Estrutura genética da cana pode ser desvendada com nova metodologia
“A cana é muito diferente de todas as outras espécies cultivadas que a gente conhece”, disse ao Jornal da Unicamp a pesquisadora Anete Pereira de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) e professora do Departamento de Biologia Vegetal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. “Creio que é a espécie mais complexa que conhecemos. Outras espécies, não usadas pelo ser humano, talvez tenham uma organização genética como a da cana, mas não sabemos porque não as usamos”.
Essa complexidade vem da forma como os cromossomos se organizam nas células da planta. Quem se lembra das aulas de biologia do ensino médio sabe que o ser humano, por exemplo, é diploide: isso significa que os cromossomos humanos se organizam em pares, de modo que a cada cromossomo corresponde uma cópia, ou homólogo. Quando o óvulo é fecundado, o embrião se forma recebendo um homólogo do pai e outro da mãe. É por isso que as crianças apresentam características de ambos os pais.
A cana-de-açúcar, em comparação, é uma planta poliploide: isso significa que o número de homólogos de cada cromossomo varia – no caso específico da cana, as células podem conter de dez a 14 cópias de cada cromossomo, o que gera um total de mais de 110 cromossomos individuais. “A cana é o cruzamento de duas espécies que geraram um organismo que conservou o número de cromossomos de ambos os pais”, disse Anete. “E para complicar ainda mais, foi um cruzamento entre duas espécies que se comporta como se fosse a duplicação de uma só espécie: ela é autopoliploide. Então, a genética dela é muito complexa, ela é muito diferente”.
Essas diferenças, explicou a pesquisadora, acabaram levando o estudo da genética da cana a uma espécie de beco sem saída na última década: como a maioria dos métodos e das tecnologias de análise genética existentes tinham sido desenvolvidos para lidar com diploides – como o ser humano – apenas 10% do genoma da cana estava ao alcance da ciência.
“Tem um genezinho aqui que me interessa. Como que eu faço para achar esse gene?”, exemplificou a pesquisadora. “A metodologia genética que a gente tinha para usar aqui não se aplicava. A gente estudava todo esse genoma como se fosse igualzinho ao diploide, de dois em dois. Então, a gente via, assim, 10% do genoma, e só”.
“O arranjo numeroso e complexo dos genes nos poliploides, como cana-de-açúcar, torna difícil entender como características genéticas são transferidas dos pais para os filhos em tais plantas, e como funcionam os múltiplos variantes de cada gene. Infelizmente, o melhoramento da cana enfrenta esse enigma, o que dificulta o melhoramento e, consequentemente, a obtenção de variedades mais produtivas”, diz nota divulgada pelo grupo responsável pelo artigo na Scientific Reports.
“Já em 2004, eu e o Augusto [Antonio Augusto Franco Garcia, do Departamento de Genética da Esalq/USP, também autor do artigo na Scientific Reports] percebemos que se a gente continuasse trabalhando daquele jeito, nós nunca poderíamos conhecer o genoma todo, estaríamos sempre limitados pela metodologia que estava sendo usada. A metodologia era inadequada”, disse Anete.
O novo método, que segundo a pesquisadora “abre o caminho” para o estudo completo do genoma da cana, se vale de SNPs (sigla em inglês para “polimorfismo de base única”, normalmente pronunciada “snip”), que são diferenças de uma única “letra” do código genético em pontos específicos de cromossomos homólogos. Cromossomos homólogos com diferentes SNPs contêm diferentes versões, ou alelos, dos mesmos genes.
“Creio que foi por volta de 2007, quando eu ministrava aula de genética para o curso de Farmácia, aqui na Unicamp: o curso de genética básica, que surgiu a ideia de como resolver o problema”, contou Anete. “Preparando as aulas para o curso, tomei contato com uma área que chama farmacogenômica. A indústria farmacêutica, ao desenvolver remédios para diferentes doenças, percebeu que as pessoas respondem de modo muito diferente a certos remédios: por exemplo, quimioterápicos para câncer, que podem fazer muito mal para algumas pessoas, e quase não afetar outras”. Essa diferença, em alguns casos, pôde ser rastreada e associada a diferentes SNPs. E a indústria farmacêutica já dispunha de tecnologia capaz de analisar SNPs a partir de amostras de DNA de milhares de pessoas, o que permitia estimar o impacto que algumas drogas viriam a ter na população.
Crucialmente, uma máquina usada em farmacogenômica, chamada Sequenom (um espectrômetro de massas do tipo MALDI-TOF, capaz de identificar as diferentes bases do DNA), era capaz de informar a “dosagem alélica”: qual a proporção de cada tipo de SNP presente na amostra analisada.
