quinta-feira, 25 de novembro de 2010


Crocodilos Brasileiros da Era dos Dinossauros
Fósseis do interior de São Paulo e de Minas mostram que, há mais de 65 milhões de anos, parentes dos jacarés atuais eram caçadores terrestres e até comiam insetos
por Felipe Mesquita de Vasconcellos, Ismar de Souza Carvalho, Reinaldo José Lopes e Thiago da Silva Marinho   -   edição 103 - Dezembro 2010
CROCODILOS, JACARÉS, ALIGATORES E GAVIAIS não são exatamente o grupo mais diversificado de vertebrados atuais. É verdade que ainda existem 23 espécies desses animais, espalhadas por todos os continentes, com exceção da Antártida, mas um observador casual provavelmente não erraria muito se afirmasse que quem viu uma delas conheceu todas. Afinal, esses animais são, sem exceção, adaptados à vida semiaquática, ganhando seu sustento como predadores de emboscada. Os fósseis, no entanto, mostram que esse estilo de vida não tem nada de inevitável para esse grupo de animais. No passado remoto, os crocodiliformes, como são conhecidos coletivamente, podiam ocupar nichos ecológicos quase inimagináveis para quem vê as formas modernas do grupo no Pantanal, no Brasil, ou nos grandes rios africanos.

Esqueletos encontrados em camadas de rocha nos estados de São Paulo e Minas Gerais estão ajudando a contar essa história surpreendente. Em alguns casos, vários indivíduos da mesma espécie foram preservados, praticamente intactos, de forma que é possível estudar não apenas sua morfologia como fazer inferências sobre o comportamento dos animais e as razões que os levaram à morte.

O quadro pintado por esses restos deixa claro que muitos eram caçadores terrestres, corredores de patas esguias e eretas – mais próximos de um lobo-guará que de um jacaré moderno, por assim dizer. Outros, de porte mais modesto, teriam se adaptado ao consumo de insetos e até plantas, enquanto os que hoje nos pareceriam mais estranhos ostentavam uma armadura de placas semelhante à de um tatu. E todos tinham suas garras firmemente plantadas em terra firme, no imenso semideserto que cobria o interior do Brasil no período Cretáceo, há mais de 65 milhões de anos, antes da extinção em massa que eliminou os dinossauros.

A intensificação das coletas de fósseis feitas por nós e outros colegas brasileiros e o uso de novas tecnologias, como a tomografia computadorizada e as animações em 3D, estão ajudando a reconstruir essas criaturas com um grau de detalhamento e precisão sem precedentes.

Estamos acostumados a chamar os crocodiliformes modernos de “répteis”, embora haja uma enorme distância de parentesco entre eles e outras criaturas que recebem essa denominação popular, como serpentes, lagartos e tartarugas. O mais correto, do ponto de vista evolutivo, é classificá-los dentro de um subgrupo de vertebrados terrestres cujo único outro ramo ainda vivo é o das aves.
Trata-se do grupo dos arcossauros, que floresceu pela primeira vez no começo do período Triássico, há cerca de 240 milhões de anos. Do tronco inicial dos arcossauros surgiram tanto os crocodiliformes quanto pterossauros (primeiros vertebrados realmente voadores, donos de asas membranosas) e dinossauros (dos quais as aves não passam de um subgrupo; para todos os efeitos, as aves modernas são dinossauros emplumados).

Antes que os dinossauros se tornassem dominantes nos ecossistemas terrestres, seus primos arcossauros passaram por uma série de diversificações evolutivas, entre as quais a dos crocodilos, que acabaria se tornando uma das mais bem-sucedidas. Os primeiros registros de crocodiliformes datam do Triássico Médio, há cerca de 210 milhões de anos. Em comum, esses animais tinham uma tendência a modificar a postura “reptiliana” padrão – conhecida como sprawling, ou “esparramada”, já que os animais deslizavam, em contato próximo com o solo – em favor de um posicionamento mais ereto dos membros. O extremo dessa tendência se manifesta nos próprios dinossauros, cujo fêmur fi cava posicionado “em linha reta”, imediatamente sob o corpo, como ocorre com a maioria dos mamíferos e aves.

Soluções evolutivas muito parecidas, no entanto, também foram desenvolvidas pelos crocodiliformes. Isso pode parecer estranho para quem conhece as espécies modernas do grupo. Quem pensa em jacarés ou crocodilos provavelmente tem a imagem mental de uma criatura deslizando a barriga por uma margem pantanosa antes de se enfiar na água. Nesse tipo de locomoção, conhecida como belly slide (literalmente “deslize de barriga”), as espécies modernas de fato assumem uma postura esparramada, com os membros projetados lateralmente. Mas é importante lembrar que os animais de hoje são bem mais versáteis na locomoção em terra firme por distâncias mais consideráveis.

