O passado remoto de um grande rio
Erosão dos Andes pode ter unido antigas bacias hidrográficas e formado o Amazonas
NELDSON MARCOLIN |
Edição 223 - Setembro de 2014
O debate sobre a origem do rio Amazonas continua tão vasto quanto o próprio rio, o maior do mundo, com 7 mil quilômetros (km) de extensão e 20 km de largura na altura de Manaus. Depois de uma equipe do Rio de Janeiro ter concluído, com base em fósseis de peixes, que há 2,5 milhões de anos um esboço do rio Amazonas corria para oeste e desaguava em uma área hoje árida do Caribe ( ver Pesquisa Fapesp nº 216), um geofísico de São Paulo apresenta uma nova possível explicação para a formação do rio e da bacia Amazônica, sugerindo que suas águas já fluíam para leste há muito mais tempo, há cerca de 10 milhões de anos
De acordo com essa proposta, obtida por meio de uma simulação matemática da evolução do terreno e do depósito de sedimentos na região, o rio Amazonas teria tomado seu sentido atual, de oeste para leste, não só em consequência de alterações no interior da Terra que desencadearam um soerguimento da porção oeste da Amazônia, de acordo com a abordagem tradicional, mas também como resultado da movimentação da própria superfície terrestre. Um aumento na erosão das cordilheiras andinas pelas intempéries teria criado o declive que se estende dos Andes à Ilha de Marajó e por onde hoje escorre um quinto das águas fluviais do planeta.
“Mostrei que a própria dinâmica da erosão e sedimentação teria sido capaz de modificar a drenagem da região”, afirma o geofísico Victor Sacek, professor da Universidade de São Paulo (USP), que detalhou essa hipótese em um artigo publicado on-line em julho na revista Earth and Planetary Science Letters. Suas conclusões convergem com as do geólogo Paulo Roberto Martini, cuja equipe estabeleceu em 2008 o rio Amazonas como o mais extenso do mundo (ver Pesquisa Fapesp nº 150). “A rapidez com que os Andes crescem e a erosão que o Amazonas provoca na cordilheira são monumentais”, diz Martini. “O rio transporta para o mar o equivalente a mais de um Pão de Açúcar inteiro de sedimentos por mês.”
Para entender essa hipótese, é preciso rever a evolução da paisagem na região. Há 24 milhões de anos, no início do período geológico conhecido como Mioceno, as nascentes dos rios do norte da América do Sul não ficavam nos Andes, como hoje, mas em relevos bem menos expressivos a oeste, que dividiam as águas da região em duas bacias hidrográficas distintas. A leste do divisor de águas, os rios desciam em direção à atual foz do Amazonas. A oeste, os rios seguiam na direção oposta, rumo a bacias aos pés dos Andes, e alimentavam imensos lagos e pântanos, que formavam uma área alagada 20 vezes maior que o atual pantanal mato-grossense, conhecido como Sistema Pebas.
A geóloga Carina Hoorn, da Universidade de Amsterdã, Holanda, com base em rochas e fósseis colhidos à margem de rios, argumenta que as bacias separadas pelo Arco Purus teriam começado a se fundir há 16 milhões de anos. Desse modo, o rio Amazonas e sua bacia teriam ganho sua extensão atual durante os 6 milhões de anos seguintes, quando a inclinação do relevo do norte do continente fez a água dos lagos entre os Andes e o Arco Purus começar a fluir por rios preferencialmente para leste. A equipe do geólogo Jorge de Jesus Figueiredo, da Petrobras, depois de coletar e analisar amostras de rochas em poços de sondagem no fundo do mar próximo à foz do Amazonas, chegou a conclusões que reforçaram a hipótese de Carina.
