Insetos invertem papéis de macho e fêmea
Primeiros casos conhecidos de inversão de genitálias no reino animal foram encontrados em cavernas do Brasil
JÚLIO CÉSAR BARROS |
Edição Online 22:28 28 de junho de 2014
As novas espécies do gênero Neotrogla habitam cavernas de três estados brasileiros. Neotrogla brasiliensis vive no norte de Minas Gerais, N. aurora no Tocantins, N. truncata no Norte da Bahia, e N. curvata, no Sul da Bahia. Os insetos, que são alados, medem de 2,7 a 3,7 milímetros de comprimento.
O órgão genital das fêmeas, chamado ginossoma, tem uma estrutura altamente elaborada, semelhante a um pênis. Com formato de arco, ele é revestido por espinhos ou cerdas que atracam a fêmea ao macho. Isso impede que ele se solte durante o acasalamento, um processo que dura até 70 horas ininterruptas. Os espermatozoides dos machos, cuja estrutura genital é uma cavidade parecida com uma vagina, são transferidos para a fêmea por meio do ginossoma.
O biólogo Rodrigo Lopes Ferreira, da Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, conta que a inversão das genitálias vai na contramão do que aconteceu nas outras espécies. “Esses insetos são a confirmação científica do primeiro caso de inversão de órgãos sexuais de todo o reino animal”, diz o biólogo brasileiro, um dos responsáveis pela descrição das novas espécies.
Segundo o artigo publicado em maio na revista Current Biology, a longa cópula, a mais demorada do reino animal, assegura a transferência de um grande volume de esperma. O risco de cópulas muito demoradas é que expõem o casal a perigos durante um momento de maior vulnerabilidade. Estas espécies vivem em cavernas extremamente secas e por isso habitadas por poucas espécies, inclusive predadores.
Na opinião de Ferreira e de colaboradores, a escassez de recursos nas cavernas – onde não há plantas e os alimentos e a água são muito escassos – torna a produção de sêmen mais custosa e, consequentemente, faz do líquido seminal um produto valioso demais para ser desperdiçado. Por isso, os papeis sexuais também são invertidos no que diz respeito ao comportamento: as fêmeas tomam a iniciativa de procurar os machos, que por sua vez selecionam as candidatas de sua preferência. O contrário do que acontece na maior parte dos animais.
Os pesquisadores suspeitam, inclusive, que o sêmen dos machos de Neotrogla possa ser uma fonte de nutrientes para as fêmeas. Observadas em laboratório, elas absorveram o líquido seminal antes mesmo de produzirem seus primeiros ovos maduros. “Por isso acreditamos que as fêmeas sejam pressionadas a terem múltiplos parceiros sexuais”, teoriza Ferreira.
Espécies negligenciadas
Até agora, de acordo com os pesquisadores, ninguém tinha prestado atenção a esses insetos por não terem valor comercial e nem representarem perigo aos seres humanos. Os primeiros foram descobertos em 1998. Eram filhotes, por isso impossíveis de serem identificados e sem o sistema reprodutivo formado. Animais adultos foram achados em 2003, e só em 2008 uma das alunas de Ferreira passou a estudar a ordem a que eles pertencem, os psocópteros. “Queríamos saber quais psocópteros existem em cavernas brasileiras”, conta Ferreira. Mas quando a jovem pesquisadora deparou com os exemplares que viriam a ser conhecidos como Neotrogla, empacou. Não era capaz de reconhecer com a ajuda de chaves de identificação e chamou o orientador. “É uma família bem rara, muitas vezes nem consta nas chaves”, ele explica.
Diante do impasse, os pesquisadores mineiros enviaram exemplares ao biólogo suíço Charles Lienhard, do Museu de História Natural de Genebra, na Suíça, um especialista em psocópteros. Ele reconheceu a família, que até então nunca tinha sido encontrada na América do Sul, e percebeu se tratar de um gênero novo. Mas ficou mesmo surpreso quando notou o inesperado órgão sexual das fêmeas. Em colaboração, o grupo descreveu as genitálias, sem precisar exatamente como funcionavam.
Essa parte ficou por conta de Kazunori Yoshizawa, da Escola de Agricultura da Universidade de Hokkaido, no Japão, a convite de Lienhard. Especialista em psocópteros com foco em morfologia e anatomia, ele descreveu em detalhes o sistema reprodutor dos insetos e produziu imagens deslumbrantes. Ferreira, ao mesmo tempo, observava o comportamento de uma das espécies em laboratório e registrou a cópula demorada.
Ferreira alerta, no entanto, que esses amimais são ameaçados porque o Brasil não privilegia a proteção de cavernas. “Até 2008 esses ambientes eram protegidos integralmente, mas isso mudou. Hoje, apenas as cavernas consideradas de máxima relevância têm esse status de proteção”, lamenta o biólogo. Das espécies descritas, apenas N. brasiliensis está protegida, por viver dentro do Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, no norte de Minas Gerais. “A construção de estradas e hidroelétricas, e também a atividade de mineradoras, têm destruído esses ecossistemas antes mesmo que tenhamos a chance de estudá-los”, alerta o biólogo, que não tem dúvidas de que ainda existem espécies de Neotrogla por descobrir.
Artigo científico
YOSHIZAWA, K. et al. Female penis, male vagina, and their correlated evolution in a cave insect. Current Biology. v. 24, n. 9, p. 1006-1010. 5 mai. 2014.
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