A Explosão Cambriana: Uma introdução
Por: Marcus Cabral
Aproveitando
os posts anteriores sobre os oportunos lançamentos, pela LP&M
pocket, dos livros sobre evolução e paleontologia, especialmente 'História da Vida'
de Michael J. Benton, apresento aqui o primeiro de dois artigos
discutindo a famosa 'explosão cambriana' que dá início a era fanerozóica
e é ponto importante na história da vida animal e ecológica de nosso
planeta. Reforçando o coro de Luiz Dadário, que escreveu um post
comentando o livro de Benton, volto a recomendá-lo, apesar de um ou
outro erro ou má escolha de tradução, mas que não tiram a importância do
lançamento e a qualidade geral da tradução.
Este
primeiro artigo portanto usa como base os capítulos referentes a
explosão cambriana e acrescenta novas informações e atualizações ao
excelente livro de Benton que por característica tem uma abordagem bem
mais sucinta e direta.
A
'explosão cambriana' é a expressão utilizada para referir-se ao
aparecimento 'súbito' no registro fóssil, por volta de 542 milhões de
anos atrás, de muitos grupos de animais, especialmente aqueles com
simetria bilateral e
'esqueletizados', ou seja, como endo ou exoesqueleto, conchas e outros
apêndices duros mineralizados ou parcialmente mineralizados (formados
por compostos de fosfato ou carbonatos de cálcio, por exemplo), ou
não-mineralizados quitinosos ou à base de colágeno.
Infelizmente,
a própria expressão 'explosão cambriana' suscita uma série de
interpretações inadequadas e dá margem a muita confusão e manipulação
deliberada por parte dos lobbies antievolucionistas. Por isso é bom
explicar o que ela não é, antes de detalharmos o que ela foi e que qual a
sua repercussão na nossa compreensão da evolução biológica dos animais.
Em primeiro lugar muitas das confusões se originam da não apreciação do
simples fato de que a 'aparição súbita' de partes facilmente
fossilizadas, os 'esqueletos' como descreve Benton, no registro fóssil
não é sinônimo de origem dos animais e dos filos, uma vez que a primeira
vez que os grupos de seres vivos em geral aparecem no registro fóssil
logicamente ocorre após sua origem e muitas vezes pode acontecer apenas
muito tempo depois da mesma, quando os números, tamanhos, potencial de
fossilização atingem determinados níveis que tornam a fossilização (um
evento relativamente raro) mais provável.
Outra
questão é que o termo 'explosão' não deve ser entendido de maneira muito
literal especialmente por que com o tempo e a melhor avaliação e
estimação das idades das diversas eras e períodos geológicos, o evento
em si, designado por tal termo, é relativamente estendido no tempo, como
veremos mais adiante, tendo durado dezenas de milhões de anos; sendo
rápido apenas de um ponto de vista relativo a imensidão do tempo
geológico. Porém, se pensarmos que a maioria dos grupos de animais que
protagonizaram a referida radiação evolutiva era formada por pequenos
invertebrados, possivelmente com tempos de gerações relativamente curtos
e que se reproduziam em abundância, os tempos em questão não são tão
extraordinários assim ainda que alguns estudos indiquem que os níveis de
diversificação são realmente mais rápidos do que no resto do
fanerozóico.
Por
fim, a ideia que todos os grandes grupos de animais ali se originaram
(na verdade, ali teriam dado as primeiras caras no registro fóssil) é,
na melhor das hipóteses, exagerada e depende de uma certa
arbitrariedade no uso do termo 'grande' e, na pior das hipóteses,
simplesmente, falsa, uma vez que o termos 'grandes grupos' pode incluir
várias categorias taxonômicas diferentes de filos.
É
preciso lembrar que mamíferos, aves e anfíbios, bem como insetos e
outros grupos de artrópodes surgiram bem depois e são considerados
também 'grandes grupos'. Como veremos mais adiante, o que parece ter
caracterizado a radiação cambriana é o aparecimento e [geologicamente]
rápida diversificação dos filos de metazoários, mais especialmente dos
animais com simetria bilateral que certamente tiveram sua origem em
algum ponto, possivelmente no neoproterozóico, antes do cambriano, como
vários indícios fósseis e oriundos da reconstrução filogenética deixam claro.
Um
fato que é frequentemente esquecido pelos detratores da biologia
evolutiva é que antes do cambriano pelo menos uma fauna macroscópica é
bem conhecida, a famosa fauna de Ediacara,
encontrada em 1946 na Austrália que conta com vários seres
multicelulares, alguns deles provavelmente aparentados com grupos
modernos de animais [I, II].
Voltando
a explosão cambriana propriamente dita, apesar da fronteira cambriana
ser atualmente bem datada, a explosão em si não foi tão súbita assim,
podendo ser dividida em pelo menos duas fases marcadas por duas biotas
bem características, com a primeira delas sendo conhecida 'fauna
Tomotiana', também conhecida como 'small shelly' (literalmente 'pequenas conchinhas') cujos fósseis podem ser achados no final do neoproterozóico superior, i.e. o final do período que antecedeu o cambriano. Portanto, em um olhar mais atento, esta
fauna seria uma continuação de uma fauna semelhante que dataria do
Ediacarano (635–542 milhões de anos atrás), embora tendo tornado-se mais
comum durante o cambriano inferior, entre 542 e 530 milhões de anos atrás. [Veja figura abaixo]
Dois
são os principais grupos de animais encontrados entre a 'fauna de
conchas pequenas'. O primeiro é formado por hiolitelmintideos [III] (hyolithelminthids),
formados por tubos fosfáticos abertos em ambos os lados, e o segundo
grupo constituído de pequenas conchas cônicas que geralmente ocorrem em
pares e que são designadas por tomotiideos (tomotiids).
Além
desses dois grupos, haviam outros animais que cavavam tubos e secretavam
paredes de carbonato, tubos de material orgânico que parecem ser fruto
da atividade de vermes não-segmentados e placas fosfáticas finas que são
conhecidas como 'escléritos', que possuem uma forma de folhas e que os
paleontólogos acreditam que deveriam agrupar-se formando um tipo de
armadura, mas cujos animais que as possuíam ainda são em sua maioria enigmáticos e desconhecidos, como Benton chama a nossa atenção, com algumas exceções como o Microdyscton
mostrado na figura ao lado, o que sugere que alguns dos animais que
portavam os 'escléritos' podiam ser vermiformes e relativamente mais
complexos.
