Pesquisadores descrevem ação de molécula mais potente que a toxina botulínica
09 de maio de 2017
Encontrada no veneno de serpentes
cascavéis, a crotoxina é capaz de paralisar músculos por tempo
prolongado, além de apresentar ação anti-inflamatória, analgésica,
antitumoral e imunomoduladora ( foto: cascavel/Wikimedia Commons)
Karina Toledo | Agência FAPESP – Encontrada no veneno de serpentes cascavéis (Crotalus durissus), a crotoxina é uma molécula que já apresentou em experimentos laboratoriais potencial para ser usada como anti-inflamatório, analgésico, antitumoral, imunomodulador e até mesmo como um paralisante muscular mais potente que a toxina botulínica.
Porém, para que esse potencial terapêutico possa ser transformado em fármacos, é preciso antes compreender em detalhes como a crotoxina interage com as células humanas. Avanços importantes nesse campo de estudo foram apresentados por pesquisadores brasileiros em artigo publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
“Nós sugerimos um novo arranjo estrutural da molécula e também um modelo para explicar seu efeito tóxico sobre o sistema nervoso. Essas informações podem ajudar outros pesquisadores a desenhar compostos sintéticos com estrutura e atividade semelhantes às das regiões da crotoxina que despertam interesse farmacológico”, afirmou Carlos Fernandes, pesquisador do Instituto de Biociências (IBB) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu.
O trabalho foi realizado durante o pós-doutorado de Fernandes, com apoio da FAPESP e supervisão do professor do IBB-Unesp Marcos Roberto de Mattos Fontes.
“A crotoxina é considerada um heterodímero, ou seja, um complexo formado por duas proteínas diferentes: a CA, que não é tóxica e não tem ação enzimática, e a CB, uma fosfolipase responsável pelo efeito neurotóxico”, explicou Fontes, que há pelo menos uma década investiga o mecanismo de ação da molécula com apoio da FAPESP.
Em 2008, o grupo descreveu na revista Proteins a estrutura tridimensional da proteína CB isolada.
Por meio de uma técnica conhecida como cristalografia por difração de raios X – que consiste em cristalizar a proteína e observar como esse cristal difrata a radiação emitida sobre ele –, os pesquisadores da Unesp descobriram que, quando não está conectada à CA, a CB tende a se aglomerar em grupos de quatro, formando o que os cientistas chamam de tetrâmeros. Nesse arranjo, entretanto, a proteína apresenta uma menor ação neurotóxica do que quando associada à CA.
Poucos anos depois, um grupo da França publicou no Journal of Molecular Biology a estrutura cristalográfica do complexo formado por CA e CB. No entanto, algumas regiões importantes de CB ficaram escondidas por CA no modelo cristalográfico, entre elas as três apontadas na literatura científica como farmacologicamente ativas: a porção N-terminal (os primeiros resíduos de aminoácido da cadeia), a C-terminal (os últimos resíduos) e o sítio catalítico (onde a reação enzimática ocorre).
“Esse trabalho refutou nossa hipótese de que a CB isolada se organizava em tetrâmeros, criando um impasse no meio acadêmico”, contou Fontes.
O grupo da Unesp decidiu então investigar o arranjo estrutural do complexo proteico em solução, ou seja, em um meio líquido. Essa condição é mais parecida com a que a molécula é encontrada na natureza.
Para isso, combinaram cinco diferentes técnicas biofísicas: calorimetria de titulação isotérmica, espectroscopia de fluorescência, dicroísmo circular, espalhamento de luz dinâmico e espalhamento de raios X a baixo ângulo.
A investigação contou com a colaboração de pesquisadores do Instituto de Física (IF) da Universidade de São Paulo (USP), da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP), do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Ezequiel Dias (Funed), de Belo Horizonte (MG).
“Pelas análises calorimétricas observamos que as moléculas de CB isoladas em um recipiente encontravam-se em tetrâmeros, mas, à medida que íamos injetando a CA no meio, os tetrâmeros se dissociavam e as duas proteínas se uniam para formar os heterodímeros”, contou Fernandes.
A observação foi confirmada usando o espalhamento de luz dinâmico e o espalhamento de raios X a baixo ângulo, técnicas que permitem medir o tamanho das moléculas, explicou Fontes. “Ao medir o diâmetro, conseguimos confirmar que a CB isolada forma um tetrâmero, a CA forma um monômero e as duas juntas, um dímero”, disse.
Já a fluorescência, como explicou Fontes, permite descobrir as partes da molécula que estão expostas ao solvente (água, no caso da pesquisa). A análise revelou que na interface entre CA e CB encontram-se quatro resíduos do aminoácido triptofano. Dois desses resíduos estão localizados bem na entrada do sítio catalítico de CB – fechando o acesso à região da proteína responsável pelo efeito biológico. Já a região N-terminal de CB fica exposta ao solvente mesmo quando a proteína está ligada à CA.
“Segundo a hipótese que montamos com base nessas análises, duas das regiões tóxicas da CB ficam praticamente bloqueadas pela CA quando estão na forma de heterodímero. Mas, ao chegar perto da membrana celular, a CB consegue se ligar ao tecido pela porção N-terminal. Isso faz com que a CA se solte do complexo, possibilitando que as outras regiões ativas de CB – o sítio catalítico e a C-terminal – também consigam se ligar à membrana, desencadeando o efeito neurotóxico”, afirmou Fernandes.
Membrana pré-sináptica
Embora seja capaz de se ligar à membrana de qualquer célula do corpo humano, a crotoxina afeta especialmente a chamada membrana pré-sináptica – localizada na junção entre os músculos e os nervos.
De acordo com Cristiano Oliveira, pesquisador do IF-USP e coautor do artigo, a molécula é considerada um dos principais agentes paralisantes do veneno da cascavel e tem sido estudada em modelos animais para o tratamento de estrabismo por apresentar efeito mais duradouro que o da toxina botulínica.
“Estudos anteriores com animais indicaram que a crotoxina tem ação anti-inflamatória, antitumoral e analgésica. Também é possível que tenha aplicação estética. Mas faltava descobrir de que forma ela atua. Nós estamos descrevendo um possível mecanismo de ação, um passo importante para chegar ao desenvolvimento de fármacos”, comentou Oliveira.
Segundo Fernandes, a descoberta também abre caminho para a busca de compostos capazes de inibir a ação da crotoxina, que seriam úteis para aumentar a eficácia do soro antiofídico.
O artigo “Biophysical studies suggest a new structural arrangement of crotoxin and provide insights into its toxic mechanism” pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/srep43885.
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