O balé de amor e ciúme das ciganas
Em ramos debruçados sobre as águas amazônicas, elas exibem habilidades únicas, na tentativa de assegurar seu território
07/06/2011 - 08:39Terra da Gente - Ciro Port
Ao redor dos olhos vermelhos, a pele azul nos lembra o excesso de delineador da maquiagem dessas mulheres. Já a crista, sempre erguida, exibe o exagero de um ‘penteado’ moicano, no mais radical estilo punk. A plumagem não tem cores vivas, mas se multiplica em tons pastéis, com variações de bege, ferrugem e marrom. Cores, por sinal, bem distribuídas e harmônicas, criando belos contrastes. Bonitas? Não há como negar... Mas, antes disso, são intrigantes, seja pela própria aparência, por seus hábitos e comportamento, ou pelo fato de estarem classificadas numa família à parte, diferente de todas as aves, no qual somente uma espécie representa o único gênero e a única família.
Em fevereiro desse ano, novamente no rio Azul, encontrei várias ciganas, sempre em grupos, nas matas alagadas. Como era período de reprodução da espécie, que coincide com a estação das chuvas e da cheia máxima dos rios, passei duas manhãs num barco, com meu colega Jum Tabata, observando um mesmo grupo, com cerca de quinze aves. Logo no primeiro dia, não demorou muito, e presenciamos um acasalamento. Sem nenhuma cerimônia, o casal copulou na frente de nossas câmeras e no meio de outras aves do grupo.
Esperamos a fêmea sair, e Jum, na ponta dos pés, na proa do barco, conseguiu fotografar o interior do ninho. Estávamos com muita sorte: um ovo e um filhote recém-nascido, ainda com um pedaço de casca de ovo grudado ao corpo. Os filhotes de cigana revelam uma característica ímpar entre as aves: cada asa apresenta duas unhas no primeiro e no segundo dedo, o que nos faz lembrar das aves do período Jurássico, como o Archaeopteryx, que viveu há aproximadamente 140 milhões de anos e tinha três dedos com garras em cada asa. As tais unhas são ferramentas importantes para os filhotes conseguirem se locomover pelos ramos, agarrando-se firmemente. Eles se movimentam com o auxílio das unhas sobretudo para escapar dos predadores, que incluem macacos, cobras e gaviões.
Outro comportamento interessante, típico da espécie, é a alimentação ‘familiar’ ou ‘comunitária’ dos filhotes. Quer dizer, os recém nascidos não dependem apenas dos pais para comer. Podem ser alimentados por outras aves do grupo, em geral por jovens nascidos em ninhadas de anos anteriores, os chamados “ajudantes”. Os jovens permanecem no território dos pais durante dois ou três anos até buscar um território próprio e estabelecer nova família. E as distinções dessa ave não param aí. Enquanto a maioria das aves é ativa durante o dia e descansa à noite, essa espécie é ativa nos dois períodos: alimenta-se de dia e também à noite, preferindo descansar nos horários de sol mais quente.
E por falar em alimentação, nesse item a cigana consegue, mais uma vez, destacar-se de todas as outras aves. Folhas, frutos e flores compõem sua dieta, porém as folhas, curiosamente, são o prato principal. Ela possui um sistema digestivo composto de vários papos, 50 vezes maior que o estômago. Os papos funcionam de forma semelhante aos vários estômagos dos mamíferos ruminantes. Com a ‘colaboração’ de várias espécies de bactérias, o sistema de papos ajuda a cigana a digerir toda a folhagem dura consumida, algo único entre as aves.
Talvez o ‘desprezível’ do texto do escritor seja uma referência direta ao cheiro da ave, ou ao fato de a cigana ser pouco desejada por caçadores, portanto desprezível como alimento. Seja como for, de forma direta o homem ainda não colocou a cigana na lista de espécies ameaçadas de extinção.
Em toda região amazônica, tanto na bacia do Amazonas como na do rio Orinoco, a espécie ainda é abundante. Algumas etnias indígenas chegaram a usar suas penas para confecção de adornos e os colonizadores europeus também viram nelas o potencial como matéria prima para se fazer leques. Mas a pressão nunca foi grande.
A maior ameaça que a espécie sofre é a destruição de seu hábitat, por desmatamento indiscriminado e ocupação das margens dos rios. Se conseguirmos manter seu ambiente conservado, enquanto houver ramos pendentes das árvores, nas matas alagadas, a cigana reinará absoluta.
Nome comum no Brasil: cigana
Nome comum nos demais países americanos: hoatzin
Nome científico: Opisthocomus hoazin
Classificação: Ainda persiste alguma polêmica em torno da classificação da família da cigana entre as aves. Há pesquisadores que a consideram próxima de pombas, ao passo que outros a colocam junto a turacos, cucos, ou galiformes. De acordo com análises morfológicas recentes, seu lugar estaria entre as famílias das seriemas (Cariamidae), dos cucos (Cuculidae), e dos turacos (Musophagidae). A família continua sendo Opisthocomidae, com um único gênero (Opisthocomus) e uma única espécie (Opisthocomus hoatzin)
Distribuição: Amazônia, nas bacias dos rios Amazonas e Orinoco, em igapós, matas ciliares e alagados
Reprodução: Durante a estação chuvosa. Botam 2 a 3 ovos, com um período de 32 dias de incubação. Os filhotes permanecem no ninho durante 2 a 3 semanas
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