Essa
fauna de pequenas conchas que pode ser encontrada a partir do finalzinho
da era neoproterozoica e estende-se pelo cambriano, período em que
torna-se mais evidente, é a precursora da real explosão cambriana que
acontece em um segundo momento, no qual cerca de 12 novos grupos
surgiram sobrepondo-se a fauna de conchas pequenas. E, ao contrário do
que se pensava no início, estes grupos não apareceram de uma única vez.
Uma
análise mais pormenorizada do registro fóssil deste período mostrou que
os diferentes grupos aparecem de maneira mais gradual e ordenada, ainda
que em um intervalo de tempo geologicamente curto, mas ainda assim que
teria durado entre 10 ou 20 milhões de anos, talvez mais. Mas mais do
que isso, os primórdios da 'explosão' propriamente dita podem de fato
serem traçados até algumas dezenas de milhões de anos antes do
cambriano, através de icnofósseis - ou
seja, vestígios de tubos, rastros e pegadas de animai, preservados nos
sedimentos pré-cambrianos. Estes vestígios podem ser bastante incertos,
mas certos tipos de marcas são bastante características de seus perpetradores, especialmente quando mostram pés ou marcas de pernas, por exemplo.
Até bem pouco tempo atrás estes indícios poderiam ser traçados há 555
milhões de anos atrás, mas mais recentemente a análise de sedimentos de
585 milhões de anos mostram claras evidências de atividade locomotora
animal.
Boa
parte desses rastros parecem ter sido feitos por animais com simetria
bilateral e com corpo vermiforme alongado. Porém, por volta, de 540
milhões de anos atrás já são detectáveis marcas de patas que apontam
para a existência de artrópodes com seus apêndices locomotórios
articulados. Contudo, somente a partir de 530 milhões de anos atrás é
que os conhecidos trilobitas passam a poder ser encontrados
fossilizados, assim como os equinodermos.
Assim,
de acordo com Benton, a explosão cambriana propriamente dita teria se
iniciado há 530 milhões de anos, com o aparecimento dos restos de
'esqueletos' fossilizados dos já mencionados trilobitas e equinodermos, e
teria durado entre 10 e 20 milhões de anos, intervalo de tempo durante o
qual a diversidade global aumentou muito.
Alguns dos grupos de animais que fizeram sua primeira aparição em estratos do cambriano, além dos já
mencionados trilobitas (artrópodes) e equinodermos, como os
braquiópodes podem ser encontrados até hoje e continuam muito similares
aos seus antepassados mais remotos, mas tendo seu auge no paleozóico
entre 542 e 251 milhões de anos atrás.
Os
grandes astros da explosão cambriana e do paleozóico de modo geral são
realmente os trilobitas, cujos primeiros indícios conhecidos estão na
forma de pegadas descobertas, no comecinho do cambriano, mas que apenas
mais tarde revelam-se em seus detalhes, através dos restos fossilizados
com a característica e distintiva morfologia destes animais. Estes belos
animais possuem uma estrutura corporal formada por três lobos (daí
'trilobita') distribuídos de lado a lado, com o eixo antero-posterior,
isto é da cabeça à cauda, podendo ser divido em estrutura protetora da
cabeça o 'cefalon', seguidos de vários segmentos torácicos, cada um com
um par de patas, terminado em um escudo caudal conhecido como pigídio. A
boca destes artrópodes era localizada sob o cefalon e permitia que
estes animais alimentassem-se no fundo marinho ao revolver os
sedimentos. Na porção mais anterior da cabeça havia um par de antenas
sensoriais similares a de crustáceos modernos e que deveriam ajudar os
trilobitas locomoverem através dos sedimentos em suspensão, apesar dos
restos fossilizados dos olhos desses animais indicarem excelente visão:
“Cada olho consistia em numerosos tubos oculares, cada um com um a lente, como os artrópodes moderno. Os paleontólogos dissecaram esses olhos (a lente é um cristal de calcita que sobrevive inalterado pela fossilização) e viram através dele; que estranho ver o mundo como um trilobita viu há mais de 500 milhões de anos.” (p 67)
Os
equinodermos que são bem conhecidos hoje na forma de alguns de seus
representantes como estrelas, bolachas e pepinos do mar, durante o
cambriano eram representados por criaturas um tanto diferentes; segundo
Benton, algo entre uma estrela do mar e um lírio do mar, como a
característica simetria
adulta* pentaradial, sendo uma particularidade das linhagens modernas e
não um traço existente desde os primórdios do grupo. Esses animais eram
geralmente sésseis e pedunculados, com seus esqueleto de carbonato de
cálcio feitas de placas poligonais bem juntinhas e ajustadas, com
espécies de tentáculos que eram usados para captura alimento saindo de
suas bocas que ficava alojadas geralmente no topo de seus corpos.
Além
desses dois grandes grupos, durante a explosão cambriana também são
encontrados outros tipos de animais em abundância, como o arquiciatos,
com sua característica forma cônica e que forma pequenos recifes que
chegam em algumas regiões há 10 metros de altura, algumas esponjas bem
semelhantes as encontradas atualmente, mas com a maioria delas sendo
conhecidas apenas por suas espículas; os famosos hiolitas [III] animais
que conhecemos por suas conchas cônicas e constituídas de carbonato de
cálcio; além de outros grupos cujas relações com as faunas e filos
modernos são ainda alvos de intensos debates entre os sistematas de
invertebrados.
A
figura acima foi traduzida e retirada da figura do artigo de Marshal
(2006) cujas datas foram retiradas de Grotzinger et al. (1995),
Landinget al. (1998), Gradstein et al. (2004), and Condon et al. (2005).
As curvas de isótopos de carbonatos do Neoproterozoico vieram de Condon
et al. (2005), do cambriano inicial em sua maioria de Maloof et al.
(2005), mas também de Kirschvink & Raub (2003), as do cambriano
médio e tardio de Montanez et al. (2000). Na figura é possível perceber a
ampla variação desses valores durante parte do cambriano inicial que em
parte são devidas a variação geográfica, mas também a variação medida
no Marrocos. As medidas de disparidade são provenientes de Bowring et
al. (1993) e as de diversidade são oriundas da tabulação de Foote (2003)
derivadas dos dados, de gêneros marinhos, compilados por Sepkoski
(Sepkoski 1997, 2002). Todos os taxa encontrados em intervalos , assim
como aqueles que estendem-se através dos intervalos, são contados. As
idiossincrasias de curta duração no registro das rochas, podem adicionar
'ruído' as curvas de diversidade, devendo assim serem omitidas para
descartar este efeito. Marshal ressalta que a diversidade persistente
era muito mais baixa que os valores mostrados; muitos dos táxons
encontrados em um intervalo do registro estratigráfico não coexistiram.