“Tendo o alelo e a dosagem, a genética da cana vira genética normal, mendeliana”, explicou Anete, numa referência ao tipo de cálculo genético desenvolvido a partir do trabalho de Gregor Mendel, no século 19. “A grande descoberta desta metodologia foi isso: a gente poder analisar SNPs na cana como se estivessem presentes só em dois cromossomos, mas considerando a dosagem de cada um dos alelos, porque os SNPs têm sempre apenas dois alelos, mesmo que estejam em organismos como a cana. E aí, quando a gente consegue fazer isso, a gente consegue usar todos os princípios da genética mendeliana, como fazemos para o estudo do feijão, milho, arroz, ervilha e outras espécies diploides. Aí a gente faz genética mendeliana”.
Um Sequenom foi adquirido para o CBMEG, com apoio da Fapesp e do CNPq, mas uma nova barreira metodológica apareceu: o software do fabricante do equipamento só era capaz de lidar com genomas diploides. As primeiras tentativas de medir a dosagem de SNPs da cana produziram resultados ruins.
“A ideia dos SNPs nós tivemos, o equipamento para fazer isso a gente achou, mas o software teve de ser específico: todo feito em casa, tudo montado por nós”, disse ela. “Foi aí que o Augusto fez todo esse software único, idealizado por ele e seus alunos, que tem toda uma análise de probabilidade. É tudo uma análise genético-estatística que foi montada especificamente para analisar a dosagem que o equipamento, que o hardware do equipamento, solta. Só que o software de análise deles não serve para nós, porque é feito para diploide”.
O trabalho com o desenvolvimento do software específico para poliploides também já rendeu um artigo científico, publicado no periódico PLoS ONE em 2012 e um capítulo de livro da série Methods in Molecular Biology em 2013, assinados por Franco Garcia e Marcelo Mollinari, da Esalq, e Oliver Serang, de Harvard.
Anete acredita que a nova metodologia auxiliará muito no mapeamento de genes importantes para o melhoramento, e também abre caminho para o sequenciamento do genoma da cana-de-açúcar. Esse processo é complexo, explicou ela, porque, dado o grande número de homólogos de cada cromossomo, fica difícil, uma vez analisados os fragmentos do DNA, montar a sequência completa na ordem correta para cada um dos cromossomos homólogos. “Você pica o DNA e sai sequenciando os pedacinhos. E aí tem de juntar tudo, cromossomo por cromossomo, isto é, homólogo por homólogo. E como você vai saber se esse pedacinho é daqui ou dali?” Com mais de dez homólogos de cada tipo de cromossomo e mais de uma centena de cromossomos no total, a tarefa é gigantesca. Com o uso de SNPs, no entanto, a questão fica mais simples: “Usando vários SNPs, todos em linha, você sabe exatamente, do começo ao fim, como juntar: porque se eu tenho dois SNPs em comum aqui, e outros dois em comum ali, mas este outro é diferente, então trata-se de um alelo diferente e, portanto, de outro cromossomo. É uma maneira exata de conseguir montar um genoma”.
Após a publicação do software e da metodologia, um artigo no periódico PLoS ONE, contendo os resultados de pesquisa coordenada pelo pesquisador do CBMEG Renato Vicentini, apresentou ao mundo resultados que viabilizarão e auxiliarão a aplicação da técnica: a descoberta de mais de 5 mil novos genes de cana e de centenas de milhares de SNPs, “além de ter visto a expressão global do genes codificados em cana-de-açúcar em seis variedades diferentes e de interesse para o melhoramento no Brasil”, explicou Anete.
A equipe responsável pela criação da nova técnica incluiu, além de pesquisadores da Unicamp e da USP, cientistas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Universidade Harvard e de duas instituições australianas, a Universidade Southern Cross e a Universidade de Queensland.
Instalado no CBMEG da Unicamp, montado em parceria com o Instituto de Biologia da Unicamp, o Laboratório Multiusuário de Genotipagem e Sequenciamento, onde se encontra o Sequenom, está aberto a projetos de pesquisa de cientistas e estudantes de fora do grupo multidisciplinar encabeçado por Anete, e mesmo que não estejam ligados ao projeto da cana-de-açúcar. “Nosso trabalho só foi possível graças ao financiamento da Fapesp e, principalmente, do Programa Bioenergia. Então a gente abriu o laboratório como multiusuário. Foi um compromisso nosso desde a submissão do projeto. Agora que conseguimos um produto considerável, podemos abrir com segurança de ajudar o usuário”, disse ela.
“Um objetivo é permitir que pessoas que trabalham com organismos não-modelo desenvolvam seu próprio protocolo e descubram os segredos de seu organismo, como nós descobrimos. E isso só foi possível porque temos o equipamento disponível”.
Com informações da Unicamp
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