quarta-feira, 23 de junho de 2010
Répteis marinhos de sangue quente
O esquema reúne os principais grupos de répteis marinhos, mostrando como as formas ancestrais, ectotérmicas, foram dando origem as formas endotérmicas (imagem: reprodução/ Science).
Reconstrução de um plesiossauro coletado pela equipe do Museu Nacional/UFRJ na Antártica, feita pelo paleoescultor Orlando Grillo (foto: Alexander Kellner).
Como determinar o metabolismo de espécies extintas? Uma análise de isótopos mostrou que alguns répteis marinhos pré-históricos conseguiam controlar a temperatura interna, ao contrário de seus distantes parentes atuais.
Por: Alexander Kellner
Publicado em 21/06/2010 | Atualizado em 21/06/2010
Saber como funcionava o metabolismo de animais extintos é sempre um problema, sobretudo quando pertencem a grupos que não deixaram descendentes. Este é o caso dos répteis marinhos que dominaram os mares durante a era Mesozóica, enquanto seus parentes distantes – os dinossauros – predominavam em terreno firme.
Uma pesquisa liderada por Aurélien Bernard, da Universidade de Lyon (França), acaba de ser publicada na Science e parece ter solucionado o problema ao empregar uma técnica bem interessante: a análise de isótopos de oxigênio encontrado em fósseis de répteis marinhos, e sua comparação com os de peixes da mesma época.
Os três principais grupos de répteis que dominaram os mares da era Mesozoica são: os ictiossauros, os plesiossauros e os mosassauros. Curiosamente, os três se originaram de espécies terrestres, tendo, de forma independente, conquistado os mares entre o período Triássico e o Cretáceo (há cerca de 250-65 milhões de anos), quando se extinguiram.
Os ictiossauros, cujo tamanho variava de um a 16 metros, foram talvez os que melhor se adaptaram ao ambiente aquático. Tinham uma forma semelhante à de um golfinho atual, incluindo a grande nadadeira na parte dorsal do corpo.
Os plesiossauros, caracterizados por terem um pescoço maior do que os demais répteis marinhos, podiam ter de dois a 14 metros de comprimento. Devido ao formato de seus membros anteriores e posteriores, que pareciam poderosos remos, acredita-se que esses répteis ‘voavam’ dentro da água.
Por último, temos os mosassauros, que pertencem ao grupo dos lagartos marinhos. Tipicamente, atingiam tamanhos de três a seis metros, apesar de também terem sido registradas formas gigantescas.
Frio demais para répteis
De acordo com o registro fóssil, os ictossauros, plesiossauros e mosassauros foram encontrados em águas frias, preservados em depósitos na Austrália e até mesmo na Antártica. Nesse tipo de ambiente frio, répteis tipicamente ectotérmicos não conseguem se adaptar – o registro fóssil de espécies de tartarugas e crocodilomorfos, por exemplo, é inexistente perto dos polos.
É verdade que, durante o Cretáceo, as temperaturas médias do planeta eram maiores que as atuais – há quem defenda que não existiam as capas polares de gelo como hoje em dia. Mesmo assim, estudos paleoambientais demonstraram que a temperatura da água podia ser bastante fria, chegando a valores negativos.
Tal fato intrigou os cientistas, que começaram a pensar que alguns répteis marinhos do passado podiam ter um metabolismo diferente da maioria dos répteis.
De uma maneira bem simplificada, podemos separar os animais em seres endotérmicos e ectotérmicos, de acordo como o seu metabolismo. Fala-se em endotermismo quando o animal consegue gerar calor e manter a temperatura de seu corpo estável. Já os animais ectotérmicos – característica comum a todos os répteis de hoje – obtêm a maior parte de seu calor corporal do meio ambiente.
As diferenças são facilmente perceptíveis. Assim como as vantagens: um animal que pode controlar a temperatura de seu corpo fica menos dependente do meio ambiente. Porém, isso tem um preço: um animal endotérmico precisa de mais energia, o que significa a necessidade de mais alimento, e de boa qualidade.
Peixes como termômetro
Para tentar estabelecer o metabolismo dos três grupos de répteis marinhos mencionados de forma mais empírica, Aurélien Bernard e seus colaboradores elaboraram um modelo muito interessante. Como já foi constatado experimentalmente, a presença de isótopos de oxigênio (no caso δ18O preservados em fosfato (que compõe ossos e dentes) está diretamente relacionada à temperatura do corpo (ou seja, ao metabolismo do animal) e à composição da água ingerida.
De uma forma simplificada, os cientistas mediram a composição do isótopo δ18O nos dentes de répteis marinhos e o compararam com o mesmo isótopo de ossos e dentes de peixes encontrados no mesmo depósito. O valor encontrado nos peixes deveria ser, segundo o estudo, bem parecido com o valor da temperatura da água onde esses animais viviam.
Assim, diferenças significativas entre os valores de isótopos encontrados indicariam diferenças entre a temperatura do corpo dos répteis marinhos e a do ambiente onde viviam.
Quanto mais parecidos os valores, maior a probabilidade de que o réptil em questão dependesse do ambiente para manter sua temperatura corporal; quanto mais díspares, maiores as chances de se presumir que o animal não dependia do ambiente para regular a temperatura do seu corpo – podendo, assim, ser considerado como endotérmico.
Os resultados
O estudo dos paleontólogos e geoquímicos demonstrou que as maiores diferenças entre os valores de isótopos estão nos ictiossauros e nos plesiossauros – ou seja, os dados indicam que eles eram endotérmicos, e que mantinham uma temperatura corporal constante estimada em 35º C (com até dois graus de variação para cima ou para baixo).
Nos mosassauros analisados, no entanto, os valores medidos indicam que esses répteis devem ter sido mais dependentes da temperatura do ambiente, sendo, portanto, ectotérmicos.
Os resultados obtidos nesse estudo parecem confirmar algumas ideias sobre os répteis marinhos. Os ictiossauros e os plesiossauros são considerados animais que podiam nadar por grandes distâncias, e, inclusive, perseguir suas presas.
Já os mosassauros são tidos como predadores que emboscavam as suas presas, o que indica que podiam, por curto espaço de tempo, nadar muito rapidamente para capturar peixes ou outros organismos, mas, caso não os alcançassem logo, perdiam o seu alimento.
Problemas e avanços
Como se pode imaginar, nem tudo são flores em um estudo assim. Entre os problemas em se basear na comparação de dados isotópicos está a possibilidade de os peixes não terem vivido exatamente no mesmo período que os répteis marinhos.
Ainda que encontrados em um mesmo depósito, as pequenas lâminas ou mesmo camadas que os separam podem significar uma variação de tempo de dezenas ou até centenas de anos. E nós sabemos que isso pode, em termos de temperatura, significar bastante.
Outro problema um pouco mais complexo é a possibilidade de os isótopos de oxigênio estudados terem sofrido modificações por influência dos processos formadores da rocha (conjuntamente denominados de diagênese).
Seja como for, o resultado de Aurélien Bernard e colegas é uma amostra da sofisticação do estudo da paleontologia. Técnicas refinadas com medições de elementos preservados nos esqueletos dos animais podem fornecer muitas informações sobre como viviam e funcionavam formas extintas.
Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
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