As fronteiras das curvas de cruzadas (de acordo com Michael Foote em
comunicação pessoal a Marshal) nos fornece o número de táxons que devem
ter coexistido nos pontos mostrados, mas é preciso lembrar que como as
fronteiras estratigráficas tradicionais são baseadas em tempos de
reviravoltas taxonômicas incomuns, as estimativas podem na realidade
subestimarem as diversidades típicas permanentes.
O mais interessante, porém, é que neste mesmo período achamos as primeiras evidências dos próprios
grupo de animais aos quais pertencemos mais diretamente, os cordados e
até mesmo os vertebrados. Esses ancestrais ou ramos colaterais remotos
(talvez 'tios-avós') não passavam de singelas criaturas com corpo
vermiforme lateralmente achatados, com apenas poucos centímetros de
comprimento, nadando ondulando sua musculatura da maneira como fazem os
peixes modernos.
Embora a fauna do folheio de Burgess (Burgess Shale)
na Colúmbia Britânica, no Canadá, seja a mais conhecida, especialmente
por causa do tratamento dada a ela por livros como 'Vida Maravilhosa',
do célebre e finado paleontólogos Stephen Jay Gould, ela é relativamente
moderna,
datando do cambriano superior. Por isso, o conjunto de fósseis que
melhor caracteriza a explosão cambriana em seu auge é a da fauna de
Chengjiang, encontrada nos depósitos xistosos de Maotinashan (Chengjiang Maotianshan Shales),
na península de Yunnan, que foram descobertos em 1912, mas que só
começaram realmente a serem mais intensamente investigados nas décadas
de 80 e 90 do século passado. Estes fósseis datam em torno de 525 a 520
milhões de anos atrás e, até a publicação do livro de Benton, esta biota
era formada por 185 espécies reconhecidas, incluindo algas, esponjas,
medusas, anelídeos, priápulos, equinodermos, cordados e artrópodes, com
este últimos perfazendo 45% da fauna, com cerca de 40% das espécies
podendo ser distribuídas pelos demais grupos e algo em torno de 15%
constituindo-se em grupos de difícil classificação em que não existe
muito consenso em qual grupo taxonômico estas espécies deveriam ser
colocadas.
Faunas,
como dos folhelhos de Burgess e Chengjiang, são extraordinárias e sem
elas ão conheceríamos vários organismos vivos e não compreenderíamos
como certas partes de outros organismos relacionariam em um organismo
completo. Estes dois depósitos fossilíferos são o que os paleontólogos
chamam de 'Lagerstätte',
formados por sedimentos muito finos, tendo provavelmente se originados a
partir de mares rasos e calmos em condições de baixa atividade
degradadora, o que permitiu que os fósseis ali formados apresentassem-se
em um incrível estado de conservação, com tecidos moles muito bem
preservados, bem como boa parte da organização tridimensional dos
tecidos dos organismos que ali pereceram:
“Os tecidos moles são preservados como películas de argila e são, por vezes, incrivelmente coloridos – vermelhos, roxos, amarelos -, devido à adição de quantidades variáveis de óxido de ferro. Mas por que essa preservação magnífica? A configuração sedimentar da biota de Chengjiang parece ser um mar raso. Os sedimentos são essencialmente compostos por grãos finos – lama e siltito -, e por isso não havia marulho ou atividade das correntes. Os animais que viviam no fundo, e aqueles nadavam acima, devem ter morrido, e suas carapaças, acumuladas sem pertubação. Devido as mudanças de temperatura sazonais e à estagnação do ambiente, é provável que as águas do fundo tenham ficado anóxicas em determinados períodos, o que teria afastado os seres detritívoros e acelerado a réplica de músculos e outros tecidos modelos por meio de bactérias e materiais argilosos.” (p 69)
Nestes
langestätten do período cambriano, podem ser encontradas impressões de
peles, intestinos, olhos, brânquias e músculos segmentados que permitem
uma análise muito mais refinada e o diagnóstico de algumas estruturas
essenciais para identificarmos certos grupos e classificar adequadamente
os espécimens ali encontrados.
Algumas
pistas sobre como surgiram os primeiros esqueletos podem ser
encontradas nos artrópodes de Chengjiang. Os trilobitas destes depósitos
fossilíferos, bem como seus parentes encontrados mais tarde, todos
possuíam esqueletos de carbonato de cálcio, prontamente fossilizáveis,
porém, mais de 90 por cento das espécies restantes dos artrópodes de
exibem esqueletos muito mais moles que não tinham um componente
mineralizado. Estes esqueletos eram constituídos da já mencionada
proteína quitina que hoje encontramos nos exoesqueletos dos insetos, por
exemplo. Se não fosse por sítios como os de Chengjiang, alguns desses
artrópodes com esqueletos não-mineralizadas seria conhecidos
apenas fugazmente e de maneira muito incompleta. Um exemplo da
importância destes sítios para a compreensão de como se deu o processo
de evolução da esqueletização, é o famoso Anomalocaris que ficou mais conhecido
a partir das descrições da fauna de Burgess Shale. Este animal variava
de 60 centímetros de comprimento até surpreendentes 2 metros, formado
por vários segmentos corporais, e uma região de cabeça e cauda.
Os
cientistas acreditam que ele nadasse agitando os grandes lobos
flexíveis ao longo das regiões laterais do seu corpo, e capturava suas
presas por meio das suas grandes e curvos apendices flexíveis
encouraçados surgiam como barbilhões adornados com ferrões farpados,
através dos quais traziam a presa para sua boca circular que era rodeada
por surpreendentes que se pareciam um anel de abacaxi gigante, mas que
deveria ser formada por placas que deslizavam umas sobre as outras, e
que abriam e fechavam, como o diafragma em uma antiga câmera moderna.
