O supermacaco das Américas
Paleontólogos reconstroem o estilo de vida versátil do Cartelles coimbrafilhoi, o maior símio que já habitou o continente
IGOR ZOLNERKEVIC |
Edição 213 - Novembro de 2013
Ao mesmo tempo, apesar do tamanho avantajado, esse macacão podia escalar as árvores e se pendurar em seus galhos com a mesma habilidade, embora um pouco mais lentamente, que as espécies menores de sua família – a dos Atelidae, à qual pertencem o bugio, o macaco-aranha, o macaco-barrigudo e o muriqui. “O Cartelles provavelmente não se movia ou se comportava como nenhuma espécie de macaco do Novo Mundo viva hoje”, diz Lauren.
O fóssil do Cartelles coimbrafilhoi, segundo os pesquisadores, é um dos mais importantes para reconstituir a história evolutiva, ainda pouco conhecida, dos macacos dessa região. A classificação desse fóssil em uma nova espécie – na verdade, gênero e espécie – eleva para quatro o número de espécies de macacos que viveram na América do Sul no final do Pleistoceno e hoje estão extintos. A descoberta de novos fósseis, como os encontrados nos últimos anos por Rosenberger e colaboradores em cavernas submersas da República Dominicana, deve ajudar a completar esse quadro, que ainda tem como peça importante o macaco achado em Campo Formoso em 1992.
Naquele ano, explorando um pequeno trecho da Toca da Boa Vista, que tem 110 quilômetros de extensão e é considerada a maior caverna do hemisfério Sul, uma equipe de espeleólogos encontrou um dos esqueletos e avisou ao grupo de Cartelle, que achou dois esqueletos fósseis de macacos bastante completos, com mais de 90% dos ossos preservados. Os animais devem ter vivido em campos e florestas ao redor da caverna em algum momento, entre 360 mil e 15 mil anos atrás, no final do período geológico chamado Pleistoceno. Logo após a morte dos bichos, suas carcaças devem ter sido levadas por fortes enxurradas para o interior da caverna, onde seus ossos foram preservados. “Encontrar um esqueleto quase completo de qualquer táxon [grupo de organismos] é muito raro”, Lauren comenta.
As primeiras descrições desses fósseis foram publicadas em 1996, em dois artigos científicos escritos por Cartelle e pelo paleontólogo norte-americano Walter Hartwig, da Universidade Touro, na Califórnia. O esqueleto detalhado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) não representou grande desafio. Estudos posteriores confirmaram que a espécie, chamada de Caipora bambuiorum, foi uma versão maior do atual macaco-aranha. Embora pesasse cerca de 20 quilos (o dobro de um macaco-aranha), o Caipora devia se mover de maneira muito parecida, sendo capaz de usar tanto braços e pernas quanto sua cauda preênsil para se deslocar com agilidade entre os galhos das árvores.
Mais enigmático era o outro esqueleto, descrito por Hartwig e Cartelle na Nature. Os pesquisadores concluíram que a hipótese mais provável era que se tratava de um segundo fóssil de uma espécie descoberta um século e meio antes em uma caverna no município de Lagoa Santa, Minas Gerais, a mais de 1.200 quilômetros da Toca da Boa Vista. Em Lagoa Santa, o paleontólogo dinamarquês Peter Lund encontrou em 1836 um fragmento de fêmur e um pedaço de osso do braço, que ele identificou como o primeiro fóssil de primata descoberto na história. O Protopithecus brasiliensis é mencionado por Charles Darwin em seu clássico de 1859, Sobre a origem das espécies, e as estimativas mais recentes sugerem que pesava até 24 quilos.
Cartelle conta, no entanto, que sempre desconfiou que era preciso confirmar se os dois fósseis eram mesmo do Protopithecus. Ele e Hartwig haviam comparado o esqueleto da Toca da Boa Vista com fotos dos fragmentos do Protopithecus brasiliensis, guardados no Museu de História Natural da Dinamarca. Os dois pesquisadores haviam notado pequenas diferenças entre os fósseis, mas as interpretaram como variação natural entre indivíduos da mesma espécie. “Pensava comigo que iria um dia à Dinamarca examinar melhor”, conta Cartelle, que ainda não teve a oportunidade de realizar a viagem.
O suposto Protopithecus da Toca da Boa Vista apresentava ainda uma combinação muito estranha de características para os pesquisadores. Em seu doutorado concluído em 2005, a bióloga Patrícia Guedes, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluiu que a dentição do fóssil, embora um pouco desgastada, reunia características de duas subfamílias dos Atelidae: a dos Alouattinae e a dos Atelinae. Ela observou ainda que a forma do crânio era semelhante à dos outros Alouattinae, subfamília a que pertencem os bugios, enquanto seus dentes pareciam mais com os da subfamília dos Atelinae, a mesma do macaco-aranha, do macaco-barrigudo e do muriqui. Outros estudos, tanto do crânio quanto do resto do corpo, também sugeriam que a espécie misturava características dessas duas subfamílias, separadas há mais de 12,9 milhões de anos.
