quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Rede de proteção

Manguezais ganham importância diante de alterações no clima
MARIA GUIMARÃES | Edição 216 - Fevereiro de 2014
© LÉO RAMOS
Raízes de Rhizophora mangle mantêm árvores de pé no solo instável
Raízes de Rhizophora mangle mantêm árvores de pé no solo instável

Ao longo dos estuários, baías, lagoas e braços de mar, árvores enfrentam condições pouco favoráveis e se debruçam sobre a água salobra. Às vezes representado por uma vegetação atarracada que forma uma franja verde, outras pelo emaranhado de raízes que funcionam como muletas em arco para manter árvores bastante altas de pé na lama movediça, o manguezal é berçário para uma grande variedade de animais marinhos e ajuda a proteger a costa dos ventos e das ondas do mar. Em tempos de aquecimento global, a capacidade de absorver carbono da atmosfera e estocá-lo acrescentou mais uma etiqueta de preço ao valor desse ecossistema costeiro que no Brasil existe ao longo de quase todo o litoral, da região Norte ao sul de Santa Catarina. E que agora reage ao aumento do nível do mar resultante das mudanças climáticas, como vem mostrando o grupo do oceanógrafo Mário Soares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Cerca de três vezes por semana, uma equipe do laboratório de Soares, o Núcleo de Estudos em Manguezais (Nema), se dirige ao manguezal de Guaratiba, a 70 quilômetros a oeste da capital fluminense. Ali, às margens da baía de Sepetiba, eles se embrenham na floresta e fazem uma série de medições em uma área monitorada desde 1998, quando Soares estabeleceu uma zona permanente de estudo, descrita em 2013 por Gustavo Duque Estrada na Aquatic Botany. O manguezal de Guaratiba é o único no país acompanhado com tal nível de detalhe por um período tão longo. O trabalho, financiado por CNPq, Capes, Faperj e outras instituições, vem trazendo resultados inéditos.

Uma das observações mais marcantes nesses 16 anos é que a floresta vem avançando continente adentro sobre uma área plana com ares de deserto. É a planície hipersalina, uma feição do manguezal também conhecida como apicum, cujo solo é de duas a quatro vezes mais salgado do que a lama do manguezal. Algumas vezes por mês, nas marés mais altas, o mar invade essa área e não escoa completamente. A água evapora e deixa o sal no solo, que se torna inóspito até para as espécies de mangue. Mesmo assim, com o aumento do nível do mar a inundação dessa área se torna cada vez mais frequente e aos poucos essas plantas se instalam por ali. “A floresta avançou quase 80 metros desde 1998”, conta Soares.
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Jovem Avicennia cresce no apicum
Jovem Avicennia cresce no apicum

Além do trabalho com os pés afundados numa lama cheirando a enxofre, os pesquisadores da Uerj também investigam o que aconteceu por meio de imagens de satélite. “Imagens capturadas desde 1984 confirmam o que vimos em campo”, diz Soares. “O manguezal pulsa segundo ciclos climáticos.” Em períodos mais úmidos, a chuva lava o solo, dilui o sal e as árvores conseguem se estabelecer nas planícies salgadas. “São janelas climáticas de oportunidade para o avanço mais rápido da floresta”, explica Estrada, que em 2013 terminou o doutorado e agora se tornou professor na Uerj. Para ele, um indício de que o nível do mar está subindo por ali é que ao fim de uma série de anos secos o manguezal para de avançar, mas não perde o terreno conquistado: sem as lavagens pela maré, as árvores morreriam. Ao mesmo tempo que a floresta avança rumo à terra, a água erode a borda da vegetação. Em Guaratiba, porém, esse desgaste tem sido mais lento do que o avanço. O saldo é um aumento da área total de floresta.

Rumo aos polos

A expectativa é que o manguezal também amplie a distribuição geográfica à medida que as temperaturas aumentam. É que as árvores desse ecossistema não crescem em baixas temperaturas, e por isso mais da metade dos manguezais do mundo está entre as latitudes 10°N e 10°S. Como as previsões climáticas indicam que o sul do Brasil se tornará mais quente até o fim do século, o manguezal deve ocupar latitudes mais altas. O que se espera que aconteça no Brasil também vale para o hemisfério Norte e foi recentemente observado nos Estados Unidos por Kyle Cavanaugh, do Instituto Smithsonian. Em artigo de janeiro deste ano na revista PNAS, o grupo norte-americano descreveu um aumento na área de manguezais no norte da Flórida, por volta de 30° de latitude norte, e atribuiu a mudança ao fato de serem cada vez mais raras as temperaturas abaixo de 4 graus Celsius negativos por ali. O aumento da temperatura mínima, portanto, é mais importante do que mudanças na média.
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Projeções das raízes funcionam como snorkels
Projeções das raízes funcionam como snorkels

Transposta para o Brasil, essa situação corresponderia a encontrar essas florestas no litoral gaúcho perto de Porto Alegre, mas por enquanto os manguezais ainda estão longe dali e não parecem ter avançado em latitude. Em estudo de 2012 na Estuarine, Coastal and Shelf Science, Soares e sua equipe identificaram a lagoa de Santo Antônio, no município de Laguna, em Santa Catarina, a 100 quilômetros ao sul de Florianópolis, como o limite sul dos manguezais brasileiros. A mesma localidade apontada por Yara Schaeffer-Novelli, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), com base em observações feitas em 1979.