Há, por exemplo, o chamado high walk (que poderia ser traduzido simplesmente como “caminhada”), no qual os membros do animal assumem uma postura semiereta, mais esticada. É útil especialmente se o animal precisa se deslocar por períodos maiores no solo, procurando áreas mais úmidas em períodos de seca, por exemplo.

No caso do high walk, fica clara a diferença biomecânica entre o andar de crocodilos e jacarés e o dos lagartos propriamente ditos. Os lagartos também conseguem modificar sua postura esparramada tradicional para ganhar velocidade, mas o fazem aumentando as flexões laterais do tronco para que sua passada fi que mais larga. No caso de crocodilos e assemelhados, essas flexões quase não ocorrem – são os membros os responsáveis por fazer a maior parte do serviço. Finalmente, por mais estranho que isso pareça, os crocodiliformes atuais também são capazes de galopar durante picos curtos de atividade. O mais comum é que o galope seja utilizado durante uma estratégia de fuga: na pressa, as patas traseiras se movimentam juntas e chegam a ficar na frente das dianteiras, quase como se o animal tivesse virado um cachorro.
ILUSTRAÇÃO POR RODOLFO NOGUEIRA E FELIPE MESQUITA DE VASCONCELLOS
Construção virtual do Montealtosuchus arrudacamposi: modelos em 3D ajudam a testar hipóteses sobre a locomoção de espécies.


Essa versatilidade locomotora sugere que a postura real dos crocodiliformes atuais não é exatamente sprawling, como se costuma pensar, mas, a rigor, semiereta. Além disso, levando em conta esses dados modernos e o registro fóssil, fica claro que a postura semiereta não é a condição que predominava no ancestral comum do grupo, mas uma modificação secundária de um padrão original ereto, como os crocodiliformes do Cretáceo brasileiro deixam claro. E, apesar de suas adaptações posteriores, os animais modernos ajudam a dar uma ideia de como seria um crocodilo ou jacaré que andasse a maior parte do tempo em solo seco.

Antes de abordar diretamente essas espécies do passado, no entanto, ainda há outras características dos animais modernos que são relevantes para entender o contexto em que se encontram os fósseis. Uma delas é a construção de tocas nas margens de rios, lagoas e outros corpos d’água, ou de simples buracos no substrato.Numa versão desses abrigos, os chamados gatorholes, ou “buracos de aligátor”, o animal produz uma depressão no leito lamacento que drena a água dos arredores, uma espécie de bacia. Depois, o animal fica semienterrado nesses locais, de modo a se proteger da seca ou da luz solar muito forte nos períodos com pouca chuva. No caso dos aligatores, que abrem essas covas no início da estação seca, os gatorholes acabam virando ponto de encontro para outros animais em busca de água. Já as tocas propriamente ditas, abertas em encostas, podem abrigar o corpo inteiro do animal e, em alguns casos, têm construção relativamente complexa. Como veremos, esses dois tipos de comportamento podem ser relevantes para entender a preservação de alguns dos fósseis mais interessantes do Cretáceo brasileiro.

Não é possível entender a variada fauna de crocodiliformes extintos do país sem levar em conta a história geológica da chamada bacia Bauru, área com cerca de 370 mil quilômetros quadrados que abrange boa parte dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás, além da porção nordeste do Paraguai. Tratava-se, originalmente, de uma grande depressão que se formou conforme o Oceano Atlântico se abria e a América do Sul fi cava mais e mais separada da África, antes unida a ela no supercontinente conhecido como Gondwana. É por isso, aliás, que há afinidades consideráveis entre os crocodiliformes fósseis encontrados aqui e os seus primos africanos.

Usando uma série de técnicas complementares, como a correlação dos fósseis da bacia Bauru com os de outros locais da América do Sul e do planeta e a datação absoluta de rochas vulcânicas, é possível estimar que a idade do conjunto iria, grosso modo, de 125 milhões a 65 milhões de anos atrás, abrangendo, portanto, a maior parte do Cretáceo, até o momento em que esse período termina com a extinção de dinossauros e outros grupos de animais.