Para tentar resolver essas contradições, Rosenberger propôs a Lauren, então sua estudante de doutorado, que dedicasse sua tese a esmiuçar completamente os fósseis do P. brasiliensis de Lagoa Santa e da Toca da Boa Vista. Durante algumas semanas em Copenhague e em Belo Horizonte, ela mediu as formas e as dimensões dos ossos fossilizados, para depois comparar com os ossos de centenas de indivíduos de várias espécies de macacos atuais do acervo do Museu Americano de História Natural, em Nova York. O objetivo era determinar onde os fósseis se encaixavam na árvore filogenética dos macacos e deduzir como eles se movimentavam, a partir da forma de seus ossos. “Inferimos a função dos elementos do esqueleto de espécies extintas ao comparar a forma de seus ossos com a dos ossos de espécies vivas”, Lauren explica.
“Lauren notou imediatamente que alguns dos ossos eram bem diferentes anatomicamente”, lembra Rosenberger. Em artigo publicado neste mês no Journal of Human Evolution, ele e Lauren estão propondo que cada um dos fósseis atribuídos ao Protopithecus brasiliensis pertence, na realidade, a uma espécie diferente.
O P. brasiliensis de Lagoa Santa, segundo os pesquisadores, devia ser um atelíneo. Embora seja difícil afirmar qualquer coisa mais detalhada a seu respeito a partir de dois fragmentos de ossos, Lauren supõe que a espécie fosse como um muriqui, mas duas vezes maior. Já o esqueleto da Toca da Boa Vista era da mesma subfamília dos bugios, mas pertencente a um gênero diferente. Sua espécie foi batizada de Cartelles coimbrafilhoi, em homenagem a Cartelle, que há 50 anos estuda os mamíferos do Pleistoceno brasileiro – pelo menos quatro espécies extintas levam seu nome –, e a Adelmar Coimbra-Filho, um dos pioneiros da primatologia brasileira, que atuou para salvar o mico-leão-dourado da extinção.
Lauren estima que o Cartelles coimbrafilhoi pesava entre 25 e 28 quilos, o que faz dele a maior das quatro espécies de grandes macacos que viveram na América pleistocênica. O C. coimbrafilhoi media 1,67 metro do topo da cabeça à ponta da cauda e a base de seu crânio e sua mandíbula lembram as do macaco-barrigudo. Mas o formato geral do crânio se parece com o de um bugio, inclusive com o mesmo grande espaço próximo à garganta, que abriga o aparelho vocal desses macacos capazes de emitir urros audíveis a até 5 quilômetros de distância. Lauren explica, no entanto, que não é possível saber se o C. coimbrafilhoi urrava tão ou mais forte do que os bugios, pois a potência do chamado desses macacos não se relaciona de maneira simples com seu tamanho – ela depende também dos hábitos sociais de cada espécie e do ambiente em que vive.
O restante do esqueleto lembra o de um macaco-aranha, só que mais robusto. O formato de seus ossos sugere uma musculatura bem desenvolvida, adaptada para escalar e se dependurar. Hartwig e Cartelle já haviam proposto que o animal devia se sentir em casa no topo das árvores. Mas, por conta de seu tamanho, alguns pesquisadores descartaram a ideia, sugerindo que a espécie vivesse apenas no chão. De modo geral, apenas as espécies menores costumam ter um estilo de vida arborícola, pois os animais grandes correm mais risco de quebrar um galho e cair. Mas nem sempre é o caso. “O peso da grande maioria dos macacos arborícolas do Velho Mundo está na casa dos 10 quilos”, explica o primatólogo Stephen Ferrari, da Universidade Federal de Sergipe. “Entretanto, o maior primata arborícola, o orangotango, pode chegar aos 100.”
Além de ser bem menor que um orangotango, o Cartelles coimbrafilhoi talvez contasse ainda com a ajuda de sua grossa e longa cauda para se agarrar aos galhos, embora ainda faltem estudos biomecânicos para confirmar se a sua cauda podia ser usada como um quinto membro preênsil, capaz de se pendurar em galhos e sustentar o peso inteiro do animal, como fazem várias espécies vivas da família dos Atelidae.
Em todo caso, os ossos também indicam que a espécie tinha hábitos terrestres bem desenvolvidos. “Parece provável que o comportamento do Cartelles era mais parecido com o dos chimpanzés atuais, que são trepadores habilidosos, mas passam a maior parte de seu tempo no chão”, sugere Ferrari.
