O tamanho não o salva da morte
Ser o maior da América do Sul não livra o cervo-do-pantanal da morte por perda de hábitat
Uma fina névoa ainda esconde o céu azul. Pouco mais de 7 horas da manhã. Os cavalos selados aguardam na estrebaria o início de uma nova jornada de trabalho, hoje à ‘caça’ do cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), o maior cervídeo da América do Sul, habitante das áreas alagadas das várzeas de grandes rios.Durante os meses de inverno - período de seca no Centro ao Sul do Brasil -, as várzeas e varjões se resumem a pequenos fragmentos, disputados pela fauna silvestre e por centenas de cabeças de gado que dominam os pastos e a economia da cidade de Presidente Epitácio, na região do Pontal do Paranapanema, extremo-Oeste do Estado de São Paulo. As primeiras cavalgadas escondem as dificuldades que teremos pela frente. Em pouco mais de 40 minutos, o corpo, pouco acostumado ao ritmo do animal, começa a doer. Logo, a planície seca cede espaço à paisagem pantaneira. Até este momento, nenhum sinal do cervo.
Os primeiros indícios aparecem com quase 2 horas de procura. Pegadas, ainda molhadas, renovam a esperança de encontrá-lo. "Não faz muito tempo que o bicho passou por aqui. As marcas estão frescas", nos anima o guia e campeiro da Fazenda Bom Retiro, Diogo da Silva Franco, acostumado com a presença do animal por aquelas bandas.
A marcha continua. A dificuldade em encontrar o animal nos leva a duas conclusões antagônicas sobre a vida do cervo. A primeira, mais confortante, é a capacidade de ele se infiltrar na mata e se esconder dos nossos olhos, numa tentativa de proteção. A segunda já preocupa: devido à drástica redução do seu hábitat natural e apesar das iniciativas de conservação da espécie, o cervo-do-pantanal já não é figura comum nas margens do Rio Paraná. Suas aparições são momentos raros, exceções no cenário atual.
A procura se estende para a foz do Rio do Peixe, um importante tributário do Rio Paraná. São quase três horas e meia de cavalgada quando somos surpreendidos pelo pedido de silêncio de Hélio Pinto de Lima, capataz de uma fazenda da região, ao apontar para um pequeno remanescente de mata à nossa frente. Desço do cavalo. Conforme me aproximo, consigo visualizar a galhada do animal entre folhas e ramos. É só o tempo de acionar o disparador e flagrar o cervo-do-pantanal por alguns instantes, até a fuga em disparada.
As dificuldades encontradas para localizar o cervo-do-pantanal na região do Pontal do Paranapanema, antigamente conhecida como o Pantanal Paulista, é um argumento a mais na luta da Associação em Defesa do Rio Paraná, Afluentes e Mata Ciliar (Apoena) contra o desaparecimento desta espécie em terras paulistas. O jornalista aposentado Djalma Weffort, fundador e atual presidente da entidade, é natural de Presidente Prudente e vive em Presidente Epitácio. Muito antes da fundação da ong, em 1988, já acompanhava a eliminação de grandes áreas verdes da região. "Na década de 50, Presidente Epitácio tinha cerca de 15 serrarias, a principal fonte econômica da cidade na época”, lembra o ambientalista. “Na década de 60, durante as viagens de trem a São Paulo, eram comuns as grandes queimadas que consumiam a vegetação, abrindo espaço para a pecuária”.
O problema da ocupação no Pontal, no entanto, começou antes disso. Em 1942, o governo decretou a Grande Reserva do Pontal do Paranapanema, com 247 mil hectares. Conflitos fundiários reduziram tal área para 12 mil hectares, atualmente muito fragmentados. Nas décadas seguintes, ao complexo quebra-cabeças de uso do solo somaram-se as barragens, que reduziram drasticamente os espaços naturais de ocorrência do cervo-do-pantanal. Apenas no rio Paraná, os reservatórios de 3 grandes hidrelétricas - Ilha Solteira, Engenheiro Souza Dias e Sérgio Motta – cobrem mais de 3.700 km2 entre áreas de várzea, varjões e mata ciliar. No Rio Tietê, o reservatório da Usina de Três Irmãos - a maior do rio, a 28 km da confluência com o Rio Paraná – eliminou outros 785 km2.
