terça-feira, 6 de setembro de 2016

Rios de um planeta deserto

Simulações matemáticas ajudam a entender como fluíam os grandes cursos d’água em planícies antes de surgir a vegetação terrestre
IGOR ZOLNERKEVIC | ED. 245 | JULHO 2016
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© RENATO PAES DE ALMEIDA
Paredão rochoso na serra dos Brejões, observado a partir do morro do Pai Inácio, na chapada Diamantina: rios primitivos preservados na rocha
Paredão rochoso na serra dos Brejões, observado a partir do morro do Pai Inácio, na chapada Diamantina: rios primitivos preservados na rocha.

Uma enorme parede de rocha nua se destaca na serra dos Brejões, uma das mais belas paisagens no Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Em uma faixa horizontal desse paredão, que pode ser visto na foto ao lado, uma equipe liderada pelo geólogo Renato Paes de Almeida, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), identificou vestígios de um rio caudaloso que havia na região há cerca de 1,5 bilhão de anos. Esse rio possivelmente cruzou um vasto terreno plano que haveria por ali e seria muito diferente dos grandes rios de planície atuais, que têm canais profundos, são sinuosos e cercados por vegetação. Em vez dessas características, o antigo rio atravessaria terras nuas e seria formado por múltiplos canais rasos, que se entrelaçariam continuamente, sendo interrompidos por largos bancos de areia (ver infográfico na página 55).

Almeida e seus colaboradores usaram um novo modelo matemático para reconhecer as marcas que o rio primitivo deixou nas rochas. Proposto pelo grupo da USP e publicado este ano na revista Geology, o modelo permite reconstituir a forma e o comportamento de rios que existiram antes de as plantas crescerem sobre os continentes. “O modelo ajudou a prever as características que esses rios teriam”, conta o pesquisador. “Depois do trabalho teórico, fomos a campo procurar em afloramentos rochosos estruturas sugeridas pelo modelo.”

Um dos locais visitados foi a serra dos Brejões, um afloramento bem conhecido pelos geólogos. Tendo em mente as novas características sugeridas pelo modelo, os pesquisadores passaram a observar detalhes não notados antes.

Registros da atividade de rios de planície primitivos, como os encontrados agora na Bahia, são raros. Na maioria das vezes, as marcas dos grandes cursos d’água que existiram há mais de 440 milhões de anos estão impressas em rochas que formaram os trechos mais íngremes de seus leitos, em regiões montanhosas e próximas à nascente.

Segmentos do curso intermediário ou próximos à foz só passaram a deixar registros mais abundantes após o surgimento de ambientes dominados por uma vegetação capaz de crescer em terra firme, composta por plantas vasculares. Essa transformação ocorreu por volta de 434 milhões de anos atrás, no período geológico Siluriano.
© GOOGLE EARTH
O sinuoso Mississipi, nos Estados Unidos...
O sinuoso Mississipi, nos Estados Unidos…

Antes disso, os continentes eram praticamente desertos e as formas de vida macroscópicas estavam restritas aos oceanos. O avanço inicial de tapetes de uma vegetação semelhante a musgos para o interior dos continentes passou a moldar o contorno dos rios. Mais tarde, com o solo estabilizado pelas raízes das plantas, os rios ganharam margens mais firmes e definidas. Os canais se tornaram mais profundos e aumentou o transporte de areia e cascalho para as regiões costeiras. Nas grandes planícies das regiões de clima úmido, os rios adquiriram contornos sinuosos (meandrantes), como o do atual rio Mississipi, nos Estados Unidos.

O conhecimento sobre as transformações por que passaram os rios, do surgimento dos musgos, cerca de 460 milhões de anos atrás, ao aparecimento das primeiras árvores, há 390 milhões de anos, avançou muito nas últimas décadas. Uma das motivações foi econômica, pois se sabe que rios antigos cercados de vegetação originaram reservatórios de petróleo. Mas dos anos 1970 para cá quase nada mudou do que se conhecia sobre o curso dos rios da fase pré-vegetação.

Ainda hoje os livros de geologia ensinam que, antes de a vegetação existir, os rios deveriam ser do tipo entrelaçado em lençol, comum em áreas montanhosas ou em regiões glaciais de terreno íngreme. Esses cursos d’água deveriam lembrar os atuais rios da Islândia, onde quase não crescem plantas e há muita erosão. A água escorre esparramada por vários canais, em geral rasos, que se bifurcam à medida que surgem bancos de areia. “Os rios de pé de montanha quase não mudaram de aparência desde antes do Siluriano”, explica Almeida. “Os modelos antigos pré-vegetação eram baseados em rios pequenos, íngremes e de clima árido. Os pesquisadores nunca se perguntaram como eram esses rios nos trechos distantes das montanhas e os de planícies nas quais chovia tanto quanto na Amazônia de hoje.”

Almeida e seus colaboradores desenvolveram seu modelo matemático modificando outro, proposto nos anos 1990 pelo físico e geólogo Chris Paola, da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. No modelo de Almeida, a equação indica a quantidade de areia e lama que um rio sem vegetação depositaria em um dado trecho de seu curso, desde as áreas próximas à nascente, no sopé de uma montanha, até as mais distantes, no interior de uma planície.
© GOOGLE EARTH
... e um rio entrelaçado na geleira Vatnajökull, na Islândia
… e um rio entrelaçado na geleira Vatnajökull, na Islândia.