As rochas da bacia Bauru carregam “assinaturas” claras de um clima quente e predominantemente semiárido, com uma delimitação clara entre estações secas e chuvosas. Ao que parece, a falta crônica de água tem a ver com o fato de que, a leste, a depressão formada pela bacia fazia fronteira com regiões mais elevadas, as quais funcionavam como uma barreira para as nuvens de chuva vindas do então jovem oceano Atlântico. Por outro lado, a oeste só havia mais continente, o que certamente não favorecia a chegada de umidade e aumentava os extremos climáticos da região. Além disso, sabe-se que o clima de todo o planeta no Cretáceo era mais quente que o atual, em parte graças à concentração mais elevada de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. No fim do Cretáceo, por exemplo, a temperatura global pode ter sido, em média, 4º C mais elevada.
Por isso, acredita-se que animais e plantas da bacia Bauru enfrentavam longas estiagens, pontuadas por períodos curtos de grandes inundações. Se fosse possível uma comparação com os biomas brasileiros de hoje, o resultado seria uma estranha mistura de caatinga, cerrado e Pantanal, dependendo da época do ano, com algumas áreas realmente desérticas hoje não encontradas no Brasil. Rios temporários cortavam paisagem e, em alguns casos, surgiam áreas pantanosas, como o chamado “pantanal Araçatuba” ou “lago Araçatuba”, cujas águas deviam ser estagnadas e salobras, a julgar pelos sedimentos da formação de mesmo nome que chegaram até nós.

É por isso que, apesar das características semidesérticas da região, vieram da bacia Bauru fósseis relativamente abundantes de animais com hábitos aquáticos, como tartarugas de água doce, moluscos, anfíbios e peixes. Mas o ambiente terrestre sem dúvida oferecia mais oportunidades, como deixam claro os crocodiliformes encontrados em abundância na região.

Talvez o exemplo mais arquetípico desses animais seja o gênero Baurusuchus (suchus é a forma latinizada do termo grego para crocodilo). Ele foi descrito pela primeira vez em 1945, com base num crânio da espécie Baurusuchus pachecoi achado no oeste do estado de São Paulo, por Llewellyn Ivor Price, um dos pioneiros da paleontologia moderna no Brasil. A mera análise do crânio e da dentição já deixava claro que se tratava de um predador soberbo, com dentes munidos de serrilhas que lembram os dos dinossauros carnívoros. O formato craniano e o posicionamento dos olhos e das narinas, bem diferentes dos que se vê entre crocodiliformes modernos, indicavam que se tratava de um animal terrestre. (Para caçar semisubmersos, os animais atuais têm narinas localizadas no alto do focinho.)

Preparar a rocha original para extrair delas os fósseis tem suas limitações para quem quer reconstruir a anatomia do animal, porque a preparação pode acabar desarticulando os ossos. Por isso, no caso de parte desse material, a opção foi passar o bloco ainda não preparado por uma tomografia computadorizada no Centro de Diagnóstico por Imagem do Leblon (RJ). Os dados obtidos dessa maneira permitem fazer uma reconstrução tridimensional do fóssil, altamente confiável e não invasiva. Esse modelo virtual depois foi utilizado para testar hipóteses sobre a locomoção da espécie com a ajuda de animações 3D.
A partir dessas análises, ficou claro que o B. salgadoensis tinha um andar que classificaríamos de ereto, não muito diferente do de um dinossauro quadrúpede. É possível até que, durante curtos períodos, ele pudesse assumir uma postura bípede. As patas da frente aparentemente permitiam um andar digitígrado (ou seja, apoiado nas pontas dos dedos), enquanto os membros traseiros fi cavam apoiados nas plantas das patas.

Com 3 m de comprimento e cerca de 100 kg, o animal tinha hábitos cursoriais (de corredor) – embora certamente não fosse um guepardo, estava longe de se comportar de forma lerda ou “reptiliana”. É possível que a cauda fosse rígida, como a de vários dinossauros carnívoros, de forma a impedir que ela atrapalhasse a corrida arrastando-se no chão. Sua armadura de osteodermas (os “calombos” ósseos que decoram o corpo de crocodilos ou jacarés) era relativamente leve. Com essas características anatômicas, um animal desses simplesmente afundaria se fosse jogado n’água.

A concentração de diversos indivíduos da espécie no mesmo sítio em General Salgado, aliada ao excelente estado de preservação e às características do sedimento, permite postular que eles tenham morrido há 90 milhões de anos durante um episódio de seca extrema, abrigados em suas tocas ou gatorholes à espera de uma chuva que, ao menos para eles, chegou tarde demais.

Ocupando mais ou menos o mesmo nicho ecológico de superpredador terrestre, embora pertencente a outra família de crocodiliformes, está o Uberabusuchus terrificus, com tamanho estimado em 2,5 m e cerca de 80 kg de peso, achado em Peirópolis, distrito da cidade mineira de Uberaba. Mais recente, o animal tem cerca de 70 milhões de anos e foi descrito formalmente em 2004. A postura ereta para andar em terra firme também o aproxima dos Baurusuchus em termos de hábitos mais gerais de vida.