“Estima-se que o número de cervos mortos durante o enchimento da UHE Sérgio Motta, por efeito direto ou indireto, tenha ficado entre 700 e 1.000 animais", recorda Maurício Barbanti, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Jaboticabal) e coordenador do Projeto Cervo-do-Pantanal de 1998 a 2002. Os números apresentados por João Henrique Dias, gerente de Recuperação e Conservação de Ecossistemas da Companhia Energética de São Paulo (CESP), diferem da avaliação de Barbanti. "Houve efetivamente uma redução. No levantamento de 1992, vivia na região da usina uma população de 1.000 cervos. No último levantamento, finalizado em maio deste ano, a população estimada era de 400 a 600 indivíduos. Além disso, deve-se considerar a parcela que migrou para áreas próximas, durante o processo de enchimento da represa”.
Discordâncias à parte, o impacto da hidrelétrica poderia ter sido maior. Durante a segunda etapa do enchimento da represa, em 2001, a Apoena, com apoio do Ministério Público, e embasada nos estudos realizados pelo hidrólogo José Galizia Tundisi, lutou para que o nível do reservatório ficasse na cota de 257 metros, em lugar dos 259 previstos no projeto original. De acordo com os estudos de Tundisi, esses 2 metros poupariam cerca de 40 mil hectares do alagamento, numa área importante para a conservação do cervo. "Havia, na época, duas possibilidades para se evitar o desaparecimento das áreas pantanosas do ‘Rio Feio’ (como o Rio do Peixe é conhecido na região) e de toda a Reserva Florestal da Lagoa São Paulo: a primeira seria a construção de uma barreira para evitar a inundação da área. A segunda, mais viável, era o rebaixamento da represa em 2 metros", relembra Tundisi. "Hoje, a maior luta é pela manutenção da cota 257", ratifica Weffort.
A importância desses 2 metros não está apenas na conservação de 40 mil hectares de áreas nativas. Com a alteração do nível original da barragem, uma significativa área de conexão entre as duas margens do Rio Paraná foi mantida, o que possibilita um trânsito de animais e conseqüente cruzamento genético entre os grupos de cervos de cada lado. "Conseguimos estabelecer uma ligação, uma espécie de ponte natural que une as duas margens" afirma Weffort. "Os animais da região do Rio Aguapeí, Rio Verde, Ilha Comprida e Cisalpina têm um trânsito constante de um local para o outro", comenta Dias. A área de conexão fica entre os municípios de Paulicéia e Castilho, no Estado de São Paulo, e Brasilândia e Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul.
Segundo levantamento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), realizado em maio deste ano, a população de cervos do lado paulista da Bacia do Paraná é estimada em 400 a 600 animais Para a conservação da espécie, portanto, essa comunicação com os indivíduos sul-mato-grossenses diminui o risco de perda da variabilidade genética, ao menos em curto prazo. Barbanti reafirma que o rebaixamento da represa foi fundamental para a conservação de áreas importantes, porém discorda da efetiva conectividade entre as duas margens. "Não há um monitoramento que permita comprovar essa conectividade entre os dois lados do rio. O controle, a partir de imagens em helicópteros, não mostra cientificamente que um animal tenha cruzado o rio. Ao contrário, reafirma que as populações restantes estão isoladas e, pior, isoladas entre si".