A partir das soluções dessa equação, Almeida concluiu que os rios sem vegetação seriam como os entrelaçados apenas nos trechos mais íngremes. Esses rios começariam no pé das montanhas com uma ampla rede de canais rasos e cruzados, onde a correnteza ainda teria força suficiente para transportar areia grossa e cascalhenta. Mas perderiam rapidamente a capacidade de transportar sedimentos pesados à medida que adentrassem em regiões de menor declividade. “Nesses trechos, os rios deixariam de ser entrelaçados típicos”, diz Almeida. “Teriam menos canais, relativamente mais largos, fundos e sinuosos, porque transportariam e depositariam apenas areia fina e lama.”

O modelo também explica por que são raros os registros do curso intermediário dos rios de planície anteriores ao Siluriano. Como esses rios depositavam pouco sedimento nas áreas planas mais distantes, quase só se encontram as marcas deixadas pelos trechos iniciais de seu percurso, onde o acúmulo de areia e outros sedimentos era maior.

Essa hipótese lança ideias importantes que podem ajudar a entender melhor a evolução dos ecossistemas na Terra. Se o modelo estiver correto, o fluxo de sedimento das montanhas para o mar deve ter sido muito menor antes do Siluriano do que é hoje. Uma das consequências é que as praias do planeta deveriam ser de uma areia mais fina, o que poderia afetar a vida de animais e plantas na zona de arrebentação. Outra é que a água do mar perto do litoral seria menos turva e permitiria à luz do Sol, essencial à maior parte da vida marinha, chegar a profundidades maiores do que as atuais.
Almeida e os geólogos André Marconato, da USP, Bernardo Tavares Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Bruno Boito Turra, do Serviço Geológico do Brasil, visitaram os afloramentos da formação Tombador, na chapada Diamantina, em busca de vestígios do leito médio de um rio de planície de antes do Siluriano. A região é cheia de cânions escarpados, nos quais se podem ver depósitos de diferentes trechos de rios que existiram entre 1,6 bilhão e 1 bilhão de anos atrás e pertenceram a uma mesma bacia sedimentar.

052-055_Rios primitivos_245Os geólogos mediram as estruturas impressas nas rochas, tiraram fotos em alta resolução e fizeram desenhos minuciosos dos afloramentos. Examinando as texturas e as formas dessas estruturas, eles deduziram como eram os canais e os bancos de areia. Também inferiram para onde a água fluía e a quantidade de sedimentos transportados. “Não é intuitivo”, diz Almeida. “A partir dos cortes verticais, tivemos de interpretar uma estrutura em três dimensões.”

Preso a cordas de rapel, Bernardo Frei-tas desceu escarpas na região da serra dos Brejões e identificou ali o leito de um rio que se assemelha muito ao previsto pelo modelo de Almeida para os rios de planície de antes do Siluriano. Uma faixa horizontal de quase 100 metros de largura por 15 metros de altura preservou a forma dos canais entrelaçados entre bancos de areia e das camadas de lama depositadas nas margens durante as inundações da planície.

O modelo de Almeida sugere que os rios de planície que existiam antes de surgir a vegetação terrestre seriam mais parecidos com trechos do Irauádi, que atravessa as planícies de Mianmar, no Sudeste Asiático. “A verdade é que não há um análogo atual aos rios anteriores à vegetação”, afirma.
O modelo de Almeida e seus colaboradores prevê ainda que esses rios, depois de atravessarem um bom trecho de planície, já próximo ao mar, transportariam apenas partículas suspensas muito finas, de lama. Nessas regiões, esses rios poderiam ganhar um aspecto mais meandrante. Recentemente o geólogo Maurício Martinho dos Santos, ex-aluno de doutorado de Almeida e hoje em estágio de pós-doutoramento no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, identificou uma rara ocorrência de sedimentos finos depositados por um rio meandrante de antes do Cambriano, há mais de 540 milhões de anos, em um afloramento na Escócia. A descoberta, feita em parceria com Geraint Owen, da Universidade de Swansea, no Reino Unido, foi publicada em janeiro na revista Precambrian Research. “Os rios meandrantes hoje são a regra, mas eram exceção”, diz Almeida.

“Essa é uma hipótese interessante, que precisa ser testada em outras bacias sedimentares”, diz o geólogo Mario Luis Assine, professor da Unesp em Rio Claro e especialista em sistemas fluviais antigos e atuais. “O modelo de Almeida e seus colaboradores se propõe a explicar por que os rios meandrantes eram raros antes do Siluriano. Existe a possibilidade de que eles tenham existido em maior quantidade e de que apenas não os tenhamos identificado corretamente ainda”, conta Assine. E completa: “Não vemos os rios. Vemos apenas seus depósitos sedimentares e fazemos interpretações  a partir deles”.

Projeto
 
Arquitetura deposicional de sistemas aluviais pré-vegetação da formação Tombador (Mesoproterozoico), chapada Diamantina, BA (nº 2011/50280-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Renato Paes de Almeida (IGc-USP); Investimento R$ 166.964,99.

Artigo científico
 
ALMEIDA, R. P. et al. The ancestors of meandering rivers. Geology. v. 44 (3), p 203-6. mar. 2016

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