A diversidade de superpredadores crocodiliformes na bacia Bauru supera em muito a presença de espécies de dinossauros carnívoros, os terópodes. De fato, dessa região chegaram até nós muito mais formas de dinossauros herbívoros de pescoço longo, os chamados saurópodes, do que de dinos carnívoros. Isso levanta a possibilidade de que os principais predadores da bacia Bauru fossem crocodilos, e não dinossauros. Mas o cenário é um pouco mais complexo e incerto. Há registros de dentes de terópodes para a região, embora outros materiais fósseis sejam raros. E lesões num dos crânios de B. salgadoensis poderiam ter sido provocadas por um dinossauro carnívoro de grande porte – ou pelo combate com outro membro da espécie.

FOTO DE DR. THIAGO MARINHO
Crânio do Armadillosuchus arrudai revela estranheza de suas formas, como cúpula de placas ósseas na cabeça


PARALELOS INTRIGANTES
De qualquer maneira, a impressão de que nossos paleocrocodilos eram um clube de superpredadores temíveis fi ca bastante balançada quando se leva em conta outros gêneros mais modestos, mas não menos interessantes. Um exemplo, descrito em 2006, é o diminuto Adamantinasuchus navae, com 90 milhões de anos e apenas 50 cm de comprimento, cuja anatomia e hábitos têm paralelos intrigantes com os dos mamíferos do Cretáceo.

Além de pequeno, o A. navae exibe uma dentição especializada, incomum entre crocodiliformes ou mesmo outros arcossauros. Na frente da cabeça relativamente curta, a criatura tinha dois grandes dentes parecidos com incisivos, ou incisiformes, que se projetam para a frente, além de sete outros dentes com características semelhantes a molares, os ditos molariformes. É possível que essa dentição estranha ajudasse, ao mesmo tempo, a “fi sgar” presas pequenas, como insetos (no caso dos incisiformes), e a triturar material duro e fibroso, talvez de origem vegetal, com os pseudomolares.
Outra peça do quebra-cabeça comportamental do A. navae são os olhos, cujas órbitas são imensas em relação ao tamanho da cabeça. A característica pode indicar hábitos noturnos. Estaríamos falando, portanto, de um animal furtivo, provavelmente de hábitos oportunistas, comendo tanto plantas quanto insetos e outros pequenos animais. É um nicho ecológico muito parecido com o da maioria dos mamíferos existentes no Cretáceo. A espécie não é o único crocodiliforme com hábitos alimentares mais variados. O Mariliasuchus amarali exibe várias dessas mesmas características, entre elas a especialização dentária.

Quando pensamos em crocodilos onívoros, no entanto, poucos batem o recorde de estranheza estabelecido pelo Armadillosuchus arrudai em 2009, quando dois de nós (Carvalho e Marinho) publicamos a descrição da espécie. Também encontrado em General Salgado, o animal, com cerca de 2 m e 90 kg, apresenta um mosaico de traços morfológicos que fazem lembrar os tatus atuais.

Para começar, atrás da cabeça da criatura estava disposta uma cúpula de placas ósseas hexagonais, mas que permitiam o movimento do pescoço. Atrás desse chamado escudo cervical está um conjunto de oito bandas móveis guarnecidas por esse mesmo tipo de armadura – bandas móveis um bocado similares às que se encontram entre os tatus. Para completar o conjunto, as patas da frente eram guarnecidas com garras que talvez permitissem cavar tocas com efi ciência. Eis um animal que os Baurusuchus teriam grande dificuldade em devorar.

Não há dúvida de que outras descobertas como essas estão à espera dos que continuarem a vasculhar os afloramentos rochosos e os cortes de estrada do interior do Brasil. Ao mostrar como um grupo aparentemente tão bem conhecido de animais explorava possibilidades insuspeitas de sobrevivência no passado remoto, elas deixam claro a capacidade do processo evolutivo para moldar belas, intrincadas e surpreendentes criaturas.
Felipe Mesquita de Vasconcellos, Ismar de Souza Carvalho, Reinaldo José Lopes e Thiago da Silva Marinho Felipe Mesquita de Vasconcellos é biólogo formado pela UFRJ, com mestrado e doutorado em geologia pela mesma universidade. É paleontólogo e professor da UFRJ.
Ismar de Souza Carvalho é geólogo formado pela Universidade de Coimbra, com doutorado e mestrado em geologia pela UFRJ e pós-doutorado pela Unesp.
Reinaldo José Lopes é editor de Ciência da Folha de S.Paulo e autor do livro “Além de Darwin”.
Thiago da Silva Marinho é biólogo formado pela Universidade Federal de Uberlândia, com mestrado e doutorado em geologia pela UFRJ.  - 
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