Apesar da vitória parcial, áreas importantes foram inundadas. A Reserva Florestal da Lagoa São Paulo, em Presidente Epitácio, teve a área drasticamente reduzida. Dos 14.200 hectares originais, estabelecidos no mesmo decreto estadual que criou a Grande Reserva do Pontal, em 1942, apenas 3.500 permanecem emersos. O jeito foi lutar pelas compensações ambientais para garantir a preservação dos maiores refúgios naturais do cervo-do-pantanal na região: uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de 15.960 hectares, na foz do rio Aguapeí, e o Parque Estadual do Rio do Peixe, com 4.100 hectares. Somadas, as duas áreas equivaliam ao total do hábitat perdido na Lagoa São Paulo e na Grande Reserva do Pontal do Paranapanema.
Em 2003, uma deliberação do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) indicou a criação do Parque Estadual do Aguapeí, de 9.043 hectares, e a ampliação do parque do Rio do Peixe, para 7.720 hectares, ambos como forma de compensação pela construção da UHE Sérgio Motta. Ainda como compensação pelos danos ambientais da usina, a CESP cedeu parte da área não alagada da Lagoa São Paulo, cerca de 371 hectares, para um projeto de reflorestamento da Apoena, de plantio de 620 mil mudas nativas em 5 anos. “A Lagoa São Paulo é uma vitória da sociedade civil, porque esta área não fazia parte das medidas compensatórias aprovadas em 2003 pelo Consema”, declara Weffort. “Com isso, criamos um mosaico de conservação do cervo-do-pantanal com mais de 40 mil hectares, no Estado de São Paulo. O mosaico se completa com as áreas criadas na região Sudeste do Mato Grosso do Sul, na margem direita do Rio Paraná: o Parque Estadual das Várzeas do Ivinhema, de 73.300 hectares, e a RPPN Cisalpina, de 15 mil hectares”.
A manutenção dos espaços naturais é um importante avanço na conservação dos cervídeos, embora não seja a solução do problema. "O cervodo- pantanal é um animal extremamente sensível às mudanças ambientais", lembra Barbanti. "Durante as operações de captura e transporte dos animais, pouco antes do enchimento da represa de Sérgio Motta, era comum a morte de cervos por estresse". Em 1998, 120 cervos foram capturados para dar início a implantação do Programa de Conservação em Cativeiro da CESP. Deste total, 30% morreram durante os primeiros 60 dias de cativeiro.
A CESP deve entregar até o final do ano o Plano de Conservação do Cervo-do-Pantanal, através do qual pretende direcionar as ações e medidas necessárias para a manutenção do hábitat natural dos cervídeos e para diminuir as pressões sobre a espécie. "O levantamento da população de cervos é apenas um passo dentro do Plano de Conservação. Num primeiro momento, as ações estarão centralizadas num programa de educação ambiental voltado para as cidades da região e no aumento da fiscalização nas unidades de conservação. Haverá um esforço muito grande para o combate às práticas predatórias", explica Dias. "Os animais do Estado de São Paulo terão um manejo mais cuidadoso, devido às ameaças antrópicas, ao pequeno tamanho da população e da área natural". Além das ações que a própria empresa deve assumir, o Plano de Conservação prevê indicações de iniciativas para a manutenção do hábitat natural do cervo, como a recuperação de várzeas que abrigam, além dele, inúmeras outras espécies de mamíferos.
Para Barbanti, a conservação do cervo-do-pantanal está inserida num contexto muito maior: "Acredito que a conservação da espécie deva ser usada como uma bandeira para a conservação da várzea, que funciona como uma grande esponja para o rio. Para o Estado de São Paulo, a esperança é manter os cervos em pequenas várzeas, estabelecendo conectividade entre elas, artificialmente ou não".
E Djalma Weffort complementa: "É preciso investir em pesquisas sobre o comportamento da espécie, além de proteger, de fato, as unidades de conservação que foram criadas, tanto do lado paulista quanto do lado sulmato-grossense, para que elas saiam do papel e se transformem em áreas de proteção, e, principalmente, buscar um maior envolvimento por parte dos proprietários rurais e fazendeiros na conservação do cervo-do-pantanal e do hábitat natural da espécie". Ele agora batalha pela criação de novas unidades de conservação na confluência do Rio Pardo com o Rio Inhanduí, nas várzeas do Rio Verde e a ampliação da RPPN Cisalpina, todas no Mato Grosso do Sul.