A região norte da América do Sul e o rio Amazonas ganharam as feições atuais também em consequência da interação das placas litosféricas, que Sacek estuda desde o doutorado, concluído em 2011. No litoral oeste da América do Sul, a placa de Nazca, que forma o assoalho do oceano Pacífico, colide com a placa continental sul-americana. Como resultado, a placa oceânica, mais fina e densa que a continental, mergulha sob o continente em direção à chamada astenosfera, uma camada do interior da Terra tão quente que suas rochas se comportam como um líquido espesso, que flui lentamente ao longo de milhares de anos. “A raiz dos Andes cresce e afunda, ao mesmo tempo que seus picos sobem”, diz Sacek. “Isso porque as placas litosféricas flutuam sobre a astenosfera como icebergs flutuam no mar, com apenas uma pequena ponta visível sob a superfície. A crosta continental tem em média de 30 a 40 km de espessura, enquanto nos Andes pode passar de 70 km, embora a altura das montanhas não ultrapasse 7 km.”
O espessamento da crosta devido ao choque entre as placas tectônicas, além de erguer os Andes, observa Sacek, tem outro efeito sobre o relevo a leste da cordilheira. O peso da crosta mais espessa ao lado puxa as regiões aos pés dos Andes, criando o leito de bacias sobre as quais, durante o Mioceno, se depositavam os sedimentos trazidos pelas águas descendo tanto dos Andes quanto do interior do continente. Até esse ponto, os especialistas geralmente concordam. “À medida que a placa de Nazca afundou mais sob a placa sul-americana, os Andes e suas regiões vizinhas passaram a flutuar sobre uma astenosfera mais profunda e viscosa”, diz a geofísica Grace Shephard, da Universidade de Oslo, Noruega. Em 2010, Grace, com colegas dos Estados Unidos, apresentou uma reconstituição das mudanças na astenosfera abaixo do continente, mostrando que as correntezas de rocha fluida teriam força suficiente para soerguer as bacias vizinhas dos Andes, inclinando todo o terreno subandino e amazônico na direção leste.
Erosão nos Andes
Com uma abordagem oposta, Sacek desconsiderou o efeito da astenosfera e usou o modelo matemático que já havia adotado no doutorado para simular as transformações no relevo provocadas pelo balanço entre o soerguimento dos Andes, a erosão de suas rochas pelas águas da chuva e dos rios e o transporte e deposição dos sedimentos criados pelas águas, que Grace ignorou. Como o efeito de todos esses processos juntos em uma escala continental ao longo de milhões de anos é extremamente complexo para ser calculado com detalhes realistas, ele teve de encontrar um equilíbrio entre fazer um modelo muito complexo, mas confuso, ou muito simplista, incapaz de representar a natureza adequadamente. “Não foi fácil”, diz.
Como ainda há grande incerteza sobre a rapidez com que os Andes cresceram e com que eficiência a erosão desgastava suas rochas e as águas transportavam seus sedimentos, Sacek testou diversos valores numéricos em suas simulações. Independentemente dos números que inserisse no computador, porém, as simulações da história geológica dos últimos 35 milhões de anos reproduziam a reversão do rio Amazonas. À medida que os Andes se tornavam uma barreira para a umidade soprada por ventos vindos do Atlântico, o aumento das chuvas no flanco leste da cordilheira aumentava também a quantidade de sedimento transportado montanha abaixo. Em algum momento, os sedimentos depositados soterravam completamente as bacias ao lado dos Andes, criando a suave inclinação a leste observada na Amazônia atualmente. Uma das simulações indicou que a bacia amazônica teria se formado há cerca de 10,5 milhões de anos, como defendido por Carina. O modelo matemático, porém, falhou ao simular a evolução do Sistema Pebas, os lagos e pantanais espalhados entre os Andes e o Arco Purus, indicando épocas e lugares diferentes dos obtidos pelos geólogos.
Grace chamou de “impressionante” o trabalho de Sacek, mas notou que apenas o modelo que ela e outros pesquisadores fizeram, levando em conta os efeitos da astenosfera, conseguem formar corretamente o Sistema Pebas. “Permanece o desafio de combinar melhor os fenômenos geológicos da superfície terrestre com os do interior do planeta”, diz ela. “Esses processos não são mutuamente exclusivos.” Para a geóloga Dilce Rossetti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a origem do Amazonas deve permanecer aberta ainda por muitos anos. “Os dados obtidos até agora são muito poucos e pontuais para fazer extrapolações”, afirma. “As datações dos sedimentos ainda não são totalmente confiáveis e as unidades de diferentes períodos geológicos precisam ser melhor mapeadas.”
