Os mamíferos da discórdia
Estudo contesta visão de que a maioria das espécies típicas do cerrado e da caatinga se originou nas florestas
Edição Impressa 192 - Fevereiro de 2012
© Maria Elina Bichuette | |
Marsupiais do gênero Cryptonanus: exemplo de mamíferos endêmicos do cerrado |
Um estudo recente, feito por três biólogos, questiona essa visão e sustenta exatamente o contrário: cerca de 80% das espécies endêmicas conhecidas de mamíferos do Brasil Central e semiárido do Nordeste têm suas raízes em regiões de vegetação aberta do continente sul-americano, do tipo savana, com poucas árvores e mais gramíneas, como o próprio cerrado e seu vizinho chaco, área plana e relativamente seca que se estende por partes dos territórios do Paraguai, Bolívia e Argentina, além de um pequeno trecho no centro-oeste nacional.
A ideia é defendida por Ana Paula Carmignotto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mario de Vivo, curador da seção de mamíferos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), e Alfredo Langguth, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), num artigo que será um dos capítulos do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography of recent neotropical mammals, a ser lançado em meados deste ano pela editora da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Conseguimos demonstrar que muitas das espécies endêmicas de áreas abertas do cerrado e da caatinga não se originaram, como as pessoas pensavam, de espécies irmãs das florestas vizinhas”, afirma Vivo, cujos estudos foram basicamente financiados por um projeto temático feito no âmbito do programa Biota-FAPESP. “Elas, na verdade, pertencem a linhagens de formação aberta, com ramificações em outros biomas desse tipo na América do Sul.”
A hipótese se mostra mais plausível para a fauna típica de mamíferos do cerrado, onde, como no vizinho chaco, a presença de vastas áreas abertas era ainda mais expressiva por volta de 10 mil anos atrás do que é atualmente. A existência por um longo período de tempo dessa grande zona de savana no coração da América do Sul funcionou, de acordo com os pesquisadores, como o berço de boa parte das espécies mais típicas do cerrado.
No caso da caatinga, o papel das áreas abertas como origem de espécies singulares de mamíferos é aparentemente menos palpável, mas não totalmente desprezível. No que é hoje o semiárido nordestino, houve uma floresta tropical há alguns milhares de anos. O dado explica por que as matas do passado, e as de hoje, parecem realmente ter sido mais importantes para o desenvolvimento das poucas espécies únicas de mamíferos da caatinga, bioma onde esse grupo de animais é menos diversificado que no cerrado. Ainda assim, os três autores do artigo dizem que é um exagero creditar às florestas toda a cota de endemismo da caatinga.
Para chegar a essas conclusões, o trio de pesquisadores fez uma grande revisão da literatura científica publicada sobre o tema e também foi a campo estudar alguns animais específicos do cerrado e da caatinga e sua distribuição geográfica. O resultado do trabalho gerou uma lista atualizada não só das espécies presentes exclusivamente nos dois biomas, mas de todos os seus mamíferos conhecidos. A biodiversidade encontrada foi maior do que se esperava.
De acordo com o trabalho, o cerrado, cujo território abrange cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados e abarca o pantanal, possui 227 espécies de mamíferos, 33 a mais do que encontrara o último inventário, de 2002. Com menos da metade da área e mais seca, a caatinga, segundo o novo estudo, conta com 153 espécies de mamíferos, 10 a mais do que elencara o levantamento anterior, de 2008 (veja infográfico).
Os morcegos e os roedores são as duas ordens de mamíferos com maior número de espécies conhecidas em ambos os biomas. Os primeiros representam mais de um terço das espécies do cerrado e mais da metade das da caatinga. Os segundos respondem por outro terço das espécies do cerrado e um quarto das da caatinga. Em seguida, com um número bem menor de espécies, destacam-se os carnívoros e os marsupiais (veja quadro).
É interessante notar que 120 espécies de mamíferos estão presentes tanto na caatinga como no cerrado. “A maior parte dos mamíferos desses dois biomas é compartilhada entre si ou com a floresta amazônica, a mata atlântica ou o chaco”, afirma Ana Paula Carmignotto. “Essa questão sempre foi destacada em outros estudos e pouco se falava das espécies endêmicas.” Segundo Vivo, muitos trabalhos davam a entender que as áreas abertas da América do Sul não tinham gerado nada de original em termos de novas formas de mamíferos. Quase tudo visto era como uma ramificação de linhagens que evoluíram nas matas fechadas.
Morcego da espécie Xeronycteris vieirai: endêmico da caatinga |
A impressão, falsa segundo o trio de autores, talvez decorra da constatação de que o universo dos mamíferos exclusivos do Brasil Central é realmente pequeno e concentrado. Os pesquisadores contaram 25 espécies exclusivas do cerrado (21 de roedores, 2 de marsupias, 1 de primata e 1 de morcego) e 8 da caatinga (5 de roedores, 1 de primata, 1 de marsupial e 1 de morcego). Falar de endemismo de mamíferos no cerrado e na caatinga é, portanto, quase sinônimo de falar de roedores. A distribuição geográfica das espécies encontradas nos dois biomas e os estudos filogenéticos, que traçam seu possível parentesco e relação evolutiva com animais de outras regiões, levaram os biólogos a defender dois padrões de endemismo.
