terça-feira, 25 de maio de 2010

Jay Gould e a Paleontologia



Jay Gould e a Paleontologia



Stephen Jay Gould, um dos mais estimados, prestigiados e populares escritores de divulgação científica do após-guerra, depois de lutar por mais de dez anos contra um câncer, veio a falecer aos 60 anos, no dia 20 de maio de 2001. Nova-iorquino da gema, cidade onde nasceu em 10 de setembro de 1941, celebrizou-se entre o público admirador da ciência por seus ensaios com títulos instigantes, imaginativos, curtos, densos, extremamente atraentes de ler-se, que ele vinha publicando desde 1974. Recolhendo-os, eventualmente, recheou com eles mais de 20 livros, quase todos um sucesso internacional de vendas, tornando-o um nome universal, traduzido para os principais idiomas. Gould, além de cientista afamado. era acima de tudo um apaixonado pelas causas gerais da humanidade, tornando-o o que um seu ex-colega seu denominou de “o perfeito cidadão público”





No Castelo de Löbau

A histórica reunião deu-se no Castelo de Löbau, na Saxônia, para onde um Copérnico envelhecido retirar-se com o seu discípulo Rético. Este era um daqueles aventureiros do Renascimento que, chegado à cidade de Frauenburg, em 1539, onde Copérnico residia, passara a insistir para que o velho mestre consentisse em editar o seu manuscrito sobre a Revolução das Órbitas Celestes. Mas que nada. Teimoso, o cônego Copérnico não queria de maneira nenhuma expor-se às conseqüências últimas da sua teoria. Naqueles tempos de intensa luta religiosa, quando, desde 1517, Martin Lutero fizera tremer o colosso papal, incendiando a Europa com uma guerra teológica, não seria ele, um modesto astrônomo desprotegido quem iria enfrentar os maus humores da época, instigando ainda mais os exaltados, dizendo que a Terra se movia . O amigo castelão e Rético, depois de longas conversações com o grande sábio, nas quais aqueles apaixonados pelas maravilhas cósmicas apresentaram todos os prós e contras à publicação, conseguiram arrancar de Copérnico uma promessa de um futuro “sim”. Um dos pontos a que Copérnico se prendia para não entregar os escritos ao prelo ( eles estavam prontos desde 1507) era a sua profissão de fé nos princípios da Escola Pitagórica que proibia aos sábios divulgar seus conhecimentos para fora do círculo dos iniciados.

Inspirara-se, disse Copérnico, numa carta, que ele mesmo traduzira, de Lísis para Hiparco, onde o grego seguidor de Pitágoras enfatizara os perigos da água pura da ciência ser derramada para baixo, sobre os ignorantes, os não-iniciados, o vulgo enfim, sem que isso redundasse em proveito para o conhecimento. Depois de segurar o manuscrito por 36 anos na gaveta, Copérnico capitulou, autorizando que o imprimissem em Nuremberg em 1543.
Um escritor para o grande público


Pois foi exatamente contra este primado ultra-elitista e reacionário que mandava confinar os textos e demais conteúdos científicos nas redomas dos gabinetes e dos laboratórios, é que Stephen Jay Gould insurgiu-se. É fato sabido que, até em nossos dias democráticos e ainda porosos ao socialismo, as corporações acadêmicas, em qualquer parte do mundo, nunca vêem com bons olhos o que se dedica à divulgação científica. Tem-no como uma espécie de Quinta Coluna, um inimigo nas trincheiras que fica, às escancaras, transmitindo aos estranhos (as massas, ao povo, ao vulgo) aquilo que deveria ser preservado como um segredo exclusivo dos sábios ou do Estado.
Professor de Harvard, Gould em nenhum momento hesitou em contribuir para a Natural History Magazine ,e outras revistas, com seus elucidativos ensaios (foram mais de 300, que foram editados em mais de 20 livros) sobre o evolucionismo e as polêmicas que o envolvem. Esclareceu, todavia, que não estava disposto a fazer concessões excessivas porque tinha consciência de que “popularização” tornara-se “sinônimo de ruim, simplista, trivial, barato e adulterado”, assegurando que ele se orientaria por outro principio: “Tornarei”, assegurou ele, “ a linguagem acessível definindo ou eliminando o jargão: não simplificando conceitos”.