Carina, da Holanda, duvida que novos dados mudem suas próprias conclusões a respeito do Amazonas. “Os dados da foz do Amazonas são bastante claros e outros registros no Suriname e na Venezuela confirmam a existência de um sistema de rios nascendo nos Andes no final do Mioceno”, diz. Dilce observou que a história pode ser ainda mais complicada. Segundo ela, os sedimentos andinos das amostras estudadas por Figueiredo desaparecem em amostras colhidas mais acima no poço. “Nem ele nem eu sabemos explicar por que isso acontece”, ela reconhece. A região amazônica continua intrigando, surpreendendo e fascinando (ver reportagem sobre as primeiras fotos da Amazônia na página 86).
Mapa resgatado
O curso do Amazonas, de Nicolas Sanson: precisão reconhecida
Um trabalho que se julgava apenas digno de curiosidade, o Le cours de la rivière des Amazones, elaborado em 1656 pelo cartógrafo francês Nicolas Sanson, foi finalmente reconhecido como um dos primeiros mapas científicos da região amazônica. Jorge Pimentel Cintra, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), e um de seus estudantes, Rafael Henrique de Oliveira, desconsideraram a crítica do geógrafo francês Charles- -Marie de La Condamine de que o mapa teria sido feito “baseado somente em informações históricas”, compararam as coordenadas geográficas adotadas com as atuais e reconheceram que o mapa foi feito com acurácia, do melhor modo possível para a época.
“Nossa hipótese é de que esse mapa era um rascunho, que Sanson usava como base para fazer atlas mundiais”, diz Cintra. Em um artigo publicado na Acta Amazonica, ele e Oliveira listam 14 outros mapas feitos a partir do trabalho de Sanson. Publicado apenas em 1680, 13 anos depois da morte de Sanson, cartógrafo real da França, o mapa apresenta povoamentos, cadeias de montanhas e poucos afluentes do Amazonas, expondo um erro comum na época, que só foi detectado em 1707, ao indicar a nascente do rio próxima a Quito, no Equador. Outro equívoco, associado ao erro da nascente, foi considerar como parte do Amazonas os rios Coca e Napo, que, hoje se sabe, são seus afluentes.
Cintra e Oliveira consideram o mapa de Sanson um pouco mais preciso que outro, concluído um ano antes, em 1655, o Magni Amazoni fluvii, do engenheiro militar francês Blaise François Pagan, o conde de Pagan. Os dois mapas se baseiam nas informações de um relato de Cristobal de Acuña, jesuíta espanhol que desceu o rio desde o Equador em 1639 acompanhando o explorador português Pedro Teixeira. “Olhei para o relato de Acuña, publicado em 1641, refiz os cálculos e conferi as latitudes e longitudes dos dois mapas”, afirma Cintra. “Nos pontos em que eu tive dúvida, Sanson e Pagan também tiveram, porque as informações não eram claras.”
Carlos Fioravanti
ProjetoEvolução tectônica, climática e erosional em margens convergentes: uma abordagem numérica (n. 2011/10400-0); Modalidade Pós-doutorado; Pesquisador responsável Victor Sazek (IAG-USP); Investimento R$ 147.351,39 (FAPESP).
Artigos científicos
CINTRA, J. P.; OLIVEIRA, R. H. de. Nicolas Sanson e seu mapa: o curso do rio Amazonas. Acta Amazonica. v. 44, n. 3, p. 353-66. 2014.
HOORN, C. et al. Amazonia through time: andean uplift, climate change, landscape evolution, and biodiversity. Science. v. 330, p. 927-31. 2010.
SACEK, V. Drainage reversal of the Amazon River due to the coupling of surface and lithospheric processes. Earth and Planetary Science Letters. v. 401, p. 301-12. 2014.
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