Na água com o espinossauro
Estudo reforça hipótese de que o maior dinossauro carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos
MARCOS PIVETTA |
ED. 242 | ABRIL 2016
No imaginário popular, o Tyrannosaurus rex, com seus 13 metros de comprimento e 7 toneladas, é a representação máxima da ferocidade dos dinossauros. Mas, nos últimos anos, estudos sucessivos têm se dedicado a caracterizar melhor os atributos anatômicos e em especial o modo de vida de um grupo de dinossauros, igualmente carnívoros, cujos maiores exemplares ultrapassavam as medidas do “rei dos lagartos tiranos”: os espinossauros, gigantes de esqueleto alongado como crocodilos, dotados de uma sequência de vértebras no dorso com formato parecido ao de uma vela náutica. No filme Jurassic Park III, de 2001, um desses “lagartos-espinhos”, que podiam chegar a 15 metros de comprimento e talvez 20 toneladas, vence uma batalha contra um T. rex. A rivalidade entre ambos não passa de ficção. Os dois grupos de dinossauros não coexistiram no tempo ou no espaço.
Não foi apenas por suas medidas superlativas que os espinossauros se tornaram recentemente um interessante objeto de estudo. Alguns trabalhos desta década, como um artigo de pesquisadores da Universidade de Chicago publicado na revista Science em setembro de 2014, indicam que eles parecem ser os únicos representantes de uma linhagem de dinossauros adaptada tanto à vida terrestre como ao meio aquático, nos arredores da costa, de rios ou de lagos. Certos traços ósseos da espécie Spinosaurus aegyptiacus, como o focinho de crocodilo, os dentes cônicos e os pés em formato de pá, e restos de peixe encontrados em seu intestino sugerem que essa família de dinossauros podia nadar e caçar no ambiente aquático. Um estudo recente de paleontólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) corrobora essa ideia por meio de um outro tipo de evidência.
Cálculos estatísticos sugerem que a chance de um “lagarto-espinho” ter habitado ambientes aquáticos era significativamente maior do que a de um abelissauro ou de um carcarodontossauro, duas famílias de grandes dinossauros carnívoros, de hábitos sabidamente terrestres, mais ou menos contemporâneas aos espinossauros. “De acordo com nossos testes estatísticos, apenas os espinossauros apresentaram uma correlação positiva com ambientes costeiros do passado”, afirma César Schultz, da UFRGS, um dos autores do estudo, cujos resultados saíram em 1º de fevereiro na revista Plos One. “Mas eles não devem ter sido exclusivos das áreas com água. Devem também ter habitado zonas terrestres, a exemplo dos abelissauros e carcarodontossauros.” Os três grupos de dinossauros alcançaram seu auge em distintos intervalos de tempo do período Cretáceo, entre 145 e 66 milhões de anos atrás, e habitaram terras do antigo supercontinente austral Gondwana, hoje equivalentes ao norte da África e à América do Sul, inclusive o Nordeste do Brasil.
Para fazer o trabalho, os pesquisadores coletaram dados sobre as ocorrências de fósseis das três famílias de dinossauros disponíveis até o final de 2014 no Paleobiology Database, um banco de dados internacional que reúne mais de 58 mil referências sobre achados paleontológicos. Depois de separarem os registros mais duvidosos, chegaram a um total de 198 lugares no globo onde foram encontrados vestígios razoavelmente confiáveis de, ao menos, um exemplar de espinossauro, abelissauro ou carcarodontossauro. “As localidades podiam apresentar desde apenas um fóssil de uma das famílias até vários representantes dos três grupos de dinossauros”, diz Marcos Sales, principal autor do trabalho, que faz doutorado sob orientação de Schultz.
Carcarodontossauro: Grupo
de carnívoros com dentes afiados, similares aos do tubarão, tinha
hábitos terrestres. Acima, ilustração da espécie Concavenator corcovatus.
