O ninho do “flaminlhão”
Fósseis de ovos e ossos de ave de 18 milhões de anos reforçam paren-tesco entre flamingos e mergulhões
MARCOS PIVETTA |
Edição 201 - Novembro de 2012
Ela tinha a estrutura óssea e provavelmente a aparência similares às de um grande flamingo atual, com pernas longas, pescoço comprido, bico curvo e talvez a plumagem já apresentasse o característico tom róseo. A altura atingia por volta de 1,5 metro. Mas seus hábitos reprodutivos – botar vários ovos em um ninho com estrutura de gravetos erigida em ambiente lacustre – lembravam os de um mergulhão moderno, ave de pequeno ou médio porte que, aos olhos de um leigo em ornitologia, parece um tipo de pato acinzentado. Assim, com pinta de flamingo e comportamento de mergulhão, devia ser a extinta ave que, há cerca de 18 milhões de anos, depositou em território espanhol cinco pequenos ovos num abrigo flutuante revestido por uma frágil moldura lenhosa.
Esse longínquo ser alado construiu o mais antigo ninho fóssil de ave registrado na literatura científica, cujos vestígios praticamente intactos foram encontrados no que um dia foi um raso lago de água salina, hoje soterrado por camadas e mais camadas de sedimentos, na bacia calcária do rio Ebro, norte da Espanha. “É o primeiro ninho flutuante conhecido e a primeira evidência de uma estrutura para abrigar ovos de ave”, diz o biólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos autores de um estudo sobre o material fóssil espanhol publicado em 17 de outubro na revista Plos One.
Ao lado do ninho, que protegia ovos semialongados com dimensões máximas de 4,5 por 3 centímetros, foram resgatados uns poucos fragmentos de ossos do pé (tarso e metatarso) e um bem preservado tibiotarso esquerdo, a popular coxa da ave. “Analisamos, em separado, o tibiotarso e o ninho com os ovos e chegamos à mesma conclusão”, afirma Silveira. “Trata-se de um paleoflamingo, um gênero e espécie novos e extintos dessa família de aves.” Especialista em ovos de répteis e aves, o paleontólogo suíço Gerald Grellet-Tinner, do Centro Regional de Investigaciones Científicas y Transferencia Tecnológica (Crilar), da Argentina, e do Field Museum de Chicago, também não tem dúvidas de que o ninho foi feito por um flamingo primitivo. “Os ovos são tecidos biomineralizados que apresentam morfologia funcional e valor filogenético igual ao dos ossos de um esqueleto”, afirma Grellet-Tinner, que também assina o estudo no periódico científico. “Desse ponto de vista, a casca de um ovo é uma impressão digital e fornece informações específicas sobre uma espécie.” A microestrutura dos ovos foi analisada com o emprego de cinco diferentes técnicas de microscopia eletrônica a fim de aumentar a confiabilidade dos resultados obtidos.
Águas salinas
Os gravetos e o restante do material vegetal utilizados para fazer o ninho também foram determinados, embora nesse caso de forma mais genérica. Os gravetos eram de uma planta da vasta família das Fabaceae, as populares leguminosas, que englobam desde alimentos como a soja e o feijão até árvores como a cerejeira e o pau-brasil. O ambiente em que os fósseis foram resgatados, de água com alto teor de salinidade, também é associado a flamingos, que vivem na beira de mares ou em estuários de rios. Os mergulhões, que submergem para pegar peixes, preferem, por sua vez, água doce, embora também possam ser vistos em cursos d’água salobra.
O ninho com os ovos e o tibiotarso foram descobertos por paleontólogos espanhóis em 2003 quando desenvolviam trabalhos de campo na chamada formação Tudela que precederam a construção de uma barragem destinada a evitar cheias do rio Ebro.
Nessa região de clima semiárido já haviam sido encontrados fósseis de crocodilos, tartarugas, cobras e ostracodos, um tipo de crustáceo de uns poucos milímetros. Por não serem especialistas em aves, os pesquisadores ibéricos procuraram se cercar de estudiosos desses animais, aos quais repassaram o material obtido na escavação. Recorreram a Silveira, que fez toda a análise da parte óssea, comparando os ossos encontrados no Ebro com material osteológico das coleções de aves do MZ-USP e do Museu de História Natural de Taubaté (MHNT). Contataram também Grellet-Tinner, que ficou responsável por estudar o ninho e os ovos.
