Bela invasora do mar
10 de maio de 2016
Karina Toledo | Agência FAPESP – O nome pomposo foi escolhido em homenagem a duas personagens da mitologia grega: Cassiopeia, a rainha da Etiópia que com sua vaidade e arrogância teria provocado a ira das Nereidas, e Andrômeda, sua filha, oferecida em sacrifício a um monstro marinho enviado pelo deus Nereu para castigar o reino etíope.
Pesquisadores confirmam a presença de medusas da espécie Cassiopea andromeda
no litoral brasileiro. Análises sugerem que o animal teria emigrado do
mar Vermelho para as Américas durante as grandes navegações (foto: Sergio Stampar)
Reservada, Cassiopea andromeda não é como outras espécies de água-viva que saem por aí nadando em busca de comida e de parceiros sexuais. Ela procura um canto para chamar de seu e por ali permanece, de ponta-cabeça, durante boa parte da vida. Mas é exigente: o local deve ter água calma, rasa, quente e transparente. É também de uma grande beleza.
Até pouco tempo atrás, os cientistas acreditavam que essa espécie originária do mar Vermelho não ocorria no litoral brasileiro – que, de maneira geral, não lhe oferece as condições ideais de sobrevivência. Mas sua presença na forma adulta – de medusa – foi pela primeira vez confirmada no país em um estudo apoiado pela FAPESP e publicado recentemente no Journal of the Marine Biological Association of the United Kingdom.
Análises genéticas descritas no artigo sugerem que a presença de Cassiopea andromeda em águas brasileiras é bem mais antiga do que se poderia imaginar.
Uma das hipóteses é que ela teria vindo para as Américas na época das grandes navegações e, inicialmente, se instalado na região da Flórida e do Caribe. Em seguida, aproveitando o intenso fluxo de caravelas que cruzavam o continente naquele período, teria alcançado o Havaí e o litoral sul-americano.
“Nossa teoria é que, na forma de pólipo [a primeira fase de seu ciclo de vida], a espécie teria grudado em alguma embarcação antiga e, assim, chegado ao Brasil”, relatou Sérgio Nascimento Stampar, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Assis e coautor do artigo.
Assim como ocorre com outras espécies de águas-vivas, explicou o pesquisador, o ciclo de vida de Cassiopea andromeda é dividido em duas fases: pólipo e medusa.
As medusas adultas se reproduzem de forma sexuada e geram os pólipos – organismos sésseis (que não se movimentam voluntariamente e vivem fixos a rochas, conchas ou outras estruturas sólidas), com no máximo 5 milímetros de tamanho, que são considerados imortais pelos cientistas.
“Os pólipos podem se reproduzir de forma assexuada e dar origem a novos pólipos com a mesma carga genética ou, se as condições do meio forem favoráveis, podem brotar e se transformar em medusas. Na fase adulta, o animal pode alcançar entre 30 e 40 centímetros de diâmetro, o tamanho de uma pizza”, disse Stampar.
A presença de pólipos da Cassiopea andromeda já havia sido identificada no Brasil em 1999, no Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar/USP).
“Não achávamos que encontraríamos a forma adulta em nosso litoral porque elas preferem condições parecidas com as existentes no Caribe: águas claras, que permitem a passagem da luz do sol. Essa dependência da energia solar se deve ao fato de que a espécie vive em associação com um organismo simbionte, um protista dinoflagelado que faz fotossíntese e transfere parte do carbono gerado para a medusa em troca de acolhida e proteção”, disse Stampar.
Além de ficar com parte da energia produzida pelo inquilino, a Cassiopea andromeda também se alimenta de pequenos animais que habitam o sedimento marinho. Para isso, ela permanece de ponta-cabeça e bate contra o fundo do oceano para levantar uma nuvem de petiscos com a qual se delicia.
O professor André Carrara Morandini, chefe do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências (IB) da USP e autor principal do artigo, contou que recebeu em 2008 fotos de uma população de águas-vivas bastante peculiar que havia aparecido no canal Itajuru, na cidade de Cabo Frio (RJ).
“Na época, eu trabalhava em um campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) próximo de Cabo Frio e me pediram ajuda para identificar a espécie até então desconhecida. Sabíamos que pertencia ao gênero Cassiopea, mas este abrange 12 diferentes espécies e não conseguíamos definir claramente em qual delas os animais se encaixavam”, disse.
Por meio das análises genéticas, o grupo confirmou que se tratava de Cassiopea andromeda. Ao comparar as amostras coletadas no Brasil com dados de bancos públicos, como o www.ncbi.nlm.nih.gov/genbank, notaram que o material genético era idêntico ao de animais encontrados no Caribe e na região do mar Vermelho.
“Começamos, então, a discutir como essas águas-vivas teriam se deslocado por distâncias tão grandes e concluímos que vieram durante as grandes navegações. Com técnicas de datação molecular, modelos que calculam a taxa de mutação de uma espécie, foi possível estimar quando essa migração teria ocorrido. Mas ainda não sabemos se ela migrou gradativamente do Caribe para o Brasil ou se houve uma segunda introdução independente no continente americano”, disse Morandini.
Desaparecimento repentino
Por algum motivo que os pesquisadores ainda desconhecem, a população de medusas encontrada em Cabo Frio se desenvolveu intensamente entre os anos de 2008 e 2009 e depois entrou em declínio. No auge populacional, os pesquisadores contaram mais de 2 mil indivíduos em uma área de 200 metros quadrados. Entre 2012 e 2013, todos desapareceram.
Os pólipos da espécie, no entanto, continuam por lá e podem ser encontrados em diversas partes do litoral brasileiro.
“Esse desaparecimento repentino das medusas é um indício de que se trata de uma espécie não nativa, ou seja, introduzida ou invasora. Outra evidência é que, nessa população de Cabo Frio, todos os indivíduos eram machos”, disse Morandini.
No artigo, o grupo discute o risco ambiental representado por espécies invasoras, que na ausência de predadores naturais podem dominar uma determinada região e comprometer a sobrevivência de outras espécies, gerando desequilíbrio ecológico.
“Em algumas partes do mundo, como no Japão, a explosão populacional de águas-vivas é um problema sério. Elas são peçonhentas e podem matar peixes e outros organismos marinhos que com elas tiverem contato – prejudicando a piscicultura e a pesca. Como a Cassiopea andromeda é uma espécie introduzida no Brasil, isso pode ocorrer a qualquer momento, caso ela se adapte à região”, disse Stampar.
Morandini, porém, acredita que os riscos são pequenos. “A espécie poderia, talvez, causar algum desequilíbrio em uma região mais fechada, como uma baía ou uma lagoa. Como são animais com mobilidade bastante reduzida, dificilmente vão se dispersar por grandes distâncias. Não acredito que haveria um grande impacto no ambiente que chegasse a prejudicar os humanos”, avaliou.
As análises que deram origem ao artigo foram feitas no âmbito de um Projeto Temático coordenado pelo professor do IB-USP Antonio Carlos Marques, no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP).
O artigo All non-indigenous species were introduced recently? The case study of Cassiopea (Cnidaria: Scyphozoa) in Brazilian waters (doi: 10.1017/S0025315416000400) pode ser lido em journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=10266270&fileId=S0025315416000400.
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