Teste do qui-quadrado
Encontrar fósseis de espinossauros, ou de qualquer dinossauro ou vertebrado, em sedimentos associados a antigos lagos ou áreas litorâneas não quer dizer necessariamente que esse tipo de lugar era um de seus nichos ecológicos. Os animais podem ter vivido e morrido no interior dos continentes e seus fósseis simplesmente transportados para uma região costeira. Em tese, processos sedimentares e o acaso — e não a hipótese de que realmente viveram perto ou dentro da água — podem ser os responsáveis por haver um certo número de vestígios de espinossauros em camadas geológicas representativas de zonas de vida aquática do Cretáceo. É esperado que haja um número bem maior de registros fósseis de dinossauros associados a antigos ambientes terrestres do que ligados a áreas de vida aquática. O processo de sedimentação, necessário para a formação de fósseis, é muito mais comum nas regiões internas de um continente, distantes dos grandes corpos de água, do que em suas zonas costeiras ou fluviais. “Há muito mais espaço no interior do que na costa e isso, com certeza, deve enviesar o registro de muitos grupos de animais terrestres”, diz Sales.
Abelissauro: Reconstituição do esqueleto de um Majungasaurus crenatissimus, espécie desse grupo de bípedes carnívoros terrestres com pequenos membros anteriores.
O trabalho de Sales e Schultz fornece mais um tipo de indício de que os “lagartos-espinhos” podem ter exibido hábitos semiaquáticos durante o Cretáceo. “O estudo é interessante e corrobora essa ideia”, afirma Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mas o tema é extremamente polêmico.” Segundo Kellner, que descobriu espécies de espinossauros, como o Angaturama limae e o Oxalaia quilombensis, na bacia do Araripe em sedimentos do Cretáceo, as camadas geológicas em que são encontrados muitos fósseis dessa família de dinossauros nem sempre estão bem delimitadas. Por isso pode ser difícil associá-las com precisão a ambientes marinhos do passado remoto.
Crocodilo com orelhas
Forma extinta e terrestre do réptil que viveu no interior paulista pode ter tido um grande pavilhão auditivo externo
Jacaré-do-papo-amarelo tem um “tampão” de tecido mole onde no passado haveria orelhas.
À medida que os crocodilos foram deixando os ambientes secos e migrando para o entorno do meio aquático, seu pavilhão auditivo teria sofrido modificações anatômicas e assumido outras funções. “O aparecimento de novas formas de crocodiliformes esteve associada a uma dramática alteração no ouvido externo”, diz o biólogo Hans Larsson, da universidade canadense. No lugar das antigas orelhas, os répteis, ao se tornarem anfíbios, teriam passado a exibir uma espécie de tampão composto de tecidos moles, um traço anatômico muito mais funcional em seu novo hábitat aquático. Hoje todas as espécies de crocodilos e jacarés vivem perto da água. A maioria é encontrada à beira de rios, embora existam formas marinhas.
Para embasar as conclusões do estudo, Montefeltro analisou coleções de fósseis de baurusuquídeos, abundantes no estado de São Paulo, e de outras formas extintas de crocodilos e dissecou exemplares de jacarés pertencentes a espécies viventes, como o jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris).
A estrutura anatômica analisada mais detalhadamente pelos pesquisadores foi a câmara meatal, nome técnico da caixa de ressonância que constitui o ouvido externo desses répteis. O trabalho foi feito no âmbito de um projeto temático sobre a origem e evolução dos dinossauros e outros répteis, coordenado por Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto.
Projeto
A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 2014/03825-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Max Langer (USP-Ribeirão Preto); Investimento R$ 1.706.876,45 (para todo o projeto).
Artigos científicos
SALES, M. A. F. et al. The “χ” of the matter: Testing the relationship between paleoenvironments and three theropod clades. PLoS One. 1° fev. 2016.
MONTEFELTRO, F. C. et al. The evolution of the meatal chamber in crocodyliforms. Journal of Anatomy. 4 fev. 2016.
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