Entre 12 e 29 milhões de anos atrás existiu um gênero extinto de ave, o Palaelodus, que às vezes é apresentado como dono de uma anatomia e estilo de vida intermediário entre a morfologia e o comportamento de flamingos e mergulhões. Segundo os pesquisadores, o novo fóssil não pertence a esse gênero desaparecido. No máximo, é um parente que pode ter sido contemporâneo do Palaelodus. Isso não quer dizer que o paleoninho do Ebro seja pouco importante do ponto de vista evolutivo. Ao contrário. Os cientistas o classificam como mais um aliado de uma teoria que ganhou força nos últimos anos: a de que flamingos e mergulhões, embora hoje exibam morfologia e comportamento muito diferentes, são realmente grupos irmãos.
Estudos da anatomia e da genética dessas aves sugerem que, num passado remoto, antes de divergirem e darem origem a duas famílias distintas de animais alados, elas tiveram um ancestral comum há mais de 20 milhões de anos, durante a época geológica denominada Mioceno. Os novos fósseis recém-descritos nas páginas da Plos One reforçam ainda mais essa ideia. “Esse artigo abre portas para muitas especulações evolutivas sobre esses grupos de aves”, afirma o paleontólogo Herculano Alvarenga, diretor do Museu de História Natural de Taubaté, especialista em aves fósseis.
Ancestral comum
Ainda não batizada com um nome científico, a nova espécie de paleoflamingo parece indicar que os primeiros exemplares dessa família de aves tinham hábitos reprodutivos e de construção de ninhos semelhantes aos dos mergulhões do passado. É possível que tais práticas remontem ao hipotético ancestral comum das duas famílias de aves. Esse comportamento consistia, grosso modo, em botar vários ovos pequenos em um ninho revestido por gravetos, procedimento que se manteve até os dias de hoje entre as 22 espécies de mergulhões vivas, mas que desapareceu entre as seis espécies atuais de flamingos.
Sob esse ponto de vista, o fóssil espanhol seria um resquício de um tempo remoto em que os ninhos de mergulhões e flamingos exibiam estrutura parecida. As espécies vivas de flamingos constroem abrigos de barro para seus futuros filhotes e não usam nenhum revestimento de ramos no entorno dessa estrutura. Em cada ninho põem geralmente apenas um único e grande ovo, bem maior do que os presentes no fóssil na bacia do Ebro (ver ilustração no início desta reportagem).
Um dos primeiros desafios da dupla Silveira e Grellet-Tinner foi determinar se os cinco ovos protegidos por uma estrutura circular de graveto, que aparentemente flutuava na beira do antigo lago, formavam mesmo um ninho construído que se manteve milagrosamente preservado por milhões de anos. Havia a possibilidade remota de que cada ovo tivesse uma origem distinta e sua junção, um ao lado do outro, no interior do abrigo de madeira, fosse obra do acaso. Mas todas as evidências levantadas pelos pesquisadores derrubaram essa hipótese: os cinco ovos eram iguais, do mesmo tipo, e o contexto em que o ninho fora encontrado sinalizava que a estrutura de gravetos não era fruto de movimento fortuito da natureza. A descoberta, ao lado do ninho, de ossos de uma ave reforçou ainda mais essa teoria.
“Encontrar ovos (fossilizados) é raro. Encontrar ninhos é ainda mais raro. Mas encontrar ovos em um ninho e conseguir estabelecer a que grupo eles pertencem é algo muito raro e interessante”, comenta o paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Não é possível saber com certeza se os ossos vieram da ave que fez o ninho, mas essa hipótese é plausível. Afinal, as análises do brasileiro e do suíço foram conduzidas de forma independente – um só soube do veredicto do outro ao final do trabalho – e ambos concluíram que o tibiotarso e os ovos eram de alguma forma primordial de flamingo hoje não mais presente na Terra. “Aparentemente, os ossos encontrados pertenceram a um único exemplar de ave”, diz Silveira. Por um motivo que nunca será conhecido, o animal possivelmente morreu ao lado do ninho. Não dá para afirmar nem mesmo se o osso pertenceu a uma fêmea ou a um macho. Flamingos do sexo masculino não botam ovos, mas podem chocá-los no ninho de sua fêmea.
Infelizmente, não há outros ninhos fósseis parecidos com o resgatado na bacia do rio Ebro. Qualquer comparação desse tipo dependerá de uma eventual descoberta de uma segunda estrutura de gravetos com ovos de aves, um tipo de achado bastante improvável dada a fragilidade desse tipo de construção, de acordo com os especialistas. Mas quem sabe a história ocorrida em terras espanholas se repita algum dia em outro canto do globo.
Artigo
GRELLET-TINNER, G. et al. The first occurrence in the fossil record of an aquatic avian twig-nest with phoenicopteriformes eggs: evolutionary implications. Plos One. Publicado on-line.
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