Divulgador científico

Isto feito, Stephen Jay Gould, paleontólogo de profissão, seguiu ao longo da sua produtiva e prolífera vida, mantendo um coluna mensal intitulada This view of life, a tradição inaugurada nos tempos modernos pelo filósofo Voltaire (Elementos da filosofia de Newton, 1738), e, mais remotamente por Galileu com o Sidereus Nuncius (Mensageiro das Estrelas, 1610),
Ambos, tanto o iluminista como Gould, conseguiam a façanha de transmitir por meio de expressões simples e em prosa clara, os intrincados meandros da ciência. Em popularidade e celebridade ele pode ser comparado ao seu contemporâneo Carl Sagan, astrônomo e cientista espacial, outro escritor e cientista visionário, odiado pelos acadêmicos devido ao seu natural brilho estrelar, falecido em 1996, e, como Gould, vitimado por um câncer(*). Ambos acreditavam que a missão deles, como escritores de divulgação científica, era fazer o público ser “ menos temeroso da ciência para que não a vejam como arcana, monolítica e distante, mas como algo importante em suas vidas”. E, certamente, se assim não o fizessem, se não ocupassem os espaços existentes na mídia, deixariam o povo ao desabrigo, sujeito às maquinações dos bruxos, às artimanhas dos curandeiros, à perigosa convicção dos charlatães, dos ocultistas, dos quiromantes, e de toda a caterva que vive às custas da ignorância popular – “aos relatos espúrios que enganam os ingênuos”, como disse Sagan (in O mundo assombrado pelos demônios, p.20).

(*) Gould fez blague com Sagan, seu colega, dizendo que o amigo por ser um rapaz alto e elegante escolheu a astronomia, enquanto Gould, gorducho e baixo, apeteceu-se pela paleontologia.
Jay Gould e a Paleontologia - O equilíbrio pontual


Gould, entretanto, não foi somente um divulgador. Desde menino revelou-se um amante dos dinossauros. Tudo se deu a partir do dia em que o seu pai o levou a ver um Tyrannosaurus rex no American Museum of Natural History, de Nova Iorque, quando ele fez cinco anos. Sendo natural a adesão dele ao darwinismo, única doutrina cientifica e social séria seguida pelos norte-americanos. Procurou corrigi-lo, defendendo o Punctuated equilibria - a tese do equilíbrio pontual que o tornou famoso no meio dos estudiosos de ciência natural -, segundo a qual a evolução não se faz necessariamente aos poucos, de acordo com o phyletic gradualism, o gradualismo, como ainda hoje acreditam os neodarwinistas. As circunstâncias, o clima, a geografia, o inesperado, podem provocar o rápido surgimento de uma espécie, ou alterações substantivas na estrutura e na aparência delas. Pareceu-lhe bem plausível que algumas delas passassem por uma brusca mutação para depois estabilizarem-se, seguindo por séculos a fio sem conhecerem outras alterações. Ao gradualismo dos darwinistas ortodoxos ele opôs o espontaneísmo e o stop and go do pontualismo.

O gene regulador


E.Haeckel (1834-1919), o evolucionista alemão admirado por Gould
Defendeu, além disso - restaurando o antigo e desacreditado conceito de heterocronia, apresentado pelo alemão Ernst Haeckel em 1886 - a existência de um gene regulador, chamado de homeótico, provocado pela mudança do ambiente. Trata-se de uma espécie de autocorretivo que permite que certas espécies sofram modificações especiais, apresentando novos fenótipos, que só se processam localmente, não incidindo sobre as demais. Tudo isso levou-o, a este entusiasta da história natural, a defender um novo paradigma para o progresso, um modelo que enfatizasse não mais a complexidade mas a diversidade da vida, dando munição aos ambientalistas com sua crítica à visão excessivamente antropocêntrica que mantemos sobre as coisas do mundo. Ao ver a historia da vida como algo não necessariamente progressivo e muito menos previsível, como era crença entre os naturalistas evolucionistas da época de Darwin, afirmou que as criaturas da terra estão evolvidas em meio a uma série de eventos contingentes e fortuitos que as alteram significativamente. Do mesmo modo que Darwin pagou seu tributo a fé otimista no progresso ininterrupto do seu tempo, Gould, cedendo ao relativismo e ao multiculturalismo ( que desde os anos 60 tomou de assalto os campi universitários dos Estados Unidos), assegurou que a suprema excelência da vida dá-se pela variedade e diversidade dela. De certo modo ele foi o introdutor do politicamente correto nos estudos evolucionistas do seu tempo.
Um ardente polemista


Jay Gould, lembrando a impetuosidade dos ianques, gostava de desafios, de lançar-se em eruditas polêmicas, brandindo para tanto o martelo dos paleontólogos. Além dos que ele denominou de fundamentalistas darwinianos e dos racistas, os seus adversários favoritos eram os criacionistas, os teólogos cristãos que, especialmente nos estados do sul dos Estados Unidos, combatem o evolucionismo por acreditá-lo doutrina atéia. Afinal a teoria da evolução, ao dotar o Homem de um passado simiesco, equiparando-o às demais espécies existentes na Terra, desmente o Gênese. Para o paleontólogo, ao revés, o Homem é fruto da Natureza e de si mesmo, não de um sopro divino. Ou como ele disse a respeito de Darwin, endossando-o “Nada de leis supremas sobre o bem das espécies ou dos ecossistemas, nenhum regulador sábio e vigilante nos céus – apenas organismos lutando”(Zoonomia” in O Sorriso do Flamingo, Cia das Letras, p.31) e exceções. De fato, ele era um deslumbrando pela vida, Gould era mesmo ouro!

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