domingo, 26 de fevereiro de 2017

Uma árvore de ramos inusitados

Ampla amostragem genética revela parentescos e eventos evolutivos na diversificação de família de roedores
MARIA GUIMARÃES | ED. 252 | FEVEREIRO 2017
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© EDUARDO CESAR
Com um modo de vida semiaquático, o ratão-do-banhado existe desde o estado de São Paulo até o sul
Com um modo de vida semiaquático, o ratão-do-banhado existe desde o estado de São Paulo até o sul.

Quem pensa que ratos não passam de bichos asquerosos de cauda pelada que rondam os esgotos nunca viu um rato-do-cacau, da espécie Callistomys pictus. Com seu nome que significa, em latim, “rato mais bonito”, o roedor que pesa por volta de meio quilograma (kg) tem pelagem longa e macia entre o branco e o prateado com uma mancha preta que percorre as costas. Apenas um grupo muito seleto de pessoas já viu esse animal que vive no alto das árvores na região cacaueira de Ilhéus no sul da Bahia, uma distribuição restrita que garante à espécie o status de ameaçada de extinção na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês): apenas 13 indivíduos já foram registrados por zoólogos. 

A versão mais recente da árvore genealógica (filogenia) dessa família de roedores indicou que seus parentes mais próximos são os ratões-do-banhado (Myocastor coypus), uma revelação curiosa que ressalta ainda mais o desconhecimento sobre esses animais. “As duas espécies são completamente diferentes em aparência, hábito e distribuição geográfica”, afirma o zoólogo Yuri Leite, professor na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e um dos autores do artigo publicado no final de dezembro no site da revista Molecular Biology and Evolution.

Leite, que há mais de 20 anos persiste em um trabalho de detetive para capturar ratos da família Echimyidae, ou equimídeos, e entender as relações entre as espécies, considera surpreendente o parentesco entre animais tão diferentes quanto o rato-do-cacau e o ratão-do-banhado.

 Mesmo assim, não foi uma novidade para ele, que já publicara a mesma conclusão em 2014 na revista Natureza on line, como parte do trabalho de doutorado de sua aluna Ana Carolina Loss. Naquele momento, o próprio título do artigo denotava uma certa incredulidade (“Relações filogenéticas inesperadas do rato-do-cacau Callistomys pictus”). “Poderia ser um viés de amostragem, porque tínhamos uma quantidade limitada de dados”, reconhece, “mas agora não”. Apesar de já ter feito muito trabalho de campo em busca de roedores praticamente pelo Brasil inteiro, ele mesmo nunca viu um rato-do-cacau.
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O trabalho de 2014 contava com 14 gêneros de equimídeos, dos quais foram analisados quatro trechos do genoma. O estudo mais recente, liderado pelo evolucionista francês Pierre-Henri Fabre, professor na Universidade de Montpellier, abrange todos os 26 gêneros da família por meio de material genético extraído de espécimes depositados em nove museus zoológicos de vários países (entre eles, uma amostra de tecido de rato-do-cacau da coleção da Ufes).

A partir desse material, técnicas mais recentes de sequenciamento agora permitiram construir árvores filogenéticas levando em conta 18 genes diferentes, a amostragem mais completa já realizada para esses animais.

Um dos problemas das árvores anteriores é incluir características ósseas, que aparentemente não revelam com precisão a trajetória evolutiva. A ideia sempre foi que semelhanças são consequência de parentesco, mas o princípio não vale para toda a anatomia. Leite conta que os dentes, por exemplo, são muito variáveis (talvez como adaptação à alimentação) e semelhantes entre animais que agora aparecem muito distantes na filogenia. O resultado mostrou que os equimídeos arborícolas são em grande parte parentes entre si e formam um ramo na árvore filogenética (ver infográfico). O mesmo vale para os terrestres, agrupados em três conjuntos. Em um deles surgiram, entre 6 milhões e 12 milhões de anos atrás, dois gêneros semifossoriais (Clyomys e Euryzygomatomys), que passam boa parte de seu tempo debaixo da terra.