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Cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus)
É o maior cervídeo da América do Sul. Chega a 1,30 metro de altura e a 2 m de comprimento. O macho pesa até 150 kg e a fêmea, 100 kg. O macho possui galhada de 50 cm de comprimento com até 10 pontas. Perde os chifres entre dezembro e agosto. Quando renasce, a galhada apresenta uma nova ponta. A gestação é de cerca de 8 meses, com apenas um filhote. Vive em áreas úmidas e pantanosas, entre a Bacia Amazônica e a Argentina, com maiores concentrações na bacia dos rios Paraguai e Paraná. Originalmente ocorria no Uruguai, onde hoje é considerado extinto. A população argentina encontra-se bastante ameaçada. Tem patas adaptadas ao hábitat, com uma membrana na fenda dos cascos. É muito caçado pela carne e suscetível a doenças adquiridas do gado, além de sofrer com a perda de hábitat.
Um alemão, uma kombi, várias paixões
A paixão pela natureza nasceu ainda na Alemanha. "Quando criança, eu pegava os livros de minha irmã mais velha e ia direto para as páginas que tinham animais". Depois, aos 13 anos, veio o fascínio pelo Brasil. "Quando viajei para cá pela primeira vez, em 1950, acompanhando o meu pai, fiquei impressionado com a beleza das cores das borboletas", relembra o engenheiro alemão Peter Mix, 68 anos de idade, 40 de Brasil, 10 dedicados às imagens da natureza brasileira. Ele divide seu tempo entre os registros, em fotografias e gravuras, das belezas que o encantam desde a juventude e a luta pela conservação do cervo-do-pantanal na região do Pontal do Paranapanema, junto à ong Apoena. "De 10 anos para cá, tenho me dedicado exclusivamente à natureza. Fico por dias no meio do mato, fotografando os pássaros e outros animais". Em suas incursões às áreas de observação, Mix leva uma espécie de casa ambulante, uma perua Kombi internamente modificada. "Tem cama, geladeira e até uma biblioteca dentro dela. Só paro de trabalhar quando a água acaba". Atualmente, ele faz um levantamento de pássaros nos parques estaduais do Rio do Peixe e de Aguapeí, onde já catalogou mais de 120 espécies diferentes. "Tudo começou como uma paixão. Hoje faço isso também como uma atitude cidadã. Apesar de me considerar brasileiro, faço restrições sobre a forma com que a sociedade brasileira cuida do meio ambiente"
A esperança da reintrodução
A região do Pontal do Paranapanema é um dos últimos locais onde o cervo-do-pantanal pode ser encontrado em hábitat natural no Estado de São Paulo. Em 1998, durante a implantação do Programa de Conservação em Cativeiro do Cervo-do-pantanal nas áreas próximas à UHE Eng. Sérgio Motta, na divisa com Mato Grosso do Sul, cerca de 120 animais foram capturados e parte deles foi reintroduzida na Estação Ecológica Jataí, nas margens do Rio Mogi- Guaçu, no município de Luiz Antônio e na cidade de Colômbia, região Norte de São Paulo, e às margens do Rio Grande, na divisa com Minas Gerais. No município de Colômbia, os seis animais reintroduzidos nas áreas de várzea morreram pouco tempo depois do transporte. Mas em Luiz Antônio, a experiência de reintrodução apresentou resultados mais animadores: os oito animais enviados para a Estação Ecológica de Jataí reproduziram e, após sete anos, somam 13 a 15 indivíduos, numa área de 4.532 hectares. Na Bacia do Rio Mogi-Guaçu, o cervo-do-pantanal é considerado extinto desde o início do século 19. “A última notícia de um cervo abatido na Bacia do Mogi foi em 1907, próximo à cidade de Orlândia”, comenta Maurício Barbanti, da Unesp- Jaboticabal. “A experiência em Luiz Antônio servirá de base para futuras iniciativas de reintrodução”.
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