O primeiro compreende espécies de mamíferos hoje típicas do cerrado ou da caatinga que derivaram de gêneros originários da floresta amazônica ou da mata atlântica. Os exemplos clássicos podem ser encontrados sobretudo na ordem dos primatas. O Callithrix penicillata, popularmente denominado sagui-de-tufo-preto ou mico-estrela, é um macaco que vive somente no cerrado, mais precisamente em trechos arbóreos desse ecossistema. É a única das mais de 20 espécies do gênero Callithrix que habita uma zona de savana, fora da floresta equatorial ou da mata litorânea. O mesmo ocorre com o Callicebus barbarabrownae, o guigó-da-caatinga, espécie hoje ameaçada de extinção cuja origem deve ter sido a vizinha mata atlântica. Alguns roedores, marsupiais e morcegos (como o Lonchophylla dekeyseri) do cerrado e da caatinga também se encaixam nessa situação.
O segundo padrão de endemismo é o de linhagens de animais que há muito tempo estão associadas a biomas de vegetação predominantemente aberta, como o próprio cerrado e a caatinga no passado remoto e o chaco. “A maioria dos mamíferos endêmicos do cerrado e da caatinga pertence a essa categoria”, afirma Vivo. As três espécies de roedores do cerrado do gênero Juscelinomys estão nessa situação. Esse também é o caso de duas espécies endêmicas de roedores do gênero Thalpomys, duas do gênero Wiedomys e uma do gênero Kunsia, entre outras.
A história evolutiva dos pequenos marsupais do gênero Thylamys é ainda mais surpreendente. Existem nove espécies do animal na América do Sul, cinco encontradas em áreas de vegetação aberta da região dos Andes. As duas espécies endêmicas do Brasil – a Thylamys karimii, popularmente denominada catita e encontrada no cerrado e na caatinga, e a Thylamys velutinus, a catita-anã-de-rabo-gordo, presente apenas no cerrado – exibem os traços mais antigos (basais) do gênero e não teriam relações de parentesco com marsupiais originários de áreas florestais. “É um caso raro”, comenta Ana Paula. “Na maioria da vezes, a diversificação dos grupos de mamíferos associados às formações abertas da América do Sul ocorreu nos Andes e depois as linhagens se dispersaram e se diferenciaram aqui.”
O biológo Cleber Alho, professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e hoje docente da pós-gradução da Universidade Anhanguera-Uniderp, do Mato Grosso do Sul, discorda da ideia de que a maioria das espécies endêmicas do cerrado e da caatinga seja derivada de linhagens de animais originários de áreas abertas. “Não sei como poderia justificar a possível origem de espécies endêmicas (desses dois biomas) em ambientes abertos”, afirma Alho. Ele cita exemplos de primatas, roedores e morcegos do cerrado cujas linhagens seriam provenientes de áreas com florestas.
Em sua maioria, as espécies mencionadas por Alho são as mesmas que Ana Paula, Vivo e Langguth admitem ser mesmo originárias de matas, embora sustentem que esses casos são a exceção, e não a regra da história evolutiva da fauna endêmica de mamíferos do centro do Brasil. Uma discordância explícita diz respeito às origens de uma espécie extinta de roedor, Juscelinomys candango, o rato-candango encontrado apenas durante a construção de Brasília em 1960 e, desde então, nunca mais visto. “Ele também dependia de hábitat florestado”, diz Alho. Vivo e seus colegas acham que não.
Outros pesquisadores acreditam que as ideias expostas no capítulo do livro sobre os mamíferos endêmicos do Brasil Central não devem ser descartadas sem estudos mais aprofundados. “É um trabalho muito interessante e acho que eles podem ter razão”, afirma o biólogo Rui Cerqueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A hipótese deles é bastante razoável.” Segundo o pesquisador fluminense, a noção de que a fauna de mamíferos do cerrado e da caatinga seria uma versão empobrecida dos animais florestais está realmente ultrapassada e mais estudos sobre a questão, sobretudo no semiárido nordestino, onde as coletas de animais são pouco frequentes, precisam ser feitos.
Artigo científico
CARMIGNOTTO, A. P. et al. Mammals of the Cerrado and Caatinga – Distribution Patterns of the Tropical Open Biomes of Central South America. Capítulo do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography of recent neotropical mammals. No prelo.
O Projeto
Systematics evolution and conservation of eastern Brazilian Mammals –
n° 1998/05075-7
Modalidade
Projeto Temático
Coordenador
Mario de Vivo – USP
Investimento
R$ 529.250,05 (FAPESP)
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