quinta-feira, 26 de maio de 2011

Código Florestal, um sintoma grave

Diante das discussões sobre a mudança na legislação que trata dos desmatamentos no Brasil, Jean Remy Guimarães comenta em sua coluna deste mês os efeitos dessa proposta e as raízes históricas da nossa relação predatória com o meio ambiente.
Por: Jean Remy Davée Guimarães
Publicado em 20/05/2011 | Atualizado em 20/05/2011
Código Florestal, um sintoma grave
A proposta do novo Código Florestal contempla os interesses do agronegócio ao anistiar áreas já desmatadas e permitir mais desflorestamento em regiões frágeis como encostas e matas ciliares. (foto: Cletus Awreetus – CC BY-NC 2.0)
A história da relação do Brasil com seu meio ambiente é predatória desde o tempo em que ele ainda se chamava Terra dos Papagaios. O primeiro motor da devastação foi a extração do pau-brasil, assim chamado devido à esplêndida cor vermelha de sua madeira, que remetia à cor da brasa.
A história da relação do Brasil com seu meio ambiente é predatória desde o tempo em que ele ainda se chamava Terra dos Papagaios
O extrato de pau-brasil tingiu as vestes rutilantes da elite civil e religiosa da Europa nos séculos 16 e 17 até acabar (o pau-brasil, claro, não as elites). Custava tão caro que o lucro com a carga de um barco pagava os outros dois que eventualmente afundassem no caminho e ainda deixava um bom troco.
Ora direis: era extrativismo, coisa chique hoje em dia. Ora responderei: era só um negócio, e não era sustentável. Hoje o pau-brasil é encontrado apenas nos livros de história, nos jardins botânicos e em pequenos hortos.
Convenhamos que essa é uma herança simbolicamente pesada, mas coerente com a política colonial da Coroa Portuguesa. Ó pá, veja lá, nada de imprensa, indústria ou universidades, apenas o necessário para extrair e embarcar matérias-primas.
Derrubada do pau-brasil
Derrubada do pau-brasil no século 16 retratada em ilustração de André Thevet (1502-1590).
Isso nos marcou profundamente. Mesmo independentes, fomos roendo nosso meio ambiente como no tempo de colônia e como se não houvesse amanhã, desde que fosse um bom negócio. Promovemos ontem e hoje grandes migrações internas para alimentar os ciclos da madeira, cana-de-açúcar, borracha, ouro, diamantes e café; mais recentemente, madeira, soja e carne.
É o agronegócio. Tudo bem, afinal, o país começou como empresa, não como país. O problema não é o agro, é o negócio, sempre movido por interesses de curto prazo. Mas os países têm que pensar mais longe se quiserem continuar existindo como tal.

Retorno ao período colonial

O novo Código Florestal é especialmente preocupante sob a ótica da sustentabilidade e remete diretamente a nossa história colonial. Mas, desta vez, a Coroa é um setor econômico bem representado no Legislativo, a colônia é o país todo e não há mais Portugal para onde fugir se tudo der errado.
O código foi redigido pelo setor interessado e contempla seus interesses imediatos: anistia desmatamento pretérito, permite mais desmatamento em áreas frágeis como encostas e em áreas essenciais para a regulação do ciclo hidrológico como as matas ciliares, entre outras iniciativas suicidas, que promovem em curto prazo o assoreamento dos rios e a escassez de água, sem a qual não há nem agro, nem negócio. Em longo prazo, promete mais emissão de carbono e efeito estufa.
Reflete também uma preocupante esquizofrenia, já que é obra do mesmo país que assumiu compromissos ambientais arrojados na 15ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas, realizada em 2009 em Copenhague (Dinamarca). Esses compromissos estão em rota de colisão frontal com tudo o que se lê na proposta do novo código. Mas ninguém parece lembrar disso, afinal, não dá multa.
O texto do novo código foi gestado nos mesmos moldes dos grandes projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, de cima para baixo, sem discussão fora dos gabinetes oficiais e dos escritórios privados. No caso destes últimos, as fragilidades dos projetos vão sendo reveladas na tramitação acidentada dos seus licenciamentos ambientais.
Para o Código Florestal, houve um curto simulacro de discussão – afinal é um código, não um pacote, pelo menos em princípio.
Enquanto a bancada ruralista arregaçava as mangas para legislar em causa própria, um ator social brilhava por sua ausência: a ciência
Mas, enquanto a musculosa bancada ruralista arregaçava as mangas para legislar em causa própria, imediatista e, repito, suicida, um ator social brilhava por sua ausência: a ciência.
Não a consultaram provavelmente por já saber o que diria. Ela opinou mesmo assim, na mídia, na imprensa escrita, e de forma fragmentada, com um editorial aqui, uma coluna acolá, enquanto as peripécias da votação do código ocupavam a ribalta das páginas de política e economia.
Só no fim do segundo tempo o tema chegou às seções de ciência e meio ambiente, e as associações acadêmicas se pronunciaram de forma mais crítica, explícita e contundente. Ainda bem que ficou protocolado que elas avisaram antes da votação, que deve ocorrer na semana que vem.
Nos tempos de nossa última ditadura, consultaram cientistas sobre o plano de construção da rede de estradas e agrovilas da Transamazônica. Eles disseram que não parecia uma boa ideia à luz da fragilidade e da baixa fertilidade dos solos da região, das distâncias hercúleas envolvidas etc.
Rodovia Transamazônica
Abertura da rodovia Transamazônica durante o regime militar de 1964. (foto: Agência Brasil/ CC BY 2.5)
Fez-se a Transamazônica, e alguns cientistas perderam suas bolsas e cargos. Felizmente, hoje podemos vociferar à vontade sem perder nossas bolsas de pesquisa.
Viu como os tempos mudaram?

Impulso ao desmatamento

Mas o Brasil, de brasa, de fogo, de queimada, segue firme e forte. A expectativa de aprovação do novo código já produz efeitos concretos e perversos, como a atual corrida ao desmatamento na Amazônia e especialmente no Mato Grosso, onde a devastação está fora de controle.
A expectativa de aprovação do novo código já produz efeitos concretos e perversos, como a atual corrida ao desmatamento na Amazônia
Os últimos números divulgados em 19 de maio pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o desmatamento na Amazônia cresceu 27% entre agosto de 2010 e abril de 2011 em comparação ao mesmo período do ano anterior, com a derrubada de 1.848 km2 de floresta.
No caso do Mato Grosso, grande produtor de soja, o aumento de desmatamento foi de 47% no mesmo período. As fotos de satélite revelam que o desmatamento se concentrou em propriedades privadas, poupando as Unidades de Conservação, o que sugere uma aposta de que o desmatamento será mesmo anistiado.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) considera esse desmatamento “atípico” e “assustador”. A Casa Civil também está assustada e, em conjunto com o MMA, está traçando uma estratégia de divulgação desses dados que minimize os prejuízos para as vendas de soja brasileira no exterior.
Viu como o Ministério do Meio Ambiente é importante? Está reclamando de quê, seu ecochato? Vamos lá, circulando, circulando!

Jean Remy Davée Guimarães

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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