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O desvendamento da intimidade da matéria viva cria uma promessa e uma ilusão de controle ou precisão que a tecnociência biológica ainda está longe de alcançar. Muita gente culta acredita piamente que a transcrição do genoma humano tem o poder de desvendar, por si, os mecanismos envolvidos em processos fisiológicos tão decisivos quanto câncer, envelhecimento e infecções, quando qualquer pessoa minimamente familiarizada com os rumos atuais da genômica sabe que a cada avanço nessa área corresponde igualmente um aumento de complexidade. Muitas vezes, compreender pode também significar que o controle almejado pelo saber é mais difícil do que se esperava, ou mesmo pouco provável. Um exemplo recente e eloqüente é o ainda mal compreendido fenômeno da interferência de RNA (RNAi, na abreviação em inglês com que se tornou mais conhecido), destacado pela prestigiada revista especializada norte-americana Science como o principal avanço da pesquisa científica no ano de 2002 e explicado a seguir.
O pressuposto de toda a engenharia genética é que, ao modificar-se o DNA de um organismo incluindo em seu genoma um ou mais genes de seqüência conhecida (ou, numa estratégia diversa, silenciando genes para que o organismo pare de sintetizar certas substâncias), a planta ou animal passará a produzir (ou deixar de produzir) as proteínas correspondentes. É o que se faz com plantas transgênicas, por exemplo, incluindo nelas trechos de DNA extraídos de bactérias para que seu metabolismo passe a tolerar um herbicida (caso da soja Roundup Ready, da empresa Monsanto, resistente ao agrotóxico Roundup, o glifosato) ou passe a fabricar um inseticida nos seus próprios tecidos (caso do milho Starlink, da Aventis CropScience, que secreta a proteína inseticida Cry9C para aniquilar lagartas de borboletas e mariposas que se alimentam da planta). Mas nem sempre são esses os efeitos obtidos.
Em alguns casos, cessa por completo a produção das substâncias pretendidas. Isso deixava os pesquisadores desconcertados até o começo dos anos 1990, quando se descobriu que pequenos trechos de RNA podiam modular a expressão (leitura) de genes pela maquinaria bioquímica das células. A prova definitiva dessa forma de interferência genética (daí o nome "interferência de RNA") veio em 1998, quando pesquisadores dos Estados Unidos - Andrew Fire (Carnegie Institution) e Craig Mello (University of Massachusetts Medical School) - enxertaram fitas duplas de RNA num tipo de verme e demonstraram que elas bloqueavam a expressão dos genes que continham justamente trechos de DNA coincidentes com as seqüências de RNA enxertadas. O mesmo fenômeno da RNAi foi posteriormente observado em insetos e outros organismos, provando a participação do RNA no que se convencionou chamar de silenciamento de genes.
A interferência de RNA poderia ter-se transformado numa nota de rodapé da biologia molecu-lar, mera excentricidade bioquímica na já furiosa complexidade do metabolismo celular, não fossem indicações crescentes de que o mecanismo talvez seja universal entre organismos superiores, como animais e plantas. Ele teria sido herdado de ancestrais bacterianos, que o teriam desenvolvido há centenas de milhões de anos para proteger-se do ataque de vírus (desarmando os ácidos nucléicos que estes injetam na vítima para obrigá-la a produzir quantidades industriais de cópias do próprio vírus). Além disso, pode-se interpretar a RNAi como uma das mais flagrantes contradições de um pilar da biologia molecular, o Dogma Central formulado por Francis Crick em 1957: o fluxo de informação só se faz no sentido DNA ' RNA ' proteína, nunca no inverso (como ressalvou Sandro de Souza, tal dogma já vinha perdendo muito de seu peso desde os anos 1980, quando começaram a ser identificadas formas quimicamente ativas de RNA e continuou a desfazer-se a noção de que ele fosse mero intermediário entre DNA e proteínas).
Ora, se o RNA pode silenciar genes (DNA), não é descabido dizer que o fluxo de informação se inverte. De um ponto de vista utilitário (e certamente é dessa perspectiva que flui o entusiasmo dos pesquisadores), isso significa também que toda uma nova classe promissora de ferramentas se apresenta para os biotecnólogos, pois eles talvez não precisem mais modificar o genoma - isto é, o DNA contido nos cromossomos - de um organismo para obter os resultados pretendidos, seja a resistência a um herbicida numa planta comercial, seja o tratamento de uma enfermidade humana. Em princípio, os mesmos efeitos poderiam ser alcançados sem reformar o "código da vida" no núcleo celular, bastando adicionar pequenos RNA ao seu citoplasma (o "recheio" das células). Não seria ainda, decerto, o desabamento do edifício da engenharia genética, lenta e arduamente erguido nas últimas três décadas, mas representaria no mínimo uma mudança radical de sua planta, com a adição de andares imprevistos a um prédio térreo, que mereceria - quem sabe? - ser relançado com o nome de "engenharia biomolecular".
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"O DNA"Autor: Marcelo Leite
Editora: Publifolha
Páginas: 104
Quanto: R$ 15,12 (preço promocional)
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