segunda-feira, 9 de maio de 2011

O limite da floresta
Grupo de São Paulo identifica os sinais que precedem extinções em série na mata atlântica
© Fabio Colombini
Anfíbios, afetados pelo desmatamento
A  mata atlântica é uma floresta aos pedaços. Segundo estimativas recentes, restam de 11% a 16% de sua cobertura original, a maior parte na forma de fragmentos com menos de 50 hectares de vegetação contínua, cercados de plantações, pastagens e cidades. Há tempos se sabe que essa arquitetura desarticulada dificulta a recuperação da floresta, uma das 10 mais ameaçadas do mundo. Agora as equipes do ecólogo Jean Paul Metzger e da zoóloga Renata Pardini, ambos da Universidade de São Paulo (USP), constataram que, para cada grupo de animais vivendo nessa paisagem retalhada, existe um ponto de não retorno, um limite mínimo de cobertura vegetal nativa que precisa ficar de pé para manter a variedade de espécies de certa região. Quando o desmatamento ultrapassa esse limite, a maioria das espécies é extinta em todos os trechos de mata da área.

Por quase uma década 60 pesquisadores coordenados por Metzger coletaram informações sobre a abundância e a diversidade de anfíbios, aves e pequenos mamíferos em dezenas de trechos de mata atlântica no Planalto Ocidental Paulista, as terras em declive que se estendem da serra do Mar rumo a oeste e ocupam quase metade do estado. Ao comparar os dados, os pesquisadores observaram quedas dramáticas na biodiversidade dos fragmentos de regiões próximas e parecidas, que diferiam apenas em área total de vegetação nativa.

Uma paisagem com 50% de suas matas preservadas, ainda que dispersas em fragmentos, por exemplo, apresentou uma diversidade de aves sensíveis à perda de vegetação três vezes maior do que uma paisagem semelhante com 30% de vegetação. Pequenos mamíferos como a cuíca Marmosops incanus, marsupial de pelagem cinza, olhos grandes e focinho alongado, resistiram mais à derrubada da floresta. Mas, mesmo para eles, o fim veio rápido uma vez atingido o limite. Houve uma queda de 60% a 80% no número de espécies quando a área de mata nativa encolhia para menos de um terço da original.

O estudo não fornece um valor único de área mínima de mata nativa necessária para manter intacta a biodiversidade do ecossistema. “Para outros grupos de animais, as perdas bruscas podem acontecer mais cedo ou mais tarde, dependendo da capacidade de deslocamento das espécies e da resistência a perturbações”, explica Metzger, que diz ser razoável o limite de desmatamento fixado para a mata atlântica pelo Código Florestal em vigor.

A análise dos dados permitiu a Renata e Metzger – com o auxílio de Adriana Bueno e Paulo Inácio Prado, também pesquisadores do Instituto de Biociências da USP, e de Toby Gardner, da Universidade de Cambridge, Inglaterra – chegar a uma explicação plausível de por que a biodiversidade dos fragmentos de mata atlântica diminuiu em algumas regiões, mas, em outras, se manteve parecida com a de trechos de vegetação contínua da serra do Mar. Em um artigo publicado em outubro de 2010 na revista PLoS One, eles apresentam um modelo conceitual de como isso aconteceria.

Segundo o modelo, o colapso das populações seria causado pela combinação de processos que ocorrem em duas escalas: local e regional. Os processos com efeito regional estão ligados à dificuldade de migrar de um fragmento de floresta para outro. Condicionada à área total de matas remanescentes na região, essa dificuldade aumenta com o avanço do desmatamento, pois crescem exponencialmente as distâncias separando os trechos de florestas – e muitas espécies, até pássaros como o trepador-coleira (Anabazenops fuscus), não se deslocam de um fragmento a outro quando há pastagens ou estradas no caminho. Presos a áreas restritas, essas espécies se tornam mais suscetíveis a processos que influenciam as extinções em escala local, como a redução na área dos fragmentos, que diminui o tamanho das populações.

O mais importante é que esse modelo pode orientar decisões sobre o melhor modo de aplicar recursos para conservar e recuperar a mata atlântica. Segundo os pesquisadores, ele prevê, por exemplo, que os eventos que precedem a extinção dariam pistas de sua chegada com antecedência. A maneira como as espécies se distribuem nos fragmentos de uma região sinaliza quando a biodiversidade está no limite de cair abruptamente, mas ainda tem boa chance de ser recuperada. “Nessas condições, pequenos investimentos de restauração que facilitem o fluxo de animais entre os fragmentos produziriam um retorno grande”, diz Metzger. “Se quisermos aumentar a cobertura florestal da mata atlântica com ganhos rápidos de diversidade biológica, é nessa faixa [regiões com 20% a 40% de remanescentes] que temos de atacar.”

Um dos fundamentos do modelo é a evolução da geometria dos fragmentos, que Metzger e outros pesquisadores passaram a compreender melhor ao simular em computador como o desmatamento recorta uma floresta virtual. Essas simulações sugerem que, à medida que a vegetação nativa de uma região diminui, ocorre uma transformação fundamental em uma característica dos fragmentos de floresta: a distância entre eles, que no início cai de modo gradual, passa a aumentar exponencialmente.

A partir desses resultados, confirmados em paisagens reais por Metzger e pesquisadores de outros países, o grupo da USP começou a se questionar se a evolução da geometria dos fragmentos poderia afetar a biodiversidade de uma região por influenciar dois fenômenos bem conhecidos dos ecólogos.