Mercado de carbono

A torcida pelo aumento do manguezal não é insanidade de quem tomou gosto por enfrentar mosquitos em meio à lama. Os estudos do Nema, além dos de outros grupos internacionais, vêm mostrando que esse ecossistema tem uma capacidade importante de absorver carbono do ar. “Desde 2003 temos parcelas permanentes voltadas para avaliar o sequestro de carbono”, conta Soares. Seu grupo desenvolveu vários modelos matemáticos – o primeiro deles ele próprio criou durante o doutorado, que defendeu em 1997 – para estimar a quantidade de carbono armazenada nas árvores de cada espécie típica de manguezal. “Se alguém quiser fazer um estudo específico sobre as folhas, temos um modelo; se quiser avaliar as árvores como um todo, também temos”, diz o oceanógrafo.

Com a ajuda desses modelos, basta tirar algumas medidas básicas para obter uma estimativa da biomassa da planta e de quanto carbono ela abriga.
Um estudo ainda não publicado do grupo da Uerj mostra que, considerando apenas o caule e as folhas das árvores, o manguezal tem uma capacidade de armazenamento de carbono pouco menor que a de outras florestas tropicais. O valor total só não é significativo porque a área do ecossistema costeiro é muito menor (pouco mais de 1 milhão de hectares) do que a da Amazônia (aproximadamente 500 vezes maior) ou da mata atlântica. “Mas se considerarmos as raízes e o sedimento, o manguezal ganha por unidade de área”, avalia Soares, com base em dados preliminares. Para obter esses dados, o grupo escava buracos em forma de cubos na lama de Guaratiba, retirando a cada vez camadas de 10 centímetros. “Um grupo de 15 pessoas leva quatro dias para fazer esse trabalho”, conta. Dali são retiradas as raízes, que depois são secas e pesadas para se estimar a biomassa. Além disso, cilindros de lama também são recolhidos para medir a quantidade de carbono armazenada no próprio sedimento. Os resultados virão nos próximos anos.
O que se aprende sobre os manguezais de Sepetiba pode ser usado para entender o que se passa em outras regiões. “Há análises que validamos em Guaratiba e poderemos aplicar em outros estados”, explica o oceanógrafo. Com adaptações, já que a estatura das florestas e a capacidade de estocar carbono aumentam em direção ao equador. O grupo já começou a aplicar esses modelos a manguezais praticamente ao longo de toda a costa brasileira – de Florianópolis, em Santa Catarina, a São Caetano de Odivelas, no Pará. A equipe do Nema viaja muito, mas Soares também busca parcerias. Uma novidade importante é participar do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Ambientes Marinhos Tropicais (INCT-AmbTropic), implantado em 2012, que tem sede na Universidade Federal da Bahia e se concentra em estudar as respostas do litoral brasileiro às mudanças climáticas. Soares divide a coordenação do Grupo de Trabalho Manguezais com o geólogo Marcelo Cohen, da Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem inicia uma colaboração.

Do passado ao presente

“Estamos trabalhando juntos para combinar nossas duas escalas de abordagem”, diz Soares. A especialidade de Cohen é o que aconteceu com os manguezais nos últimos 10 mil anos, no período geológico chamado Holoceno. “Para me certificar do efeito de cada variável sobre a existência dos manguezais, é fundamental conhecer a sua evolução nos últimos 100, 1.000 e 10.000 anos”, explica o geólogo. Ele vem fazendo uma série de estudos nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste, em parte numa parceria com o físico Luiz Carlos Pessenda, da USP, que coordena um projeto sobre como era a costa do Espírito Santo nesses tempos mais remotos.
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Trincheira em forma de cubo permite avaliar biomassa de raízes
Trincheira em forma de cubo permite avaliar
biomassa de raízes