Acontece que se não fosse pelos langestätten do período cambriano, só
conheceríamos os Anomalocarispelos
restos fossilizados de suas bocas circulares e teríamos uma enorme
dificuldade de interpretá-las corretamente, como parte de um artrópode
predador muito maior e impressionante. O fóssil Peytoia é agora considerado a boca do Anomalocaris, enquanto Laggania é o seu corpo, e o que foi batizado originalmente como Anomalocaris é
apenas o seu apêndice de alimentação que estendia-se da parte de baixo
da cabeça e com o qual provavelmente capturava suas presas para daí
serem triturados pela sua boca circular.
É
incontestável que a explosão cambriana tenha gerado e até hoje produza
muitos debates. Também não é possível negar que não compreendamos muitos
dos detalhes relacionados ao como e ao porque dela ter acontecido no
período em que ocorreu, mas nada disso pode ser usado para argumentar
que este evento desafie explicações naturalistas ou que não tenhamos
vários modelos, hipótese e cenários plausíveis, cada um deles contando
com vários níveis de evidências em seu favor. O real significado da
explosão cambriana é ainda muito discutido, mas o tipo de debates que se
dão dentro da comunidade científica em nada tem a ver com as alegações e
argumentos antievolucionistas dos criacionistas tradicionais e do
Design Inteligente.
Alguns
especialistas tendem a interpretá-la como um evento único na história
da vida e outros apenas como um (possivelmente o maior) entre várias
explosões de diversidade na história da vida da terra e alguns negam
veementemente sua existência, atribuindo a aparência de uma explosão,
como derivada do potencial de fossilização das biotas e das condições
geológicas associadas a estes eventos, mesmo que esta seja uma tendência
minoritária entre os especialistas. Porém, assumindo que o evento seja
real, a visão mais 'padrão' da 'explosão cambriana' é a de que quase
todos os filos animais teriam aparecido pela primeira vez ali, após
terem evoluídos 'esqueletos' e diversificado-se, representando um
incrível evento de evolução paralela e suscitando a questão:
Por que toda essa diversificação esqueletal teria se dado mais ou menos ao mesmo tempo?
Há
muito tempo os geólogos vêm especulando sobre grandes alterações na
química atmosférica e especialmente dos oceanos que teriam ocorrido
durante o neoproterozóico e que, portanto, teriam precedido a Explosão
Cambriana, deflagrando o processo de evolução paralela dos grupos
esqueletizados. Uma das mais antigas hipóteses desta natureza envolve a
ideia que os níveis de oxigênio, ou outro componente químico essencial a
esqueletização ou para a manutenção de altos níveis metabólicos,
tornarem-se abundantes o suficientes para fazerem alguma diferença e
articulam-se mais ou menos desta maneira, como coloca Benton:
'Talvez os níveis de oxigênio estivessem demasiado baixos para que uma grande quantidade de animais maiores evoluísse, ou a composição química dos oceanos tenha permitido que mais carbonato e fosfato entrassem em circulação e, desta forma, se tornassem disponíveis para que os animais desprotegidos pudessem capturá-los e fabricar esqueletos.” (pg 73)
Benton
rejeita essas ideias individuais como muito simplistas e argumenta que
no caso do oxigênio, os níveis deste gás já estavam em processo de
aumento há mais de um bilhão de anos, apesar de uma segunda elevação
para cerca de 10% que teria ocorrido por volta de 800 milhões de anos
atrás.
“É, francamente, difícil acreditar em qualquer uma dessas idéias um tanto simplistas. Os níveis de oxigênio já vinham aumentando durante o Pré-Cambriano e não está claro se um limiar importante foi cruzado exatamente no início do Cambriano. Além disso, é inportante aclarar que os animais relativamente grandes de Ediacara haviam existido, embora sem esqueletos, cerca de 50 milhões de anos antes. Além disso, a idéia de que a mineralogia dos oceanos mudou e que isso desencadeou, a aquisição de esqueletos entre grupos diversos, todos ao mesmo tempo, também é certamente demasiado mecanicista - como se os organismos esperassem a aparição de um mineral, e, em seguida, as várias linhagens evolutivas incorporassem em seus corpos de forma independente.”(p 73)
O
problema maior, entretanto, não é que estas ideias sejam absurdas ou
completamente irrelevantes para a nossa compreensão da Explosão
Cambriana, muito pelo contrário. Elas são provavelmente partes do
quebra-cabeça e desta forma devem fazer parte de uma explicação mais
ampla e completa. Porém, essas ideias parecem mais elementos
possibilitadoras ou condutivas, mas do que propriamente deflagradoras do
processo. Por isso, é mais sensato esperar que uma combinação de causas
e eventos prévios e concomitantes a 'Explosão Cambriana' estejam
envolvidos na gênese e desenvolvimento deste processo de evolução
paralela da fauna animal esqueletizada.
As
observações de Benton são importantes também por que este paralelismo e
imediatismo não é exatamente o que se vê ao examinarmos o registro
fóssil cambriano que indicam que a 'explosão' foi na realidade
prolongada no tempo, sendo mais progressiva e ordenada do muitos
imaginam, sugerindo um componente ecológico mais ativo, geralmente, tido
pelos especialistas como tendo sido alguma forma de corrida
armamentistas coevolutiva.
Em detalhe, os fósseis mostram uma Explosão Cambriana um tanto prolongada, de pelo menos 10 milhões de anos - um instante geológico, mas muito tempo para viver. O mais provável é que a aquisição sequencial dos esqueletos tenha sido parte da chamada 'corrida armamentista' . Se um grupo desenvolveu um esqueleto – fosse esse baseado em quitina ou mineralizado por carbonato ou fosfato-, outros podem ter precisado seguir o exemplo. Se um grupo de presa se torna blindado, os predadores terão que aprender a lidar com as novas defesas ou morrerão. Uma maneira de perfurar armadura é ter apêndices blindados. Da mesma maneira, o surgimento de formas predatórias como trilobitas e o monstro Anomalocaris exerceria uma pressão evolutiva bastante direta em todos os outros organismos da época para se tornarem blindado ou morrerem.
Charles R. Marshal,
da Universidade da California, em uma revisão de 2006, enfatiza que
para compreendermos este evento complexo e um tanto prolongado no tempo,
são necessárias ,uma variedade de explicações 'extrínsecas' - incluindo
as de natureza ambiental abiótica - envolvendo modificações
geológicas, atmosféricas, e mesmo bióticas - e intrínsecas que
englobariam a evolução da organização genômica e dos mecanismos e
restrições genético-desenvolmentais a eles associados, bem como outras
de natureza ecológica, como as que dependem de corridas armamentistas
entre predadores e presas e mesmo competição inter-específica, que se
dariam de maneira concomitante a 'explosão' em si.