Um deles é a influência que a área de um fragmento exerce sobre a probabilidade de sobrevivência de uma população. Quanto maior a área, maiores as populações das espécies que vivem ali – e, portanto, menores os riscos de serem extintas por um evento ao acaso, como o nascimento exclusivo de fêmeas em um ano ou a ocorrência de um desastre natural.
Isolamento - Por esse raciocínio, a biodiversidade de um fragmento deveria ser proporcional à sua área. Mas essa é apenas parte da história. “Não é só o tamanho do fragmento que importa, mas também a paisagem em que ele está inserido”, explica Renata. Afinal, os fragmentos não são ilhas perfeitamente isoladas. Se estiverem próximos o suficiente uns dos outros, muitas espécies de animais podem viajar entre eles, evitando a extinção de populações nos fragmentos menores. “Esse é o efeito resgate”, conta. “Apesar de um fragmento ser pequeno e o risco de extinção grande, a população se mantém por causa da migração.”

Os pesquisadores imaginaram então que no processo de desmatamento, antes de ocorrer o aumento acelerado da distância entre os fragmentos, esses trechos de floresta estariam ainda próximos o suficiente uns dos outros para que o efeito resgate mantivesse a biodiversidade alta em toda a região. Com a diminuição das matas remanescentes, porém, esse efeito perde força e a diversidade dos fragmentos pequenos diminui, embora a biodiversidade total da região seja preservada, com a maioria das espécies concentrada nos fragmentos maiores. Nesse estágio, é possível observar na região o efeito do tamanho dos fragmentos, que torna a diversidade de espécies de um fragmento proporcional à sua área.

Esse efeito predomina até que o desmatamento passe a aumentar exponencialmente a distância entre os trechos de floresta. Ultrapassado esse limite, o efeito resgate cessa e o risco de extinção das populações aumenta para grande parte das espécies, que somem tanto dos grandes fragmentos como dos pequenos.

Trepador-coleira: incapaz de atravessar pastos e estradas 

Teste do modelo - O passo seguinte foi testar se o modelo previa a distribuição das espécies que o grupo da USP havia observado no trabalho de campo feito entre 2000 e 2009 no interior paulista, com apoio da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e do Ministério Federal de Educação e Pesquisa da Alemanha. No projeto, os pesquisadores fizeram o levantamento de anfíbios, aves e pequenos mamíferos em três áreas de 10 mil hectares com diferentes graus de mata nativa preservada (50%, 30% e 10%) e em três áreas de mata atlântica contínua na serra do Mar.

Depois de capturar os animais e identificar suas espécies, os pesquisadores os separaram em dois grupos: o das espécies especialistas, que só habitam trechos de mata atlântica; e o das generalistas, capazes de sobreviver tanto na floresta como em áreas modificadas pela ação humana, como plantações e pastagens. A classificação foi essencial para comparar os dados do levantamento com as previsões teóricas sobre o efeito da fragmentação, que deveriam ser observadas apenas  para as espécies especialistas.
No caso dos pequenos mamíferos, das 39 espécies encontradas, 27 eram especialistas. Para estas, os padrões de diversidade observados foram os esperados. Na região com 50% de cobertura nativa, tanto fragmentos grandes como pequenos continham quase todas as espécies achadas na região de mata contínua vizinha. Essas mesmas espécies também estavam na região com 30% de mata, mas concentradas nos fragmentos maiores. Já na região com 10% de floresta, o limiar de desmatamento havia sido ultrapassado e a diversidade era uniformemente baixa: seus fragmentos, independentemente da área, abrigavam de três a cinco vezes menos espécies especialistas do que a região de mata contínua.
Os pesquisadores notaram ainda que, na ausência de espécies especialistas, as populações das espécies generalistas explodiram na região com 10% de mata. Em áreas com 50% de floresta foram capturados 63 roedores Oligoryzomys nigripes, uma espécie generalista, enquanto o número saltou para 409 na região com menos mata. O dado preocupa. Esse roedor é o principal reservatório na mata atlântica do vírus causador da hantavirose humana e sua presença em pastos e plantações pode aumentar o risco de contágio das pessoas.
Esse é só um exemplo do impacto que a perda de biodiversidade pode ter sobre a saúde e a qualidade de vida humanas. Outros serviços prestados pelos ecossistemas naturais, como a polinização de plantações e o controle de pragas agrícolas, também podem desaparecer. “Não queremos preservar a biodiversidade para manter museus vivos, mas para manter os serviços que os ecossistemas desses remanescentes prestam”, diz o ecólogo Thomas Lewinsohn, da Universidade Estadual de Campinas, que não participou da pesquisa.
Para Lewinsohn, o trabalho dos grupos de Renata e de Metzger representa um salto qualitativo na ecologia, por combinar um estudo de campo difícil de realizar, com um modelo teórico que explora as consequências finais de diferentes efeitos, antes discutidos de maneira separada pelos pesquisadores que investigam a redução e a fragmentação de ambientes naturais em todo o mundo. “Eles deram uma contribuição importante para o entendimento das consequências da perda de florestas para a biodiversidade”, comenta o ecólogo Ilkka Hanski, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, pioneiro na pesquisa do impacto das transformações no hábitat sobre comunidades de plantas e animais. “Esse estudo deve se tornar altamente influente na biologia da conservação.”


>Artigo científico
PARDINI, R. et al. Beyond the fragmentation threshold hypothesis: regime shifts in biodiversity across fragmented landscapes. PLoS One. 23 out. 2010.

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