Entomologia: Estranha no ninho
Rainha forasteira invade colmeia órfã e assume o comando das operárias
FRANCISCO BICUDO |
Edição 212 - Outubro de 2013
Estudos realizados pela bióloga Denise de Araujo Alves e seus colaboradores revelam que as abelhas Melipona scutellaris, mais conhecidas como uruçu-nordestina, podem adotar um terceiro e mais arriscado caminho para chegar ao topo da hierarquia social. Em muitas situações, as rainhas virgens escapam de serem mortas pelas operárias e abandonam seus próprios ninhos. Durante a fuga, elas conseguem identificar e invadir colmeias que se tornaram órfãs com a morte da soberana original, mãe das demais abelhas da colônia. Com essa estratégia furtiva, abelhas sem um reino próprio agem como parasitas sociais: conseguem se impor às operárias que não são suas parentes e se beneficiam do trabalho delas. “É a luta pela sobrevivência”, conta Denise, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Os trabalhos de Denise indicam ainda que as invasões têm hora marcada. Acontecem ao cair da tarde, quando é quase noite e as operárias que fazem a guarda dos ninhos estão menos alertas. “Parece ser uma ação calculada”, completa a bióloga.
A hipótese da ocupação de colônias por rainhas invasoras foi sugerida pela primeira vez em 2003 pelo pesquisador holandês Marinus Sommeijer. Trabalhando com abelhas Melipona favosa na Costa Rica e em Trinidad e Tobago, Sommeijer e sua equipe notaram que algumas colônias pareciam ter sido invadidas por forasteiras. Mas suas observações não permitiam confirmar a suspeita. Em 2008, durante seu doutorado, Denise e seus colaboradores decidiram retomar o problema e acompanharam duas populações de Melipona scutellaris – uma mantida no Laboratório de Abelhas do Instituto de Biociências da USP, em São Paulo, e outra na fazenda Aretuzina, em São Simão, no interior do estado, de propriedade de Paulo Nogueira-Neto, um dos pioneiros nas pesquisas com abelhas sem ferrão. Nessas duas populações, a pesquisadora coletou pupas de operárias de 23 ninhos em dois momentos: antes e depois da substituição das rainhas-mãe. Ao comparar as características genéticas da prole de cada colônia, os pesquisadores esperavam descobrir se a rainha morta havia sido substituída por outra rainha da própria colônia ou por uma invasora.
Na Universidade de Leuven, na Bélgica, em parceria com o biólogo Tom Wenseleers, Denise analisou o parentesco das pupas com uso de marcadores genéticos e verificou que os 23 ninhos haviam passado por 24 trocas de rainhas. Em seis casos (25% do total), o comando da colmeia havia sido conquistado por uma rainha invasora – essas abelhas são chamadas de parasitas sociais porque seus descendentes recebem os cuidados de operárias com as quais não têm parentesco genético.
“A invasão permite agora entender por que em algumas espécies é comum encontrar tantas rainhas num mesmo ninho”, explica a bióloga Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, uma das mais respeitadas estudiosas de abelhas no país e orientadora de Denise no doutorado. Segundo Denise, a presença de várias rainhas numa mesma colônia era entendida como uma espécie de reserva para a eventual morte da soberana original ou para a fundação de um ninho-filho. “Mostramos que, caso escapem de serem mortas em suas colônias natais, algumas rainhas saem delas, acasalam com machos nas proximidades do ninho e penetram, já fecundadas, em colônias órfãs da população”, diz a bióloga. Uma vez instaladas nas novas colônias, essas rainhas iniciam a postura de ovos e se aproveitam do trabalho de operárias não aparentadas para manter sua prole.
