segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A última grande alta do Atlântico

Falésias indicam que mar subiu cerca de 60 metros no Norte e no Nordeste entre 25 e 16 milhões de anos atrás 

MARCOS PIVETTA | Edição 212 - Outubro de 2013
© STEFAN KOLUMBAN / OLHAR IMAGEM
Falésia no litoral de Alagoas: base formada por sedimentos trazidos por alta  do nível do Atlântico durante o Mioceno
Falésia no litoral de Alagoas: base formada por sedimentos trazidos por alta do nível do Atlântico durante o Mioceno

Ao passar pela região da atual Porto Seguro, sul da Bahia, a bordo da nau capitânia comandada por Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha se espantou com o tamanho do litoral da ilha de Vera Cruz, primeiro nome dado ao Brasil recém-descoberto, e registrou também a presença de vistosas escarpas na praia, quase lambendo o Atlântico: “[Esta terra] Traz ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra, por cima, toda chã e muito cheia de grandes arvoredos”. O escrivão português mirava um trecho do que hoje se denomina Formação Barreiras, constituída por camadas de areia e argila geralmente de algumas dezenas de metros de espessura que se estende por mais de 5 mil quilômetros ao longo da costa nacional, do Amapá até o Rio de Janeiro.

Para os geólogos, essas falésias, que fazem parte da primeira unidade geológica descrita no país, contam uma história muito mais antiga do que a saga do descobrimento. São testemunhas da última grande elevação do nível do Atlântico registrada em trechos da costa brasileira, especificamente no Norte e Nordeste, entre 25 e 16 milhões de anos atrás, final da época chamada Oligoceno e meio do Mioceno. Grande parte dessas falésias se formou pela ação de correntes de maré ao longo da costa que arrastaram sedimentos continente adentro devido a esse aumento significativo do nível do mar. Segundo alguns estudos, os oceanos, durante o Mioceno, teriam subido até 180 metros em certos pontos do planeta em relação ao seu nível atual. No Brasil, a elevação média foi mais modesta, geralmente da ordem de 60 metros, com picos de até 140 metros na costa de Sergipe e Alagoas, de acordo com um amplo estudo sobre a Formação Barreiras publicado na edição de agosto da revista científica Earth-Science Reviews.

Mas esse talvez não seja o dado mais surpreendente revelado pelo artigo, assinado por três geólogos brasileiros. Segundo o trabalho, após esse período marcado por momentos de alta do oceano Atlântico em setores da costa do Norte e do Nordeste entre 25 e 16 milhões de anos atrás, o nível do mar ao longo do litoral do país passou por uma fase de baixa entre 15 e 10 milhões de anos atrás. Paradoxalmente, essa queda no nível do Atlântico na costa brasileira ocorreu ao mesmo tempo que o nível dos oceanos atingiu sua subida máxima em outras partes do planeta. Por que o período de alta do Atlântico no Norte e no Nordeste não bate com o de elevação dos oceanos em todo o globo? “Provavelmente, isso se deveu a movimentações de terreno provocadas pela atividade tectônica em trechos da costa brasileira”, diz a geóloga Dilce de Fátima Rossetti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espacias (Inpe), primeira autora do artigo, que estuda a Formação Barreiras há mais de duas décadas.
De acordo com os dados dos geólogos, o solo em muitas partes da costa brasileira teria afundado algumas dezenas de metros entre 25 e 16 milhões de anos atrás em razão de tectonismos. Embora, nesse período, os oceanos ainda não tivessem atingido seu pico de alta global, o rebaixamento do relevo em trechos do litoral do Norte e do Nordeste abriu caminho para a entrada no continente de material vindo do mar: criou bacias propícias para receber e armazenar sedimentos trazidos pelo Atlântico. Dessa forma, a subida do nível do oceano em trechos da costa brasileira resultou na deposição de sedimentos que deram origem à Formação Barreiras e também à Formação Pirabas, esta última ligeiramente mais antiga e de menor extensão.
Entre 15 e 10 milhões de anos atrás, quando houve o pico de elevação global do nível dos oceanos, a atividade sísmica teria produzido justamente o efeito contrário sobre o relevo da costa brasileira. “Nesse período, o terreno se estabilizou ou até soergueu. Isso teria compensado o aumento do nível do mar global, que não conseguiu deixar nenhum registro sedimentar sobre essa região”, explica Dilce. “Nesse momento, uma ampla faixa do litoral do Norte e Nordeste do Brasil, que então se encontrava coberta pelo mar, emergiu, ficou exposta à erosão e se tornou um lugar favorável ao crescimento de vegetação.”

A hipótese dos pesquisadores se baseia numa constatação que ganhou força nas duas últimas décadas. Diferentemente do que sempre se acreditou, a costa brasileira não está situada numa região geológica totalmente estável. Embora todo o território nacional esteja assentado no meio da placa tectônica Sul-Americana, característica que o torna livre de grandes terremotos, a ocorrência de abalos sísmicos de nível médio e de alterações relevantes na altitude dos terrenos se dá com certa frequência. “A topografia é dinâmica”, afirma o geólogo Francisco Hilário Rego Bezerra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro autor do artigo. “Nossa costa era considerada estável, mas nosso trabalho mostra que não é bem assim. Existem evidências da presença de muitas falhas tectônicas nessa região e de que elas foram reativadas no Mioceno. Na verdade, há evidências de que ainda devem estar ativas até hoje.”

