domingo, 26 de fevereiro de 2017
HISTÓRIA GEOLÓGICA DOS RIOS NA AMAZÔNIA
Clauzionor Lima da Silva
Dilce de Fátima Rossetti
Em 1950, Hilgard O'Reilly Sternberg (1) publicou o artigo intitulado "Vales tectônicos na planície amazônica?", uma provocação científica sobre o fato de que os rios da Amazônia tinha seus cursos condicionados em falhas. Esse estudo foi um marco inicial acerca das primeiras evidências do controle tectônico nos rios da Amazônia. Naquela época pouco se conhecia sobre esse assunto, somente 40 anos depois se iniciariam os primeiros estudos que justificassem a proposição de Sternberg.
Por tectônica entende-se a parte da geologia que estuda as movimentações e deformações da crosta terrestre, motivada por forças do interior do planeta. Nessa linha de abordagem, vários estudos na região da Amazônia Ocidental têm demonstrado esse condicionamento dos rios às falhas geológicas modernas.
Segundo Silva (2), o rio Negro corre em uma impressionante zona de falha normal, que se estende por cerca de 70 km em linha reta, e controla ambas as margens. Essa estrutura geológica forma grábens (áreas em depressão), que são locais propícios à sedimentação atual. De acordo com o autor, o "arquipélago das Anavilhanas" e os depósitos Cacau-Pirêra, próximo a Manaus, são resultantes da interrelação entre processos de sedimentação e fenômenos tectônicos.
O registro do processo tectônico na região é facilmente observado nos afloramentos e locais de exposição de rocha e solo em Manaus. As falhas geológicas produzem deslocamento de camadas e superfícies topográficas e alteram a morfologia da paisagem amazônica. Nos locais de falhas é comum observar a formação de espelhos de falha, estrias de atrito e brecha de falha que resultam da fricção entre os blocos de rocha. O "arenito Manaus", rocha sedimentar da Formação Alter do Chão de idade cretácea, usada comumente como matéria-prima da construção civil em Manaus, mostra intensamente deformação por falhas (Figura 1).
A importância do conhecimento de que essa região apresenta falhas geológicas é de extrema relevância para áreas urbanas. É sabido que o desenvolvimento dessas falhas está associada à atividade sísmica no passado. Registros de terremotos, com epicentros situados na região amazônica, não são insignificantes e mostram que a região apresenta sismicidade natural recorrente. Exemplos da atividade sísmica na Amazônia foram os terremotos registrados em Manaus (1963 e 1980), Codajás (1983), Barcelos (1987) e Parque Nacional do Jaú (2005), dentre outros. Esses registros são tão significativos que resultou na determinação da Zona Sismogênica de Manaus (3).
Quais as implicações do processo tectônico e da sismicidade relacionada para áreas urbanizadas na Amazônia? Essa questão ainda não havia sido levantada. Para se ter uma ideia das possíveis implicações, duas importantes obras de engenharia estão sendo realizadas no rio Negro: a ponte sobre o rio Negro, com extensão de 3,5 km, que ligará Manaus ao município de Iranduba, e o gasoduto Coari-Manaus que será instalado sobre o leito desse rio.
Os estudos têm mostrado que a atuação das falhas geológicas causa significativas mudanças na paisagem amazônica, inclusive influenciando a dinâmica fluvial dos rios amazônicos. Mega migrações do rio Solimões, surgimento e o desaparecimento de bancos de areia, o desmoronamento de margens (fenômeno de terras caídas), e o abandono de leito são, muitas vezes, consequência indireta de processos tectônicos. Os exemplos desses mecanismos são alvo de alguns estudos recentes, como os de Bezerra (4), Souza Filho (5) e Latrubesse & Rancy (6).
A dinâmica das movimentações dos rios não é aleatória. Mega migrações e mudanças de leitos são frequentes e chegam a alcançar a ordem de algumas dezenas de quilômetros, cujos registros são os extensos pacotes de sedimentos, terraços e lagos ao longo da calha do sistema do rio Amazonas. Esses estudos quando associados aos registros geológicos, geomorfológicos e tectônicos possibilitam montar a paleogeografia dos rios amazônicos.
Conforme concluíram Silva e colaboradores (7), o vale do Paraná do rio Ariaú, região entre Iranduba e Manacapuru, compreende o antigo leito do rio Negro. O expressivo pacote de sedimentos argilosos, com pelo menos 60 metros de espessura, utilizados pelas inúmeras indústrias ceramistas situadas naquele setor, comprovam o antigo curso desse rio. Segundo esse estudo, o encontro das águas, entre os rios Negro e Solimões, estivera cerca de 50 km à jusante da atual posição. Após o preenchimento sedimentar nessa área de confluência fluvial, o rio Negro teve seu desvio, em direção à Manaus, motivado por zonas de fraquezas leste-oeste.
