sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Encontros furtivos

Cruzamento entre gatos-do-mato distintos é mais comum do que se acreditava
MARIA GUIMARÃES | ED. 159 | MAIO 2009

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© EDUARDO CESAR
Sem mistura: felinos do zoológico de São Paulo não são frutos de hibridização
O Brasil tem uma riqueza privilegiada de gatos silvestres. 
Só no gênero Leopardus estão o gato-do-mato-grande, o gato-do-mato-pequeno, o gato-palheiro, o gato-maracajá e a jaguatirica. 
O Rio Grande do Sul se destaca, com mais diversidade do que a Amazônia, em termos de felinos: o gato-do-mato-grande e o gato-palheiro, de origem patagônica, existem ali mas não no norte do país. 
A destruição dos seus hábitats naturais faz com que essas cinco espécies, com exceção da primeira, sejam consideradas vulneráveis no Livro vermelho das espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2008. Para os especialistas, porém, o maior risco que esses animais enfrentam é a falta de conhecimento, que impede que se delineiem estratégias eficazes de conservação. É isso que o grupo do biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), busca sanar. Com resultados por vezes surpreendentes, como o que Tatiane Trigo revelou no doutorado: 60% dos gatos-do-mato do Rio Grande do Sul são híbridos. E os encontros reprodutivos entre espécies distintas não se restringem àquele estado.
Parte dos resultados, publicados no final do ano passado na Molecular Ecology, dizem respeito à região gaúcha onde o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi) e o gato-do-mato-pequeno (L. tigrinus) se encontram. São gatos bastante parecidos, manchados e de pequeno porte. Como o nome sugere, o primeiro costuma ser maior e pode chegar a quase 8 quilogramas, com uma pelagem que tende para o cinzento. Já o gato-do-mato-pequeno não passa de 3,5 quilos, tem um aspecto mais delicado e uma coloração amarelada. A distribuição de cada um no Brasil, porém, é bastante diferente: o gato maior só é encontrado no sul do Rio Grande do Sul, enquanto o menor existe em quase todo o território brasileiro – exceto no extremo sul gaúcho.
Tatiane conta que a área crucial para os encontros dos felinos é a depressão central do estado, palco de mudanças ecológicas marcantes. Para o norte a paisagem é dominada pela serra recoberta por Mata de Araucárias, a versão local da Mata Atlântica, e para o sul se estendem as campanhas do Pampa. 
É nessa região de transição entre dois ecossistemas, pelas particularidades do relevo uma zona de fácil acesso para seres humanos pelas estradas, que a pesquisadora obteve mais amostras e detectou, com base em estudos genéticos, a preponderância de híbridos. Ao todo, ela examinou 57 amostras do gato-do-mato-pequeno e 41 do grande, recolhidas em vários estados brasileiros: eram animais atropelados nas estradas, abatidos por fazendeiros ou que vivem em zoológicos e têm origem conhecida. Entre eles, pelo menos 14 se revelaram híbridos, um recorde em termos de hibridização até agora observada em carnívoros. A maior parte deles vinha da região central do Rio Grande do Sul. O trabalho incluiu também sete amostras (só duas delas do Brasil) do gato-palheiro, o Leopardus colocolo, e verificou que essa espécie também forma híbridos com tigrinus. “As populações brasileiras do gato-do-mato-pequeno podem ter DNA de três espécies distintas”, afirma Eizirik.
Mesmo assim, as análises não deixam dúvidas de que as três espécies são geneticamente distintas. Até onde se pôde detectar, porém, os híbridos entre elas são normalmente férteis – nada como os burros, mistura entre cavalos e jumentos, que vivem normalmente mas são incapazes de deixar descendentes. No caso dos gatos, a possibilidade de detectar os híbridos só se tornou realidade com as técnicas atuais para se destrinchar e comparar o material genético. Em termos de aparência, na maior parte dos casos os híbridos tinham o aspecto de uma das duas espécies de que descendiam. A surpresa veio ao examinar o DNA, que guardava alguns trechos característicos da outra espécie. Alguns dos animais, porém, eram obviamente híbridos, com tamanho e coloração intermediários. É material para pôr fogo nas discussões sobre onde começa e onde termina cada espécie.
O grupo observou também uma baixa diversidade genética nos dois gatos-do-mato, que indica uma expansão populacional recente. Os resultados já levaram os pesquisadores a formular uma hipótese sobre a história de Leopardus tigrinus e geoffroyi. Até que mais estudos tragam outros indícios, a equipe de Eizirik acredita que durante cerca de 1 milhão de anos esses gatos-do-mato evoluíram em áreas distintas, sem a oportunidade de se encontrar. Só mais recentemente, por volta de 70 mil anos atrás, as duas espécies – ou talvez só tigrinus, o gato-do-mato-pequeno – teriam expandido sua distribuição geográfica, fazendo com que machos e fêmeas das duas espécies se encontrassem na depressão central gaúcha. Uma hipótese é que os gatos-do-mato-pequenos tenham seguido a expansão das florestas, seu ambiente favorito, durante um período de clima mais úmido. “Precisamos desenvolver mais marcadores genéticos para descobrir se os híbridos começaram a se formar naquela época ou se o fenômeno é mais recente, desde que intervenções humanas começaram a alterar de maneira drástica a ecologia da região”, diz Tatiane.