De forma simplificada, três grandes fatores podem influenciar a altura do mar num trecho da costa: o nível global de todos os oceanos; a estabilidade local do terreno (se ele está afundando ou levantando por causa de movimentos tectônicos); e a ocorrência de processos erosivos, que desgastam a superfície, ou de deposição de sedimentos, que acrescentam camadas ao solo. De acordo com a intensidade de cada fator, a tendência global de aumento (ou redução) do nível do mar pode ser amplificada, mitigada ou mesmo anulada numa escala local ou regional. Parece contraditório, mas não é. Devido à interação desses fatores, o mar pode subir apenas em um ou em alguns pontos de uma costa, como no caso do Norte e do Nordeste durante o Mioceno, enquanto ocorre uma queda ou estabilização no nível dos oceanos na maior parte do planeta. “Os continentes não se mantêm fixos no plano vertical”, explica José Dominguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), outro autor do estudo, especialista em geologia marinha. “Eles estão sempre se deslocando.”

A borda leste da América do Sul está associada a um cenário geologicamente mais calmo e estável do que a oeste. Moldada durante o Mioceno pela subida dos Andes, fruto do choque das placas tectônicas Nazca e Antártica com a margem ocidental da placa Sul-Americana, a costa do Pacífico é até hoje frequentemente sacudida por movimentos tectônicos de forte intensidade. “Os Andes subiram aproximadamente 4 quilômetros durante o Mioceno”, diz Dilce, cujos estudos são parcialmente financiados pela FAPESP. O último grande evento que moldou o relevo da região foi a separação da América do Sul do continente africano, iniciada há mais de 100 milhões de anos. A fratura que separou os dois blocos de terra foi preenchida pelas águas do Atlântico. Mas, como sugerem as pesquisas do trio de geólogos, isso não quer dizer que, desde então, não houve tremores e movimentações de terra ao longo da costa brasileira.

Intemperismos

Uma das dificuldades em demonstrar que as falésias do Norte e do Nordeste podiam ser um indicativo de quanto subiu o nível do mar localmente há cerca de 20 milhões de anos estava associada a incertezas em torno da idade e do caráter da Formação Barreiras. Os estudos afirmavam que os sedimentos dessa formação teriam sido depositados a no máximo 5 milhões de anos atrás, remetendo, portanto, ao Plioceno, época geológica imediatamente posterior ao Mioceno. Hoje está comprovado que a argila e a areia que compõem a Formação Barreiras foram depositadas bem antes disso. Outro ponto obscuro eram os locais onde os sedimentos dessa formação teriam se acumulado. Até uns poucos anos atrás, a maioria dos autores dizia que os sedimentos teriam sido depositados em áreas continentais, principalmente em ambientes fluviais e lagos. No entanto, nas duas últimas décadas, uma série de estudos, muitos conduzidos por Dilce Rossetti, revelou a verdadeira natureza do material que está na base de muitas falésias da costa brasileira: a invasão de certos trechos do continente pelas águas salgadas do Atlântico carreou sedimentos marinhos para sua borda leste.
Devido à sua composição pobre em carbonatos, a Formação Barreiras tende a não conservar um bom registro fóssil de animais que ali viveram no passado remoto. Encontrar os vestígios diretos de um organismo marinho preservado nesses sedimentos é praticamente impossível. O intemperismo atual (e o do passado) também contribui para a destruição de eventuais fósseis nessa unidade geológica. Essas peculiaridades fizeram com que, num primeiro momento, fosse um desafio associar essa formação a uma origem marinha.

Marcas de maré

No entanto, os pesquisadores conseguiram reunir nos últimos anos uma série de indícios de que essa formação foi, em grande medida, gerada em áreas costeiras, influenciadas principalmente por correntes de maré. O vaivém da maré faz com que os sedimentos sejam levados para frente e para trás. Essas oscilações resultam em marcas nos sedimentos que revelam a sua gênese e se diferenciam de qualquer outro agente de sedimentação. Marcas produzidas por correntes de maré são abundantes na Formação Barreiras. Embora o corpo em si de antigos animais oriundos do Atlântico não se preserve nessa unidade geológica, a presença desse tipo de organismo é atestada nesses depósitos sedimentares pela existência de icnofósseis típicos de ambientes marinhos ou de água salobra. Icnofósseis são evidências indiretas da presença de organismos, como rastros, tocas ou pegadas, preservadas em camadas geológicas. “Também temos registros de pólens de plantas do Mioceno na Formação Barreiras”, afirma Dilce.
Todos esses sinais passam despercebidos a olhos de leigos mais desavisados, como pode ter sido o caso de Pero Vaz de Caminha e de tantos turistas atuais, que viajam pelas costas do Norte e Nordeste em busca de belas paisagens, algumas delas esculpidas pelo encontro de falésias da Formação Barreiras com o mar. Mas não para o olhar treinado de geólogos que se aproveitam dessas evidências para revelar o vaivém do nível dos oceanos ao longo do tempo.

Projeto

Evolução tectono-sedimentar pós-rifte na bacia Paraíba, Nordeste do Brasil (2012/06010-5); Modalidade: Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa; Coord.: Dilce de Fátima Rossetti – Inpe; Investimento: R$ 109.710,00 (FAPESP).

Artigo científico

ROSSETTI, D. F. et al. Late Oligocene–Miocene transgressions along the equatorial and eastern margins of Brazil. Earth-Science Reviews. v. 123, p. 87-112. ago. 2013.

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