Essas mudanças repentinas dos cursos de importantes rios amazônicos deixam expressivos registros no relevo. O paleocanal situado a montante do rio Tarumã-Mirim, noroeste de Manaus, exemplifica bem essa situação. De acordo com o geólogo Felipe Ribeiro do Amaral (8), o rio Cuieiras e o Tarumã-Mirim era um único canal que desembocava próximo a Manaus. A captura do rio Cueiras em direção ao rio Negro foi em decorrência da falha do Baependi que ativou a erosão remontante e desviou seu curso deixando o paleocanal (Figura 2).
O extenso paleocanal situado entre os rios Padauari e Carabinani, a norte de Manacapuru, representava também uma antiga conexão entre os rios Negro e Solimões. De acordo com Raimundo de Almeida Filho (9) tal mudança ocorreu devido a movimentações tectônicas recentes (Figura 3).
Na região entre Coari e Anamã, oeste de Manaus, o paleocurso do rio Solimões descreve uma evolução impressionante. Segundo a pesquisa da geóloga Olivia Leonardi Ribeiro (10), antes de criar o lago de Coari, o rio Solimões circundava 5km mais a norte. Nesse trajeto, esse rio passava pelas desembocaduras dos rios Piorini e Badajós, ligando-se ao atual Paraná do Badajós e continuava seu percurso cerca de 30 km a sul da atual posição, em Codajás. A confluência do rio Purus com o rio Solimões se localizava cerca de 60 km (em linha reta) a montante da atual posição. Segundo o estudo, a mudança repentina do curso do rio Solimões foi devido à falha transcorrente denominada de Coari-Codajás-Anamã, na qual parte desse rio está condicionado. A diversidade de formas de drenagem e da paisagem certamente implicou em modificações significativas ambientais à época.
Estruturas geológicas desse tipo foram geradas certamente em épocas geológicas holocênicas (últimos 150 mil anos até o presente), pois condicionam toda a sedimentação aluvial holocênica. Quando foram geradas as falhas geológicas que propiciaram essas modificações na paisagem? Essas idades, ainda em discussão, foram obtidas por Paulo Vasconcelos, da Universidade de Queensland (Austrália), em amostras de crostas lateríticas situadas na cidade de Manaus. Se esse material foi rompido pela atuação das falhas, essas estruturas devem ter ocorrido no Quaternário forçando o sistema de drenagem a se reorganizar em função dessas fraquezas geológicas (Figura 4).
Clauzionor Lima da Silva é doutor em geologia regional pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atualmente é professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e membro do corpo editorial da revista Geociências. O foco de sua pesquisa é na área de neotectônica e cenozóico.
Dilce de Fátima Rossetti possui mestrado em geologia e geoquímica pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutorado pela Universidade do Colorado (EUA). Foi pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre 1998 e 2004, e, atualmente, é pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Sternberg, H.O.R. "Vales tectônicos na planície amazônica?". Revista Brasileira de Geografia, Vol.12, n.4, p.3-26. 1950.
2. Silva, C.L. "Análise da tectônica cenozóica na região de Manaus e adjacências". Rio Claro. Tese de doutorado em geologia regional, defendida no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp). 2005.
3. Mioto, J. A. "Sismicidade e zonas sismogênicas do Brasil". Rio Claro, Vol.1 e 2. Tese de doutorado defendida no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp. 1993.
4. Bezerra, P.E.L. "Compartimentação morfotectônica do interflúvio Solimões-Negro". Tese de doutorado defendida no Centro de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPA), 335p, Belém (PA). 2003.
5. Souza Filho, P.W.M.; Quadros, M.L.E.S.; Scandolara, J.E.; Silva, E.P.; Reis, M.R. "Compartimentação morfoestrutural e neotectônica do sistema fluvial Guaporé-Mamoré-Alto Madeira, Rondônia-Brasil". Revista Brasileira de Geociências, Vol.29, n.4, p.469-476. 1999.
6. Latrubesse, E.M.; Rancy, A. "Neotectonic influence on tropical rivers of southwestern Amazon during the late Quaternary: the Moa and Ipixuna river basins, Brazil". Quaternary International, Vol.72, p.67-72. 2000.
7. Silva C.L.; Morales, N.; Crósta, A.P.; Costa, S.S.; Jimenez-Rueda, J. R. "Analysis of tectonic-controlled fluvial morphology and sedimentary processes of the western Amazon basin: an approach using satellite images and digital elevation model". Anais da Academia Brasileira de Ciências, Vol.79, n.4, p.693-711. 2007.
8. Amaral, F.R.; Silva, C.L.; Maia, T.F.A.; Val, P.F.A.; Ribeiro,O.L.; Morales, N. " Controle neotectônico no paleocanal do Tarumã-Mirim, noroeste de Manaus (AM). In: Anais do XII Simpósio Nacional de Estudo Tectônico, Ouro Preto (G), SBG, p.56. 2009.
9. Almeida Filho, R.; Miranda, F.P.; Beisl, C.H. "Evidência de uma mega captura fluvial no rio Negro (Amazônia) revelada em modelo de elevação digital da SRTM". In: Anais do Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, XII, Goiânia, GO, p.1701-1707. 2005.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.