Há 20 mil anos, perto do fim de uma intensa era glacial, o nível do mar estava cerca de 100 metros abaixo do que se vê hoje e começou a subir. “Entre 7 mil e 5 mil anos atrás o nível do mar se aproximou do atual e permitiu o início da expansão dos manguezais”, explica Cohen. Apesar de existirem padrões globais, é preciso olhar também em escala local para entender como as condições específicas, que envolvem fluxo dos rios, dinâmica de sedimentos e movimentos tectônicos, influenciaram a vegetação costeira. Na bacia amazônica, de acordo com o geólogo, houve um período com menos chuva aproximadamente entre 10 mil e 4 mil anos atrás. Nessa época, a influência marinha avançou rio acima devido ao aumento no nível do mar e à menor vazão dos rios, e os manguezais foram atrás. Com o aumento das chuvas nos últimos 4 mil anos, a salinidade caiu nos estuários e os manguezais recuaram para áreas com maior influência marinha.
Já no Sudeste, por volta de 5 mil anos atrás o nível do mar ultrapassou o atual e produziu muitos estuários com condições adequadas para a expansão dos manguezais. Quando o nível do mar desceu, ali se formaram deltas com predomínio de sedimento arenoso, que se tornaram menos propícios à sobrevivência dessas florestas.
Para abrir janelas sobre essas diferentes escalas de tempo, o grupo de Cohen combina uma série de técnicas. Em cilindros de sedimento é possível encontrar pólen de plantas que existiram milhares de anos atrás e reconstituir o ambiente em que esses sedimentos foram acumulados e a vegetação de seu entorno ao longo do tempo. A equipe de Pessenda, no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, em Piracicaba, analisa isótopos de nitrogênio e carbono para caracterizar a matéria orgânica e estimar a idade dos depósitos sedimentares.
Para construir um retrato do que aconteceu nas últimas décadas, o geólogo da UFPA também lança mão de sensoriamento remoto, que revela erosão de áreas de manguezal e migração de bancos de areia sobre os depósitos de lama, empurrando a floresta para áreas mais elevadas.
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Folhas de Avicennia excretam o sal absorvido com a água
Folhas de Avicennia excretam o sal absorvido com a água
Imagens aéreas e de satélite são um recurso essencial para avaliações mais extensas da cobertura vegetal – foi essa ferramenta que permitiu ao grupo norte-americano detectar a expansão do manguezal para o norte da Flórida. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a bióloga Marília Lignon usa dados de sensoriamento remoto para acompanhar os impactos naturais e de atividades humanas em manguezais de áreas diversas. Depois de olhar de cima, ela não abre mão de olhar de perto. “Cada escala tem suas particularidades, e uma pode dar subsídios à outra”, afirma.
Ela recentemente orientou um mapeamento das áreas de transição entre manguezal e mata de restinga no estado de São Paulo. “São de fácil ocupação humana e de fantástica beleza cênica”, diz. Sendo planas e arenosas, é fácil ocupar essas áreas, que podem funcionar como escape para o manguezal diante de mudanças climáticas. Gustavo Duque Estrada conta que isso ocorreu na área da baía de Sepetiba, onde foi construída a Companhia Siderúrgica do Atlântico. “Não houve planejamento considerando alterações no nível do mar, e essa ocupação torna aquele manguezal altamente vulnerável diante de um cenário de elevação do nível do mar.”
Em conjunto, os estudos dos grupos brasileiros chamam a atenção para a necessidade de se considerar a importância das zonas de transição em estudos que visam à conservação no longo prazo do manguezal e de sua capacidade de proteger a costa e a atmosfera. De acordo com o físico Joseph Harari, do IO-USP, o aumento do nível do mar na costa brasileira está próximo da média mundial, cerca de 3 centímetros por década. É impossível generalizar uma previsão sobre o que acontecerá no futuro próximo diante de mudanças ambientais, que incluem fatores locais e globais. Mas uma coisa é certa: o manguezal não ficará parado.

Projetos
 
1. Estudos paleoambientais interdisciplinares na costa do Espírito Santo (nº 2011/00995-7); Modalidade Projeto Temático – PFPMCG; Pesquisador responsável Luiz Carlos Ruiz Pessenda – Cena/USP; Investimento R$ 1.008.962,77 (FAPESP). 2. Manguezais do estado de São Paulo: análise da evolução espaço-temporal (1979 – 2009) (nº 2009/05507-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Bolsista Marília Cunha Lignon – Inpe; Investimento R$ 138.069,95 (FAPESP).

Artigos científicos

COHEN, M. C. L. et al. Impact of sea-level and climatic changes on the Amazon coastal wetlands during the late Holocene. Vegetation History and Archaeobotany. v. 18, n. 6, p. 425-39. nov. 2009.

ESTRADA, G. C. D. et al. Analysis of the structural variability of mangrove forests through the physiographic types approach. Aquatic Botany. v. 111, p. 135-43. nov. 2013.

FRANÇA, M. C. et al. Mangrove vegetation changes on Holocene Terraces of the Doce River, Southeastern Brazil. Catena. v. 110, n. 1, p. 59-69. nov. 2013.

SOARES, M. L. G. et al. Southern limit of the Western South Atlantic mangroves: Assessment of the potential effects of global warming from a biogeographical perspective. Estuarine, Coastal and Shelf Science. v. 111, n. 1, p. 44-53. abr. 2012.

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