Onde estão as serpentes brasileiras
Atlas recolhe informações sobre as áreas de ocorrência de todas
as espécies registradas no país, mapeia biodiversidade e detecta regiões
prioritárias para novos inventários
De cor laranja-avermelhada e tamanho modesto (não passa de 50 centímetros), a serpente da espécie Phalotris lativittatus
é naturalmente rara e de distribuição geográfica bastante restrita.
Como se não bastasse, sua incidência no estado de São Paulo, onde é
endêmica (só existe ali), vem diminuindo cada vez mais devido à perda de
hábitat em remanescentes do Cerrado paulista – fragmentado e degradado
nas últimas décadas pelo avanço das cidades, da agricultura e da
pecuária. Estima-se que a área de ocorrência da serpente seja um pouco
maior que 2 mil quilômetros quadrados (km²), agravando sua situação de
espécie quase ameaçada de extinção na lista vermelha da União
Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Phalotris lativittatus é uma das 412 espécies registradas no Atlas de serpentes brasileiras, publicado na forma de artigo científico em edição especial da revista South American Journal of Herpetology,
de dezembro de 2019.
Com 274 páginas e assinado por 32 pesquisadores, a
maioria do Brasil, o trabalho descreve em detalhe a distribuição
geográfica de todas as espécies de serpentes encontradas até agora no
país, com base em mais de 163 mil exemplares preservados desde o século
XVIII em 140 coleções biológicas de universidades e museus de história
natural e coleções biológicas do Brasil e do mundo.
“Foram aproximadamente nove anos organizando e georreferenciando uma
síntese de informações produzidas ao longo de muitas décadas sobre uma
das faunas de serpentes mais ricas do planeta”, diz o biólogo Cristiano
Nogueira, pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo (IB-USP) e coordenador do trabalho. Por trás da publicação está
uma base de dados que reúne todos os registros conhecidos e validados
das espécies em todo o continente sul-americano, e pode servir como
ferramenta para novos estudos em biogeografia e biodiversidade. “O atlas
reúne um esforço inigualável de amostragem feito por gerações de
pesquisadores e instituições”, observa Nogueira.
Resultados preliminares, divulgados em 2015 por Pesquisa FAPESP,
já indicavam que algumas espécies haviam perdido até 80% da área de
floresta ou campos que ocupavam três décadas antes. Agora, com o
mapeamento concluído, é possível ter uma visão mais abrangente e atual
do problema, afirma o biólogo, ressaltando que os mapas localizam
detalhadamente onde estão as serpentes nos diversos biomas brasileiros.
A maior parte das espécies tem distribuição restrita no país e no
continente sul-americano. São localizadas em poucos pontos dentro de
zonas relativamente pequenas, como a já mencionada Phalotris lativittatus ou Philodryas arnaldoi,
endêmica das florestas de araucária. As espécies de distribuição
restrita, diz Nogueira, são as mais sensíveis aos impactos humanos – é
mais fácil provocar a extinção de um animal que existe apenas em uma
área pequena.
Uma serpente que vem perdendo hábitat é Erythrolamprus carajasensis,
endêmica da parte sul da Amazônia, por onde passa o chamado arco do
desmatamento, região da floresta amazônica que sofre mais com queimadas e
invasões. Outra é a corre-campo Philodryas livida, uma espécie
que vive apenas em regiões de topos de planalto onde a vegetação se
limita a capins, ervas e árvores muito esparsas, nos chamados campos
limpos ou campos sujos do Cerrado brasileiro. É o tipo de território que
vem sendo amplamente utilizado pela agricultura mecanizada para a
produção de milho e soja, por exemplo.
“Observando os mapas vemos que Philodryas livida era
encontrada em São Paulo, mas hoje não há mais registro no estado”, diz o
biólogo Otavio Marques, do Laboratório de Ecologia e Evolução do
Instituto Butantan, em São Paulo, e coautor do Atlas de serpentes.
“Os únicos encontros recentes estão no Parque Nacional das Emas, em
Goiás, evidenciando a importância das unidades de conservação integral
no país”, completa. Segundo ele, a extinção de um animal desses não
representa prejuízo apenas do ponto de vista da biodiversidade.
“Perde-se a chance de pesquisar seu potencial uso no tratamento de
doenças”, explica Marques, lembrando que um importante fármaco usado
contra hipertensão arterial, o Captopril, foi desenvolvido a partir do
veneno da jararaca (Bothrops jararaca).
Em outros casos, a perda de vegetação nativa pode favorecer a distribuição de algumas espécies, como a cascavel [Crotalus durissus],
cuja distribuição se estende por áreas abertas e ensolaradas de todo o
país. “Trata-se de uma espécie intolerante à umidade”, observa Marques.
Assim, no mapa fica evidente a quase total ausência de registros na
Amazônia. Com a diminuição das áreas de florestas e o impacto das
mudanças climáticas, ela tem expandido sua distribuição geográfica pelo
país, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. “O interior de São Paulo,
onde havia muita mata, está cheio de cascavel”, sublinha.
Para Cristiano Nogueira, os mapas de distribuição apresentados no
atlas servem como subsídio científico para a conservação de serpentes,
além de abastecer com novos dados estudos evolutivos que buscam entender
como diferentes espécies de serpentes vivem no país.
Ele afirma que a
publicação do atlas é uma forma de reduzir o que os biogeógrafos chamam
de déficit Wallaceano, uma lacuna de conhecimento sobre onde estão
distribuídas as espécies.