O estudo publicado na Molecular Ecology é parte do doutorado que a pesquisadora desenvolveu sob orientação do geneticista Thales de Freitas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coorientação de Eizirik. A tese, que ela defendeu em novembro de 2008, traz atua­lizações em relação ao artigo – mais amostras, mais marcadores genéticos e análises mais completas. Os resultados já dão aos pesquisadores mais confiança nas interpretações, embora o trabalho não esteja finalizado. Mesmo concluído o doutorado, Tatiane continua buscando aumentar a amostragem e completar as análises antes de enviar mais trabalhos para publicação. Ao mesmo tempo, outros membros do grupo ajudam a completar peças dessa história. É o caso de Alexsandra Schneider, que em seu mestrado encerrado este ano desenvolveu mais ferramentas genéticas para ajudar a identificar os gatos híbridos e caracterizar esse encontro entre espécies.
Separados pelo estômagoPara destrinchar os fatores ecológicos que poderiam estar envolvidos no isolamento – e no encontro – entre geoffroyi tigrinus, Tatiane investigou os hábitos alimentares dos gatos das duas espécies. Em princípio, esses dois gatos-do-mato têm preferência por ambientes distintos, o primeiro vive em áreas de vegetação aberta como os Pampas gaúchos, enquanto o segundo busca as florestas úmidas, como as áreas mais fechadas da Mata Atlântica e do Cerrado. A diferença nos ambientes que frequentam poderia ser responsável por evitar encontros entre as duas espécies, mesmo dentro de uma mesma região. Mas aparentemente não é o que acontece, inclusive porque o gato-do-mato-grande é às vezes visto em mata fechada e sua contrapartida pequena também pode passear entre os arbustos espinhentos da Caatinga e pela vegetação esparsa que caracteriza parte do Cerrado.
Em busca de caracterizar a ecologia desses animais que dificilmente são observados na natureza, a pesquisadora examinou o conteúdo dos estômagos de 13 Leopardus tigrinus e 17 geoffroyi que foram encontrados mortos nas estradas do Rio Grande do Sul. Ao identificar os animais que servem de refeição aos gatos-do-mato, ela verificou que 50% da dieta coincide entre as duas espécies. A outra metade da dieta dá força às preferências dos gatos por hábitats diferentes. Os roedores encontrados unicamente nos estômagos do gato-do-mato-pequeno são em geral típicos de florestas. Já os animais que viraram almoço do gato-do-mato-grande, como o preá e o lagarto da espécie Mabuya dorsivittata, costumam ser mais associados a áreas abertas. Os resultados são promissores, mas Tatiane ainda os considera muito preliminares. Além da dificuldade em obter uma amostragem adequada, ela conta que, de maneira geral, a ecologia dos roedores é ainda menos conhecida que a dos gatos, o que dificulta as associações ecológicas.
Até agora os resultados da pesquisa contam que o gato-do-mato-grande e o pequeno vieram de lugares diferentes e, quando se encontraram, descobriram afinidades reprodutivas. A história do gato-palheiro ainda está para ser contada, mas os indícios recolhidos por Tatiane indicam um enredo bem diferente. Grandes dúvidas cercam inclusive a classificação dessa espécie, que, com seus 4 quilos, chega a se parecer com um gato doméstico amarronzado de patas listradas e cauda curta. Conhecido por muito tempo como Leopardus colocolo, hoje alguns pesquisadores defendem que na verdade esse gato se divide em três espécies, e o nome colocolo estaria reservado à espécie chilena. Conforme essa corrente, os gatos-palheiros do Brasil ficariam batizados como L. braccatus. A questão não é central para o grupo gaúcho, mais interessado em entender a história e a ecologia desses gatos.
Tatiane conta que teve dificuldades em obter amostras do gato-palheiro, não só por ele ser o mais raro entre os três felinos que ela examinou em seu trabalho, mas também porque foi preciso negociar colaborações para ter acesso a animais que vivem na parte norte da distribuição da espécie, no Mato Grosso e em Goiás. Agora um acordo firmado com outros pesquisadores permitirá obter um número muito maior de amostras e, quem sabe, ter uma história mais completa para contar nos próximos anos. Por enquanto, os dados sugerem que na região central do Brasil há uma zona, ainda indefinida, onde o gato-do-mato-pequeno e o palheiro se encontram e produzem híbridos. “Acreditamos que essa hibridação aconteceu no passado, entre fêmeas colocolo e machos tigrinus”, diz Eizirik, se referindo a diferenças entre o que seu grupo observou entre o cromossomo Y, transmitido de pai para filho, e o resto do material genético.
Já o gato-do-mato-grande não se mistura com o palheiro, embora não lhes faltem oportunidades para encontros. As duas espécies surgiram na Patagônia e convivem no mesmo ambiente. O grupo de geneticistas gaúchos acredita que a explicação para a ausência de hibridização está na longa história compartilhada. Tendo evoluído juntas, algum mecanismo ainda desconhecido certamente teria impedido que essas duas espécies gerassem híbridos, o que impediria que se firmassem como espécies distintas.
Criaturas de índole discreta, os felinos não entregam seus segredos facilmente. Eizirik ainda tem muito trabalho pela frente, mas considera que os resultados que seu grupo já obteve são essenciais não só para conhecer melhor os gatos brasileiros, mas também para proteger essas espécies.
Artigo científico

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