Para
Marshal, o aumento da disparidade que ele associa a origem do filos e
de grupos taxonômicos mais amplos como classes e ordens, e da
diversidade, associada a origem de gêneros, seriam melhor compreendidas
como resultantes da interação do sistema genético-desenvolvimental
combinatório dos Bilateria e do aumento do número do de necessidades e
demandas, por vezes conflitantes, que os primeiros bilatérios teriam se
deparado com crescente aumento da complexidade das interações
ecológicas, no que ele chamou de 'princípio da frustração'.
O
início da explosão entretanto seria fortemente restringido pela
evolução do meio ambiente, enquanto que a sua duração parece ser
controlada principalmente pelas taxas de inovação do desenvolvimento; já
a singularidade da 'explosão' poderia ter sido devida tanto as
limitações desenvolvimentais intrínsecas a sobreposição de sistemas de
controle genéticos que estabilizaram e canalizaram as formas, como por
causa da saturação do 'ecoespaço', ou ainda, mais abstratamente falando,
simplesmente, por que haveriam se esgotado as morfologias
ecologicamente viáveis que poderiam ser produzidas pelos sistema
genético-desenvolvimentais nascentes dos organismos bilaterais.
Benton,
ao aproximar-se do final do capitulo sobre a Explosão Cambriana, resume
outra área de controvérsia relativa a este evento e que relaciona-se a
ideia defendida por Stephen J. Gould, em seu livro 'Vida Maravilhosa',
1989, em que argumenta que o Cambriano teria sido um momento único.
Segundo Gould cada espécie de Burgess Shale seria tão surpreendentemente
diferente de outras formas que o cambriano teria sido um período de
'irrestrita' evolução de alto nível de planos corporais fundamentais.
Gould e outros cientistas na época alegavam que os planos corporais
básicos dos artrópodes, durante o Cambriano , teriam sido maiores do que
os de outros períodos posteriores. Alguns pesquisadores sugeririam que
existiriam perto de 100 filos cada um exibindo padrões de organização
morfológica particulares e que denotariam a disparidade morfológica dos
metazoários, em contrapartida a diversidade revelada pelo número de
espécies e gêneros que envolveriam apenas variações dentro de um mesmo
tema do ponto de vista morfológico. Como explica Benton:
“Gould usou isso para criar uma nova metáfora para a evolução: que de alguma forma, no Cambriano, os artrópodes e outros grupos animais se diversificado de modo tão desenfreado que exploraram ao máximo as possibilidades genéticas. Desde então, a evolução, segundo ele, vem podando este espantoso crescimento da base da árvore evolutiva dos animais. Pelo menos metade da diversidade cambriana se perdido. Esta foi a evolução por explosão e poda.”
Benton,
acrescenta que atualmente a maioria dos pesquisadores rejeitam essa
visão esboçada por Gould, inclusive o próprio em seus escritos
posteriores mais perto do final de sua vida, termina precocemente em
2002, e que, segundo Benton, talvez tenha se dado conta que ele mesmo
havia se empolgado demais com sua própria prosa rebuscada.
Estudos
posteriores como o de Matthew Wills, da Universidade de Bath, mostraram
através da análise quantitativa da disparidade (a variação em forma)
dos artrópodes presentes na fauna de Burgess Shale que esta era
comparável a de faunas mais modernas de artrópodes:
“Se compararmos uma lagosta e uma borboleta, uma aranha e um caranguejo-aranha, um besouro- rinoceronte e um ácaro, as disparidades são tão grandes quanto as observadas no Cambriano, ou mesmo maiores. Esses resultados podem ser generalizados para comparar todo o oceano Cambriano com toda a fauna moderna, ou se concentrar em uma região geográfica de hoje para torná-lo mais comparável com a localidade específica do folhelho de Burgess.”
Um dos problemas com esta questão e que provavelmente levaram Gould e outros cientistas a exagerarem
o impacto da explosão cambriana e seu caráter único é que o próprio
conceito de filo não é tão simples como gostaríamos. Por definição, como
esclarece Derek E. Briggs ao comentar o livro de James Valentine sobre a 'Origem dos Filos',
é que estes seriam grupos de espécies que compartilham um plano
corporal (ou organização) único que não revelaria nenhuma evidência de
relação com outros filos. Como enfatiza Briggs, esta definição é
relativamente fácil de ser aplicada para os animais viventes, para os
quais tal definição foi criada, mas muitas vezes acaba tornando-se
problemática quando passamos a analisar grupos de animais extintos:
“Os filos originaram-se centenas de milhões de anos atrás, e extinção eliminou as formas intermediárias, deixando diferenças significativas entre os filos remanescentes. Não há qualquer dificuldade, por exemplo, de distinguir entre um artrópode (digamos, uma aranha), um equinodermo (uma estrela do mar, por exemplo) e uma cordado (tal como o chefe do seu departamento). Os fósseis, entretanto, particularmente aqueles da Era Paleozóica (de 543 para 251 milhões de anos atrás), podem ser mais difícil de lidar. Sua morfologia pode ser pouco familiar, e há o problema que a informação sobre os tecidos moles geralmente foi perdida por causa da decomposição e não foi preservada.” [“Decoding the Cambrian Radiation” American Scientist Volume 93 | Number 3 | May-June, 2005]
O problema pode ser melhor percebido ao analisarmos perguntas bem simples, proposta por Briggs:
Ao
nos deparamos com os primeiros membros de uma linhagem que ainda não
adquiriram as características distintivas e usadas para o diagnóstico
dos planos de corpo que definem os filos, como modernamente os
entendemos, como nós os classificaríamos? A qual filo essas primeiras
linhagens pertenceriam?