Patrícia concorda, lembrando que mesmo bugios e muriquis, normalmente arborícolas, às vezes exploram o chão. Recentemente a equipe da primatóloga Karen Strier, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, registrou entre muriquis-do-norte vivendo em uma reserva particular protegida em Minas Gerais o desenvolvimento de hábitos terrestres. Em artigo publicado em 2012 na Plos One, Karen defende que a mudança de comportamento esteja ligada ao aumento da população, que passou de 60 para 300 indivíduos nos últimos 30 anos, e a falta de espaço para tantos macacos na reserva. Segundo a pesquisadora, ao aprender a explorar o chão, os muriquis encontraram mais comida e houve um aumento da taxa de natalidade, embora os animais também tenham se tornado mais vulneráveis ao ataque de predadores.
As quatro espécies extintas de macacos brasileiros – Cartelles coimbrafilhoi, Caipora bambuiorum, Protopithecus brasiliensis e Alouatta mauroi– conviveram com a megafauna, mamíferos de grande porte, como as preguiças-gigantes e os tigres-dente-de-sabre, que habitaram as Américas no Pleistoceno e podem ter sido extintos por causa das mudanças climáticas. “Espécies grandes de primatas são muito mais vulneráveis à extinção, não importa a causa”, Lauren explica.
Até o momento, não há como saber se alguma espécie de macaco atual descende da linhagem de algum desses grandalhões. “O trabalho de Lauren e Rosenberger chama atenção por mostrar a carência de dados disponíveis sobre a morfologia pós-craniana de primatas americanos”, comenta Patrícia. “Compreender a variação da morfologia dos platirrinos [grupo que inclui os macacos do Novo Mundo, com narinas distantes e voltadas para os lados] é muito importante para propor hipóteses de relacionamento entre eles e compreender a diversificação desses mamíferos na América do Sul.”
Um fim de ano bom
Equipe achou dois fósseis de primatas às vésperas do ano-novo
Ricardo Zorzetto
O ano de 1992 havia praticamente acabado quando Cástor Cartelle, paleontólogo especialista em preguiças extintas, fez uma das descobertas mais importantes da primatologia brasileira. Era 30 de dezembro e ele e dois colegas haviam caminhado duas horas por um labirinto de túneis, passagens estreitas e abismos para chegar ao salão da Toca da Boa Vista, onde estavam, lado a lado, os fósseis de duas das maiores espécies de macacos que viveram nas Américas no final do Pleistoceno. “Inicialmente pensei que fossem um macho e uma fêmea”, conta Cartelle, que mais tarde saberia que os fósseis pertenciam a espécies distintas, ainda não descritas.
Ele e seus colaboradores Mauro Ferreira e Rodrigo Lopes Ferreira não chegaram lá sozinhos. No dia anterior, quatro ou cinco integrantes do Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas, uma equipe grande que durante anos mapeou a Toca da Boa Vista, havia começado a explorar um trecho da caverna chamado “além mundo”, avistado os fósseis e levado uma amostra ao acampamento, uma escola em Laje dos Negros, distrito de Campo Formoso. “Alguém, não lembro quem, trouxe um crânio e nos mostrou”, conta Rodrigo, à época estudante de biologia na UFMG que trabalhava com Cartelle. “Vimos que era de um macaco e pedimos para nos levarem aonde o tinham encontrado.”
No dia 30 de dezembro, ao deparar com os fósseis, os pesquisadores se surpreenderam. “Estava um a cinco metros do outro e o estado de conservação era impressionante”, recorda Rodrigo. Por mais de oito horas ele, Cartelle e Mauro esquadrinharam o chão do local coletando tudo o que encontravam do esqueleto dos macacos, depois descritos como Caipora bambuiorum e Protopithecus brasiliensis (este, rebatizado agora de Cartelles coimbrafilhoi), e de um fóssil de preguiça. Réplicas dos esqueletos estarão expostas no Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, que reabre em dezembro, depois de um incêndio no ano passado.
Na época em que viveram os macacos a região de Campo Formoso abrigava uma floresta tropical úmida, resultado do encontro da vegetação do Atlântico com a da Amazônia. Com o fim da última era glacial, o clima da região se tornou semiárido. No dia da coleta, ao calor e à secura da região se somaram as altas temperaturas da caverna. “Passamos um dia na antessala do purgatório”, conta Cartelle, “nunca suei tanto”. Até ele, que não bebe, naquela tarde tomou um ou dois copos de cerveja para comemorar.
Artigo científico
HALENAR, L. B. e ROSENBERGER, A. L. A closer look at the “Protopithecus” fossil assemblages: new genus and species from Bahia, Brazil. Journal of Human Evolution. v. 65, n.4, p. 374-90. out. 2013.
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