HERANÇA DE MÃE
Nos eucariotos (seres cujas células têm núcleos separados do citoplasma por uma membrana), a informação contida na molécula de DNA é dividida entre duas organelas intracelulares: o núcleo e a mitocôndria. Não é uma divisão equânime. Entre os cerca de 1.000 genes que dizem respeito à função da mitocôndria, por exemplo, a grande maioria é codificada pelo DNA nuclear e somente 37 são codificados pelo DNA mitocondrial. Mas isso não torna a mitocôndria menos importante. Ela influencia não só aqueles aspectos ligados à respiração e à produção de energia, mas também a própria longevidade das células e dos indivíduos. As doenças causadas por mutações no DNA mitocondrial chegam a compor uma especialidade da medicina.
Curiosamente, com pouquíssimas exceções, nas espécies que se reproduzem de maneira sexuada, a herança das mitocôndrias é uniparental. Somente as mães transmitem as mitocôndrias e, consequentemente, o DNA mitocondrial para os descendentes. Parte da explicação de como ocorre a herança materna das mitocôndrias se origina no próprio processo de fertilização. As mitocôndrias estão localizadas nas caudas dos espermatozoides.
Quando o espermatozoide penetra no ovócito (célula sexual feminina), sua cauda permanece no exterior dessa célula e, desse modo, muitas mitocôndrias paternas nem chegam a ter contato com o citoplasma dela.
Antes, pensava-se que a eliminação das mitocôndrias paternas decorria de mera diluição; mas hoje sabemos que as poucas mitocôndrias masculinas que logram entrar no ovócito são ativamente destruídas por mecanismos que somente agora estão se tornando mais claros. Ou seja, há um programa celular que bloqueia a contribuição de DNA mitocondrial paterno para o ovo.
Esse fenômeno há muito tempo tem intrigado os geneticistas. As indagações principais eram: de que maneira o DNA mitocondrial masculino era reconhecido e degradado e qual a razão para essa discriminação? O enigma foi parcialmente resolvido por Zhou e colaboradores, que publicaram seus resultados em junho na revista Science. Embora esses cientistas tenham usado como modelo experimental um parente bem distante dos mamíferos – o nematoide C. elegans –, é bem provável que suas conclusões sejam em breve extensíveis aos humanos.
Em primeiro lugar, o grupo mostrou que as mitocôndrias paternas (dos espermatozoides) eram morfologicamente diferentes das mitocôndrias maternas, o que, de certo modo, facilitava seu reconhecimento. Em segundo lugar, os pesquisadores descobriram uma enzima que degrada o DNA mitocondrial paterno e foi denominada de cps-6.
Os resultados mostraram que os eventos de degradação tinham início na própria mitocôndria masculina, ficando por conta da cps-6 paterna. Em outras palavras, algo presente no microambiente do ovo disparava o suicídio das mitocôndrias paternas, o que demonstra que houve um grande investimento evolutivo nesse processo de eliminação.
Mas por quê? Essa é ainda uma pergunta passível de múltiplas interpretações. Uma delas é a hipótese da ‘maldição de mãe’, que invoca a ideia de que a herança uniparental decorre de um mecanismo de seleção purificadora. Esta é assim chamada porque gradualmente elimina erros causados por mutações que, ao se acumularem nos genomas mitocondriais masculinos, poderiam ter efeitos graves para toda a espécie.
Muitos estudos populacionais mostram que os erros naturalmente introduzidos no DNA mitocondrial se manifestam mais nas características físicas masculinas do que nas femininas. Sabe-se, por exemplo, que os machos de muitas espécies têm expectativa de vida menor, além de envelhecimento celular mais acelerado, que as fêmeas. Acrescente-se que os machos apresentam mais riscos de adquirir doenças e de portar mais problemas de infertilidade.
O enigma é que as mutações do DNA mitocondrial masculino não têm o mesmo efeito quando presentes no DNA feminino. De todo modo, com a herança uniparental do DNA mitocondrial, os potenciais problemas contidos no genoma mitocondrial masculino são filtrados, isto é, os descendentes só recebem o DNA materno, mais depurado. Afinal, no fundo, as mães só desejam o melhor para seus filhos.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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