O nome é uma forma de homenagear o naturalista
britânico Alfred Russel Wallace, que iniciou os estudos sobre
distribuição das espécies da fauna ainda no século XIX e é por isso
considerado o pai da biogeografia, ciência que estuda a distribuição dos
seres vivos. “Em pleno século XXI, com as imagens de satélite, temos
ótimos mapas de hidrografia, relevo, tipos de vegetação, porém poucos
bons mapas de distribuição de espécies”, acrescenta.
Exemplo de como o atlas pode suscitar novos questionamentos e descobertas é o caso de Micrurus ibiboboca,
uma cobra-coral comumente referida como típica da Caatinga. “Chamou a
atenção o animal ter sido identificado tanto em áreas de mata fechada no
litoral do Nordeste brasileiro como no interior, em áreas abertas de
Caatinga ou Cerrado”, explica Marques. “Poderíamos supor que se trata de
uma espécie versátil, adaptada a diferentes ambientes, mas tudo leva a
crer que as informações taxonômicas estão imprecisas e, na verdade, as
serpentes registradas no litoral e na Caatinga pertencem a espécies
distintas”, sugere ele, lembrando que novos estudos são necessários para
testar a hipótese.
Áreas preciosas
Outra contribuição do atlas é determinar o grau de endemismo nos diferentes biomas brasileiros. De acordo com o levantamento, 163 espécies catalogadas são exclusivamente brasileiras, ou seja, 39% das encontradas. “Nosso estudo detecta concentrações de endemismo em diferentes zonas do território brasileiro, algumas delas até então pouco estudadas”, afirma Nogueira. Uma das mais conhecidas é a porção sul da Mata Atlântica, até seu ponto de contato com as pastagens de araucárias e o Pampa, no Sul do país. Na parte norte da Mata Atlântica, englobando as regiões central e sudeste da Bahia, já quase fazendo contato com a Caatinga, também há muitas serpentes endêmicas.
No Nordeste do país, pelo menos duas áreas de Caatinga apresentam
altos níveis de endemismo: a depressão do médio rio São Francisco e
áreas de altitude mais elevada no Ceará. Já no Cerrado, destacam-se as
cabeceiras da bacia do Tocantins – incluindo a região do Jalapão e da
serra da Mesa –, o planalto da serra do Roncador, no nordeste de Mato
Grosso, e um grande conjunto de áreas de endemismo na porção oeste do
domínio, próximo ao Chaco e Pantanal. Na Amazônia, o endemismo se
concentra na parte norte, do leste de Belém até áreas próximas das
Guianas, incluindo os estados do Amapá e Roraima e a fronteira com a
Colômbia. “Todas essas áreas inspiram cuidados e requerem iniciativas de
conservação direcionadas, uma vez que abrigam espécies que não ocorrem
em outros lugares”, salienta Nogueira.
De modo geral, poucas espécies ocorrem amplamente em todo o país. Uma delas é a boipeva (Xenodon merremii),
uma serpente agressiva, embora não venenosa, encontrada dos pampas no
Sul do país até as savanas na Amazônia, passando por Mata Atlântica,
Cerrado, Pantanal e Caatinga. Os pesquisadores observaram que é comum
encontrar maior diversidade perto de centros urbanos: leste do estado de
São Paulo, sul da Bahia, Região Metropolitana de Belém, no Pará,
sudoeste de Mato Grosso e oeste de Mato Grosso do Sul. Em São Paulo,
foram registradas quase 40 espécies. Já em Belém, são mais de 80.
De acordo com Marques, essas áreas apresentam a maior riqueza (número
de espécies) e diversidade filogenética (número de linhagens) de
serpentes, talvez por causa da variedade de formas de vegetação e de
relevo. Além disso, são nessas áreas urbanas onde houve mais coletas.
“Também são lugares com mais espécies descritas, porque estão próximas a
centros de pesquisa como o Instituto Butantan”, diz Marques.
“Isso indica que precisamos concentrar novas amostragens em regiões
mais distantes, fora das imediações dos centros urbanos, longe dos
locais mais acessíveis, para obter melhores dados e otimizar os
esforços”, sugere. “Temos agora um mapa para direcionar a busca por
conhecimento, por novas espécies e novos registros de distribuição”,
conclui.
Projetos
1. Origem e evolução das serpentes e a sua diversificação na região neotropical: Uma abordagem multidisciplinar (nº 11/50206-9); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Hussam El Dine Zaher (USP); Investimento R$ 4.928.500,61.
2. Biogeografia, biodiversidade e conservação de répteis Squamata cisandinos (nº 15/20215-7); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Cristiano de Campos Nogueira (USP); Investimento R$ 630.298,27.
3. Estrutura de taxocenoses de anfíbios, répteis e pequenos mamíferos no Cerrado: O papel de fatores locais e regionais (nº 15/21259-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcio Roberto Costa Martins (USP); Investimento R$ 144.757,41.
4. Efeitos de alterações de hábitat sobre comunidades de anfíbios e répteis Squamata: Subsídios para programas de manejo, avaliações de risco de extinção e planos de ação de conservação (nº 18/14091-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcio Roberto Costa Martins (USP); Investimento R$ 184.274,90.
5. Novas abordagens de ecologia e conservação: Diversidade filogenética e funcional de anfíbios e serpentes da Mata Atlântica brasileira (nº 14/23677-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ricardo Jannini Sawaya (UFABC); Investimento R$ 167.681,18.
Artigo científico
NOGUEIRA, C. C. et al. Atlas of Brazilian snakes: Verified point-locality maps to mitigate the Wallacean shortfall in a megadiverse snake fauna. South American Journal of Herpetology. v. 14, esp. 1, p. 1-274. 31 dez. 2019.
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