De
acordo com Briggs, a cladística - a principal abordagem de inferência
das relações entre grupos taxonômicos e que é baseada na análise de
características homólogas compartilhadas -, permite que uma ênfase seja
colocada sobre os membros vivos de um filo, estabelecendo os chamados
"grupos copa" (“crown groups”) que são formados pelo último ancestral
comum de todos os membros vivos do filo e todos os descendentes daquele
ancestral, pode ser distinguido dos "grupos tronco" (“stem groups”) que é
formado pelas demais espécies e linhagens do clado, uma série de
organismos extintos que estariam "abaixo" do “grupo copa”, mais próximos
à base do grupo como um todo:
“Os dados moleculares estão disponíveis para determinar as relações entre os “grupos copas”, mas é claro que nenhum dado deste tipo jamais existirá para o tronco, o que é uma pena, porque, como Valentine salienta, 'Os taxons-tronco devem fornecer mais evidências das características ancestrais de um filo do que os taxons-copa.'” [“Decoding the Cambrian Radiation” American Scientist Volume 93 | Number 3 | May-June, 2005]
Como
explica Briggs, os taxons-tronco podem ser eventualmente alocados a um
filo, uma vez que evoluíam as características diagnosticas, além de ser
possível usar as informações baseadas nos fósseis para estimar as datas
do aparecimento dos filos ao qual forma alocados. Na realidade, essa
abordagem - que associa filogenias baseadas em dados moleculares dos
representantes vivos de um grupo taxonômico, a hipótese do relógio
molecular e informações do registro fóssil para calibrar o relógio
molecular com os tempos mínimos de divergência - tem sido usada para
estimar a data da real origem dos animais e que precedeu a explosão
cambriana e que discutiremos mais tarde [Veja a discussão de Nick Matzke
no blog Panda's Thumb sobre esta questão e o artigo por ele comentado, além da resposta do 'Pergunte ao Evolucionismo' sobre a origem dos filos].
Desta
maneira, o excesso de filos, sugerido em algumas análises iniciais,
poderia ser apenas um artefato da confusão causada pelas várias
linhagens de grupos tronco de filos modernos, 'pegos' em um momento onde
as características que usamos hoje para distinguir e classificar os
filos ainda não haviam surgido ou pelo menos se cristalizado na forma
como estão hoje.
No
entanto, mesmo que a perspectiva inicial de Gould tenha sido descartada
em sua forma mais extrema, existem ainda certa controvérsia sobre as
relações entre diversidade e disparidade. Muitos paleontólogos ainda
acreditam que a disparidade chegou perto de um máximo bem no começo do
cambriano, sendo apenas a diversidade que demoraria mais a aproximar-se
de seu máximo. Na figura abaixo estão resumidas três das possíveis
formas que as relações entre diversidade e disparidade podem ter
assumido durante o fanerozóico.
Benton,
no final do capítulo nos apresenta uma questão, lembrando aquela
parcela de cientistas que colocou em dúvida a própria realidade da
'explosão cambriana' e que sugeriram que a grande radiação era apenas
aparente ou que a explosão fosse, na realidade, precedia por um logo
processo de
evolução e diversificação, neoproterozóico adentro, e que se tornariam
evidentes apenas no cambriano. Estas sugestões já tinham se prenunciado
por descobertas anteriores controversas de fósseis supostamente de
animais bem mais antigos que as faunas cambrianas e ediacaranas e mesmo
de fósseis de rastros e de túneis. Porém, foi fortalecida pela
utilização de novas evidências moleculares, publicadas em 1996 por Greg Wraye
colegas, da Duke University, que sugeriram que os animais tinham se
diversificado cerca de bilhão e 200 milhões de anos atrás, portanto mais
de 600 milhões de anos antes do cambriano.
Tomada
em seu valor de face, esta nova evidência implicaria que o registro
fóssil de animais do período pré-cambriano era muito mais deficiente do
que se supunha originalmente, estendendo a explosão cambriana para trás
no tempo e como alguns sugeriram na época simplesmente a desfazendo por
completo.
De acordo com o já citado Briggs e seus colegas, Richard Fortey e o também já citado M.A. Wills,
é muitas vezes assumido que a origem e diferenciação dos principais
clados teriam que ocorrer concomitantemente com a "explosão" da
evidência fóssil para diferentes morfologias, o que chamamos de
'disparidade' que teria ocorrido na base do Cambriano. Os autores
sugeriram então que este não seria o caso, e argumentam que isto seria
corroborado por duas linhgas de evidências:
As análises da diferenciação biogeográfica e morfológica entre os primeiros trilobitas, que revelaria segundo eles a incompletude no registro fóssil do início do Cambriano, além do fato que, segundo os autores, evidências similares que poderiam ser reunidas no registro fóssil para outros grandes grupos; Análises filogenéticas, como as baseadas em estudos como o já mencionado de Gray, que mostrariam que haveria grande a probabilidade de terem existido linhagens 'fantasma'*** que se estenderiam para o Pré-cambriano.
Segundo
estes mesmos pesquisadores, os eventos importantes na geração dos
clados teriam ocorrido muito antes da "explosão cambriana", que foi
apenas quando os grupos surgidos anteriormente se tornaram evidentes no
registro fóssil. Assim, os autores defendem que alterações filogenéticas
importantes provavelmente ocorreram nas linhagens de animais quando
estes tinham pequenos tamanhos; o que poderia ser corroborado pelo fato
que os taxons irmãos dos principais grupos são formados por linhagens de
pequenos animais. A proposta é que ao dissociarmos a cladogênese, a
origem das linhagens, da "explosão" cambriana em si, removeriamos a
necessidade de invocarmos mecanismos evolutivos desconhecidos na base do
Fanerozóico [2].
Uma
extensão desse argumento que já foi comentada em um post anterior sobre
o mesmo livro de Benton, deu origem a hipótese do 'pavio filogenético'
(Veja “O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.” )
que tratava a radiação cambriana como uma explosão antecipada pela
queima lenta de um 'pavio' bem mais longo e pouco vísivel em que eventos
de cladogênese e diversificação de linhagens viriam já ocorrendo há
centenas de bilhões de anos, mas como as populações permaneciam pequenas
e as criaturas representante dessas linhagens mantinham tamanhos
diminutos e possivelmente eram menos esqueletizadas, tendo seus corpos
pouco duros e mineralizados, teriam escapado a fossilização. Embora,
como enfatiza Benton, possa aceitar-se como plausível e mesmo provável a
existência de um período mais longo de queima do estopim filogenético
antecedendo o cambriano e mesmo o ediacarano, fica muito difícil aceitar
que isso tenha ocorrido por mais de algumas dezenas de milhões de anos
que dirá por mais de meio bilhão [2, 3].
