capa da edição de julho –, a equipe de Oliveira mostra que, quando o solo está seco e a neblina aparece, as folhas da casca-de-anta – Drimys brasiliensis, a árvore mais abundante nessas matas – são capazes de absorver a água que se deposita em sua superfície.
Os pesquisadores observaram que o sistema vascular da árvore conduz essa água até suas raízes e libera parte dela no solo. Segundo Oliveira, é a primeira vez que se observa essa forma de transporte de água em uma árvore tropical. “Essa constatação muda como enxergamos a interação entre as árvores e a atmosfera”, afirma.
Até pouco tempo atrás, achava-se que era impossível as árvores absorverem água pelas folhas. Afinal, a superfície das folhas é coberta por uma fina camada de cera impermeável, a cutícula, que evita a perda de água para o ambiente. Mas, nos últimos tempos, segundo o botânico Gregory Goldsmith, da Universidade da Califórnia em Berkeley, foram identificadas 70 espécies de plantas com folhas capazes de absorver água. A botânica Aline Lima confirmou a absorção de água pelas folhas em seu mestrado, orientado por Oliveira e parte do projeto Biota Gradiente Funcional, financiado pela FAPESP. Ela pingou gotas de água contendo cristais fluorescentes sobre folhas de casca-de-anta em uma estufa, para depois observar ao microscópio o caminho percorrido pela água. O trabalho comprovou que a água atravessa a cutícula e penetra na folha. Segundo Oliveira, estudos recentes feitos na Alemanha mostram que os cristais de cera da cutícula são dinâmicos. Numa atmosfera muito úmida eles se rearranjam e deixam a folha permeável.
Na contramão
Esses resultados contrariam o que dizem os livros-texto de biologia. Esses livros ensinam que o fluxo de água nas plantas segue um sentido único. Segundo a visão clássica, as folhas estão sempre transpirando, perdendo água para o ar por meio dos estômatos, orifícios na superfície inferior das folhas que abrem e fecham segundo a disponibilidade de luz e água. Como alguém que sorve líquido por um canudo, a perda de água por transpiração exerce uma força de sucção no interior dos vasos condutores fazendo a água subir até as folhas enquanto mais água é retirada do solo pelas raízes. “É o que a maioria das plantas faz o tempo todo”, explica Oliveira. Estudos sugerem que até 50% da umidade que circula na atmosfera em certas regiões venha da transpiração de suas florestas.
Nos últimos anos, entretanto, alguns pesquisadores começaram a observar que esse fluxo pode ser invertido em situações em que o ar está mais úmido do que a terra. O biólogo Todd Dawson, que orientou Oliveira durante seu doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, descreveu em 2004 como as sequoias transportam água na contramão.
As florestas de sequoias, árvores com até 115 metros de altura, ocorrem em regiões da Califórnia onde cai uma quantidade de chuva comparável à do sertão nordestino. O que salva essas árvores da seca é a neblina vinda do mar, que satura o ar de vapor-d’água. Nessa condição, as folhas das sequoias absorvem água e param de transpirar, cessando o fluxo de baixo para cima. Ao mesmo tempo, a secura no interior do tronco cria uma força de sucção capaz de puxar a água da atmosfera para baixo, até a árvore se reidratar.
Tentando identificar um fenômeno semelhante em árvores brasileiras, Oliveira procurou por florestas nebulares em todo o país até encontrar as matas da serra da Mantiqueira, onde nascem vários rios, embora seja uma região com secas frequentes. Nas matas do Parque Estadual de Campos do Jordão, onde trabalha desde 2009, chove um pouco mais do que no cerrado. O clima é seco de junho a agosto, embora quase sempre haja neblina no começo e no fim do dia.
Para entender como a casca-de-anta sobrevive nessas condições, Cleiton Eller, aluno de doutorado de Oliveira, cultivou essas árvores em uma estufa na Unicamp em três condições: recebendo água pela terra, hidratadas por meio de uma neblina artificial borrifada sobre as folhas ou sem irrigação. As plantas tratadas só com neblina sobreviveram por dois meses.