Ao anoitecer
Depois de comprovar a existência de rainhas invasoras, Denise começou a investigar a razão do sucesso das forasteiras. Em outro trabalho feito em parceria com o grupo de Leuven, os pesquisadores brasileiros acompanharam por dois meses o cotidiano de oito colônias de Melipona scutellaris no Laboratório de Comportamento e Ecologia de Insetos Sociais da USP em Ribeirão Preto, coordenado por Fábio Nascimento. Entre fevereiro e março de 2012, a equipe identificou 520 rainhas virgens e marcou cada uma com um minúsculo chip no tórax. Um leitor instalado na entrada de cada colônia registrava a passagem dessas abelhas – tanto as do próprio ninho quanto as invasoras.
Nos 40 dias em que acompanharam a movimentação das rainhas, os pesquisadores identificaram o trânsito de oito rainhas, das quais três eram parasitas sociais. De acordo com os dados, apresentados na edição de setembro da Animal Behaviour, as invasões aconteceram sempre ao cair da tarde ou no começo da noite, entre as 17 e as 20 horas. “Durante o dia há uma movimentação intensa de entrada de pólen e néctar na colmeia e muitas operárias ficam alertas, tomando conta das entradas das colônias para evitar furtos dos seus estoques de alimento”, conta Denise. “É difícil furar esse bloqueio.” Já no final da tarde, quando a busca por comida diminui e a luminosidade é mais baixa, essa vigilância fica reduzida e as rainhas parasitas aproveitam esses descuidos. Denise suspeita que as rainhas invasoras identifiquem as colônias órfãs guiando-se por pistas químicas. “Nossos dados mostraram que as rainhas entram nos ninhos no fim da tarde e que só invadem os ninhos órfãos”, conta.
Além das implicações evolutivas desse fenômeno, as invasões de colmeias pode influenciar o trabalho dos criadores de abelhas, que normalmente selecionam e dividem os ninhos levando em conta a capacidade de produção de mel de uma colônia. “Com o parasitismo, outra linhagem genética toma conta da colônia e a eficiência de produção pode mudar com o nascimento de operárias filhas da rainha invasora”, alerta Denise. Do ponto de vista ecológico, a ocupação do ninho alheio representa um mecanismo eficiente de dispersar seus genes. “Dessa maneira, a variabilidade genética de uma população pode ser alterada porque o parasitismo social pode aumentar o fluxo gênico entre populações.”
Para Vera Fonseca, o que Denise observou nas colmeias de Melipona scutellaris pode ser um fenômeno mais geral, que ocorre com outras espécies do gênero Melipona e com abelhas com ferrão. “Com as mudanças climáticas, as Melipona scutellaris provavelmente irão buscar ambientes a que se adaptem melhor”, diz Vera, que é professora na USP em São Paulo. “Caso seja necessário fazer o deslocamento assistido dessa espécie, é relevante conhecer como essas abelhas estruturam geneticamente a sua população.”
Como próximo passo, Denise planeja usar os chips e os detectores para estudar a dinâmica de espécies que produzem poucas rainhas. “Queremos verificar se esse comportamento invasivo também ocorre em outras espécies que não pertençam ao gênero Melipona”, diz.
Projetos
1. Parasitismo social intraespecífico como estratégia reprodutiva em abelhas sem ferrão (Apidae, Meliponini) (2010/19717-4); Modalidade bolsa de pós-doutorado; Coord. Denise de Araujo Alves/USP-RP; Investimento R$ 237.463,20 (FAPESP).
2. Mediação comportamental, sinalização química e aspectos fisiológicos reguladores da organização social em himenópteros (2010/10027-5); Modalidade Jovem Pesquisador; Coord. Fábio Santos do Nascimento/USP-RP; Investimento R$ 260.000,00 (FAPESP).
Artigos científicos
VAN OYSTAEYEN, A. et al. Sneaky queens in Melipona bees selectively detect and infiltrate queenless colonies. Animal Behaviour. v. 86, n.3, p. 603-9. Set. 2013.
WENSELEERS, T. et al. Intraspecific queen parasitism in a highly eusocial bee. Biology Letters. v. 7, p. 173-6. 2010.
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