Este
impasse na última década tem começado a ser resolvido aparentemente com
o lado vitorioso sendo o das estimativas baseadas em dados fósseis, uma
vez que amostragens de genes e táxons mais amplas e a utilização de
métodos mais modernos, em que as taxas de evolução dos relógios
moleculares podem ser relaxadas e ajustadas para corresponder melhor as
das diferenças linhagens, parecem estar se reconciliando, aproximando-se
uma das outras, apesar de alguns autores ainda insistirem que as
discrepâncias são mais profundas do que maioria dos paleontólogos e
neontólogos gostariam de aceitar, principalmente por que mesmo os novos
métodos com relógios relaxados e abordagens bayesianas dependem de
certas suposições até certo ponto questionáveis:
“O fim do debate teórico sobre o "o pavio filogenético' foi precipitado por estudos mais recentes, realizados por Kevin Peterson e outros pesquisadores da Dartmouth University. Esses estudos usaram as nova evidência molecular para mostrar que a data estimada para a origem dos metazoários era realmente 650-600 milhões de anos atrás, mais velho do que o primeiro fóssil, mas não muito mais antigas que as enigmáticas faunas Ediacaranas, por exemplo. As primeiras análises enfrentaram uma variedade de problemas com os genes e os métodos de cálculo. O principal problema foi, entretanto, que todas as datas foram inferidas com base datas dos o início da peixes e outros vertebrados. O que os analistas anteriores não sabiam é que o relógio molecular dos vertebrados é um pouco mais lentamente do que dos outros filos de metazoários. Assim, inferindo com um relógio lento, mas pressupondo um ritmo rápido, a estimativa aumenta demasiado; na verdade, isso praticamente a duplica, de 650 a 600 milhões de anos para 1,2 bilhão” (pg 77)[3]
Por fim,
embora hoje pareçam que as ideias originais de Gould realmente fossem
exageradas e muitos dos supostos filos extintos deveriam ser mesmo
membros tronco ainda em processo de aquisição das características
diagnósticos dos filos moderno, existem ainda questões pertinentes sobre
a velocidade e magnitude do aumento da disparidade. Muitos
especialistas têm defendido que a
disparidade aumentou muito rapidamente, chegando perto de seu máximo
durante o cambriano e mesmo que não tenha decrescido como imaginava
Gould não sofreu grandes aumentos posteriormente, o que parece ter
havido com a biodiversidade se contarmos o número de gêneros e espécies
que seriam variações dentro de um mesmo tema morfológico, após as
linhagens terem evoluído as características que as tornam grupos copa,
incluindo os últimos ancestrais e todos seus descendentes. Ao lado estão
três perspectivas para esta relação entre diversidade e disparidade com
duas delas sendo menos prováveis de acordo com os dados.
Note que
nos três casos, a diversidade mostrada em termos da densidade dos ramos
aumenta com o tempo, mas a disparidade mostra padrões bem distintos. A
primeira, de cima para baixo, mostrando o padrão sugerido por Gould em
que a disparidade teria alcançado rapidamente o seu máximo ainda no
cambriano e decrescido ainda, como parte do processo contingente de
evolução; a segunda denota a visão que tem sido defendida por vários
cientistas e como a anterior sugere que a disparidade alcançou seu auge
rapidamente no cambriano, mas ao contrário da perspectiva anterior,
manteve-se mais ou menos estável até os dias de hoje; e, por fim, a
terceira, representando a visão que disparidade e diversidade
aumentariam juntas e de maneira mais gradual.
Todas também assumem que a 'explosão cambriana' não foi tão prolongada no tempo como sugere a hipótese do 'pavio filogenético'
[3] de queima lenta, sugerindo um pavio mais curto e de queima mais
rápida ainda que não tão excepcional como alguns tendem a pensar, sendo,
possivelmente, a interpretação mais comum da radiação cambriana que
deve ter tido seu real início próximo de 650 ou 700 milhões de anos
atrás, o que ainda é bem incerto, entretanto.
Este
padrão de rápido aumento da disparidade precisa ser compreendido em um
contexto apropriado, mais fundamental. Muitos cientistas sugerem que
este fenômeno pode ser explicado ao encararmos o cambriano como um
período de 'experimentação' genético-desenvolvimental em que as espécies
ali existentes (algumas das quais dariam origem aos filos que hoje
conhecemos, enquanto outras formas mais basais se extinguiram) não
possuíam o nível de controle e canalização genética do desenvolvimento
que vemos hoje em dia [sobre canalização veja esta resposta de nosso tumblr].
Em artigo anterior ("É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I"),
chegamos a abordar algumas dessas ideias. Entre elas estão as que vem
sendo defendidas por biólogos do desenvolvimento, como Stuart Newman, e
que seguem a tradição 'estruturalista' de pesquisa científica em
biologia. Esta abordagem enfatiza os processos e mecanismos físicos e
químicos que estão em jogo nas interações entre moléculas, células e
tecidos, bem como dá grande importância às relações geométricas que vão
de modificando ao longo do desenvolvimento embriológico e do crescimento
de organismos multicelulares. Estes processos mudam as relações entre
os sistemas físicos e químicos que compõem os organismos vivos ao mudar
suas distâncias e arranjos espaciais relativos, interferindo com a
dinâmica das forças mecânicas envolvidas na interação entre células e
tecidos em movimento e proliferação, assim como dos fluxos de moléculas
especialmente através de processos como a difusão. Os mecanismos de
reação e difusão propostos por Turing e desdobramentos mais modernos são
exemplos do tipo de mecanismos que estes pesqusadores investigam.
Assim, estes autores encaram as contribuições 'genéticas' especialmente
aquelas associadas a sequência específica dos genes e ao padrão de
expressão de seus produtos, neste contexto mais amplo, ou seja, como
responsáveis pelo controle dos parâmetros dos processos morfogenéticos.
A ideia
em questão é bem simples e pode ser resumida pela proposta que os
organismos multicelulares mais primitivos, durante o pré-cambriano e
provavelmente no comecinho do cambriano, ainda eram mais dependentes
desses processos, que Stuart Newman chama de 'genéricos', e, portanto,
mais flexíveis e dependentes dos ambientes em que os organismos estavam
inseridos. Segundo Newman e outros ainda não haveria toda a
'canalização' genético-desenvolvimental, ou seja, o controle fino dos
processos de desenvolvimento por meio de genes e vias bioquímicas
específicas (mecanismos 'genéticos') que evoluiriam durante o cambriano,
estabilizando esses processos e mecanismos, durante a 'explosão'
cambriana, tornando os fenótipos mais estáveis e mais fixos, que quando
se estabeleceram teria impedido que a disparidade crescesse muito mais.