A fim de confirmar que a água absorvida pelas folhas podia ser transportada até a terra, os pesquisadores realizaram um experimento complementar. Tomando cuidado para não molhar o solo, eles borrifaram as folhas da casca-de-anta com água pesada. A água pesada contém átomos de um tipo de hidrogênio mais pesado que o normal, o deutério, que podem ser detectados por um espectrômetro de massa. Segundo o raciocínio desse teste, o deutério encontrado posteriormente na terra serve como prova de que a água teria sido absorvida pelas folhas, transportada até as raízes e injetada no solo. Pelos números obtidos no experimento, Oliveira estima que, se uma árvore transpira 10 litros de água por dia, ela é capaz de transportar em seu interior, no mesmo dia, 2,5 litros de água da atmosfera para o solo.
“Esse é o nosso resultado mais impressionante”, afirma Oliveira, que encontrou apenas outro registro na literatura científica de água absorvida pelas folhas chegando ao solo. Em 1969, a botânica Fusa Sudzuki, da Universidade do Chile, demonstrou o mesmo fenômeno em um experimento com o tamarugo, árvore típica do deserto do Atacama. “O trabalho dela é bonito, mas seus resultados foram rejeitados na época”, conta Oliveira.
Possível e relevante
“O estudo do grupo da Unicamp mostra que o fluxo de água da atmosfera para o solo não só é fisicamente possível, mas fisiologicamente relevante”, observa a botânica Lúcia Dillenburg, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que publicou evidências de que as araucárias também absorvem água pelas folhas.
“Esse é um trabalho muito original”, afirma o botânico Marcos Buckeridge, da Universidade de São Paulo. Ele, no entanto, comenta que nem toda a água com deutério detectada no solo corresponde à água captada pelas folhas. Segundo Buckeridge, a planta pode ter usado a água que captou pelas folhas para produzir compostos orgânicos, como os açúcares, normalmente liberados pelas raízes. “Em questão de segundos, os açúcares trocam deutério com a água do solo”, explica. Na sua opinião, um modo de desfazer a dúvida seria repetir o experimento usando água pesada contendo oxigênio-18, que interage menos com outras substâncias do que o deutério. “Seria um experimento mais caro e complicado”, diz.
Oliveira concorda que há incerteza sobre a quantidade de água que as raízes liberam para o solo, mas ressalta que seus experimentos comprovaram o fluxo inverso da água das folhas até as raízes. “Como a maioria das plantas não tem um mecanismo que previna a liberação de água das raízes para o solo e como há um gradiente de potencial hídrico grande o suficiente para permitir o movimento de água das folhas para as raízes”, diz Oliveira, “o mais provável é que a água tenha saído das raízes para o solo”. Nos testes feitos na serra da Mantiqueira, a equipe de Oliveira traçou o fluxo de água nas árvores com sensores conectados por fios a um equipamento que armazena as informações. Agora o grupo se prepara para iniciar o monitoramento de matas nebulares com sensores sem fios, a serem desenvolvidos por engenheiros da Microsoft, com apoio da FAPESP. A ideia é acompanhar as transformações que esses ambientes podem sofrer com as alterações climáticas.
Projeto
Mudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas (nº 2010/17204-0); Modalidade: Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord.: Rafael Silva Oliveira – IB/Unicamp; Investimento: R$ 566.468,84 (FAPESP).
Artigo científicoMudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas (nº 2010/17204-0); Modalidade: Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord.: Rafael Silva Oliveira – IB/Unicamp; Investimento: R$ 566.468,84 (FAPESP).
ELLER, C. B. et al. Foliar uptake of fog water and transport belowground alleviates drought effects in the cloud forest tree species, Drimys brasiliensis (Winteraceae). New Phytologist. 2013. No prelo.
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