Outro roedor com esse modo de vida é o rato-de-espinho Carterodon sulcidens, um animal raro que vive em galerias subterrâneas em áreas de Cerrado, no Brasil Central. Apesar dos avanços obtidos pelo estudo, sua identidade continua incerta e ele não parece ser aparentado com equimídeos semifossoriais, com quem é muito parecido. “Há algo de estranho na evolução molecular desse animal, não podemos nem dizer com certeza que seja um equimídeo”, avalia Leite. “Algumas análises o colocam como mais próximo das hutias, integrantes de outra família de roedores endêmica do Caribe, algo realmente inesperado em termos morfológicos e biogeográficos”, conta. Fabre também ressalta a velocidade com que o material genético sofre mutações, a taxa de evolução molecular, que considera excepcional a ponto de driblar os métodos de análise utilizados. “Vamos tentar com mais genes e dados genômicos no futuro”, planeja.
© RAQUEL MOURA
Rato-do-cacau é o parente mais próximo do ratão-do-banhado
Rato-do-cacau é o parente mais próximo do ratão-do-banhado

Máquina do tempo
 
Uma contribuição da análise feita agora, além de apontar os parentescos de uma maneira mais precisa do que já tinha sido possível, foi testar hipóteses sobre quais fatores levaram à diversificação dessa família de roedores. O mecanismo mais invocado para explicar efeitos geográficos na evolução costuma ser a vicariância, em que barreiras como montanhas ou oceanos surgem impedindo o trânsito de organismos e isolando espécies em subconjuntos que passam a evoluir separadamente.

Mas o estudo recém-publicado aponta para a dispersão como evento mais comum, situações nas quais o trânsito de animais passa a ser possível. Não é possível voltar ao passado para ter certeza de como aconteceu, mas modelos estatísticos permitem combinar o parentesco entre as espécies, sua localização e a idade das linhagens e sugerir o cenário mais provável. “Se em um grupo todas as espécies aparecem na Mata Atlântica, o ancestral deve ter vivido nessa floresta”, exemplifica Fabre. “Mas se o grupo mais próximo dessas espécies atlânticas é amazônico, pode ter havido um exemplo de separação entre a Mata Atlântica e a Amazônia.” É uma simplificação. A partir daí, outros fatores são levados em conta para tentar diferenciar entre separações e junções em tempos distantes. “Graças a modelos geológicos e de dispersão, testamos as hipóteses de vicariância e dispersão”, explica o francês.

Um caso marcante é justamente o pareamento improvável entre o rato-do-cacau e o ratão-do-banhado. Fabre confessa que, apesar de sugestões no passado de que havia semelhanças entre os dentes e o número de cromossomos das duas espécies, foi uma surpresa encontrá-los juntos na árvore, com um apoio estatístico convincente. A linhagem que deu origem aos dois gêneros é antiga e teria se bifurcado, de acordo com as análises, por volta de 10 milhões de anos atrás, enquanto a cordilheira dos Andes se soerguia e quando surgiram grandes zonas alagadas em florestas, como o mar do Paraná. “Essas incursões aquáticas podem ter estimulado adaptações que levaram tanto ao hábito arborícola como ao semiaquático”, propõe Leite. Subir nas árvores ou nadar são duas saídas possíveis para sobreviver nas mesmas condições.
© ALEXANDRA BEZERRA / MPEG
O rato-de-espinho tem posição incerta na genealogia
O rato-de-espinho tem posição incerta na genealogia.

As análises biogeográficas também corroboram resultados anteriores que indicavam um papel importante da elevação da cordilheira dos Andes e de conexões entre a Amazônia e a Mata Atlântica na diversificação desses animais, em diferentes momentos do passado. Para Leite, a nova árvore filogenética pode servir para gerar outras perguntas ecológicas ou evolutivas.  

Por que um determinado grupo evoluiu da maneira que se observa? O que torna o rato-do-cacau raro?

A região onde eles vivem, no sul da Bahia, tem um alto grau de endemismo, com espécies que existem apenas lá. “Queremos investigar o que aconteceu com alterações no nível do mar e expansão da floresta para possibilitar a diversificação de roedores”, sugere Leite, um especialista em encontrar e capturar até mesmo ratos praticamente inacessíveis, que nunca descem do alto de árvores nas quais circulam apenas à noite. Ele já descreveu diversas espécies da família.

Fabre, que há anos se dedica a esses animais rodeados de mistério, ressalta seus encantos. “Temos poucos dados e é um dos grupos mais interessantes da América do Sul, visto que são diversificados do ponto de vista ecológico, morfológico e taxonômico”, afirma, destacando que restam muitas espécies a descrever e que se sabe pouco sobre as já registradas pela ciência.

Artigos científicos
 
FABRE, P.-H. et al. Mitogenomic phylogeny, diversification, and biogeography of South American spiny rats. Molecular Biology and Evolution. On-line. 25 dez. 2016.

LOSS, A. C. et al. Unexpected phylogenetic relationships of the painted tree rat Callistomys pictus (Rodentia: Echimyidae). Natureza on line. v. 12, n. 3, p. 132-6. jul-set. 2014.

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