Esta,
porém, não é a única ideia que pode explicar este rápido aumento da
disparidade em um período tão curto, mas deixaremos estas outras
explicações e hipóteses para o próximo artigo que deverá concentrar-se
nos mecanismos específicos que tem sido propostos para explicar a
'explosão cambriana'. Assim, no próximo artigo, vou me concentrar
especificamente na revisão de Charles R. Marshal que resumiu muito bem
as discussões sobre os processos e mecanismos causais associados a
radiação cambriana, deixando bem claro o tipo de pluralismo que
precisamos ter em mente para explicar este impressionante evento de
maneira adequada e testável.
________________________________________________
I - As interpretações de que tipos de animais compunham a fauna de Ediacara
ainda é outro ponto de intensas discussões, com alguns autores
acreditando que tratavam-se de animais diferentes dos encontrados no
Cambriano e, portanto, nas faunas modernas, que está por trás da ideia
de 'Vendobionta', comentada por Benton, e defendida por Dolf Sellacher, e
mesmo um autor sugerindo que tratavam-se não de animais mas sim de
fungos. Porém, a maioria dos cientistas acreditam que os organismos de
Ediacara eram em sua maioria animais dipobásticos (com dois folhetos
embrionários) aparentados aos cnidários modernos, talvez grupos basais
dos mesmos, e que alguns deles seriam animais tripoblásticos (com três
folhetos embrionários), inclusive como simetria bilateral que
provavelmente relacionavam-se de algum modo com as faunas posteriores.
II - Existem outros fósseis mais controversos como os embriões putativos encontrados na fauna de Doushantuo,
na China, que apresentariam padrões de clivagem típicos de animais
dipoblásticos, mas que mais recentemente foram sugeridos como sendo
bactérias sulfurosas gigantes e não embriões animais e nem ao menos
eucariontes unicelulares coloniais. Estudos tafonômicos experimentais (i.e.
sobre os processos de fosssilização em si), entretanto, feitos mais
recentemente não apóiam esta interpretação, sugerindo que estes fósseis
seriam certamente de eucariontes e não de bactérias que segundo os
pesquisadores não suportariam o processo, colapsando as estruturas em
equetsão antes que pudessem ser preservadas, processo qu epor sinal é
tem o envolvido biofilmes de origem bacteriana, talvez intermediada
pelas bactérias sulfurosas.
- Chen JY, Bottjer DJ, Li G, Hadfield MG, Gao F, Cameron AR, Zhang CY, Xian DC, Tafforeau P, Liao X, Yin ZJ. Complex embryos displaying bilaterian charactersfrom Precambrian Doushantuo phosphate deposits, Weng'an, Guizhou, China. ProcNatl Acad Sci U S A. 2009 Nov 10;106(45):19056-60. Epub 2009 Oct 26. PubMed PMID:19858483; PubMed Central PMCID: PMC2776410. [PDF]
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- Bailey JV, Joye SB, Kalanetra KM, Flood BE, Corsetti FA. Evidence of giantsulphur bacteria in Neoproterozoic phosphorites. Nature. 2007 Jan 11;445(7124):198-201. Epub 2006 Dec 20. PubMed PMID: 17183268.
- Cunningham JA, Thomas CW, Bengtson S, Marone F, Stampanoni M, Turner FR,Bailey JV, Raff RA, Raff EC, Donoghue PC. Experimental taphonomy of giant sulphur bacteria: implications for the interpretation of the embryo-like EdiacaranDoushantuo fossils. Proc Biol Sci. 2012 May 7;279(1734):1857-64. Epub 2011 Dec 7. PubMed PMID: 22158954; PubMed Central PMCID: PMC3297454.
- Raff EC, Schollaert KL, Nelson DE, Donoghue PC, Thomas CW, Turner FR, Stein BD, Dong X, Bengtson S, Huldtgren T, Stampanoni M, Chongyu Y, Raff RA. Embryo fossilization is a biological process mediated by microbial biofilms. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Dec 9;105(49):19360-5. Epub 2008 Dec 1. PubMed PMID: 19047625; PubMed Central PMCID: PMC2614766.
- Yin L, Zhu M, Knoll AH, Yuan X, Zhang J, Hu J. Doushantuo embryos preserved inside diapause egg cysts. Nature. 2007 Apr 5;446(7136):661-3. PubMed PMID:17410174.
Outros
estuos identificaram outros fósseis semelhantes a embriões mais
diversificados e que indicam já certo nível de separação dos grupos
animais no mesmo depósito fossilífero, reforçando a ideia que estas
estrituras sejam mesmo restos fossilizados de embriões animais
dipoblásticos. Ainda mais controverso é um suposto animal tripoblástico
de simetria bilateral que dataria de 600 milhões de anos atrás que foi
batizado de Vernanimalcula guizhouena,
mas neste caso o status deste suposto fóssil é ainda mais questionado,
com muitos pesquisadores sugerindo que seja apenas um artefato
geoquímico e não um fóssil de verdade.
- Bottjer DJ. The early evolution of animals. Sci Am. 2005 Aug;293(2):42-7. PubMed PMID: 16053136.
- Chen, J. Y., D. J. Bottjer, P. Oliveri, S. Q. Dornbos, F. Gao, S. Ruffins, H. Chi, C. W. Li, and E. H. Davidson. 2004. Small bilaterian fossils from 40 to 55 million years before the cambrian. Science 305:218-22. doi: 10.1126/science.1099213
- Bengtson, S.; Budd, G. (2004). "Comment on ‘‘small bilaterian fossils from 40 to 55 million years .... Science 306 (5700): 1291a. doi:10.1126/science.1101338.
- Chen, Jun Yuan, Paola Oliveri, Eric Davidson and David J. Bottjer. 2004. Response to Comment on "Small Bilaterian Fossils from 40 to 55 Million Years Before the Cambrian".Science 19 November 2004: Vol. 306 no. 5700 p. 1291 doi: 10.1126/science.1102328
III- Este
é um outro erro que encontra-se na tradução da LP&M, os
'hiolitelmintideos', cujos tubos fosfatizados abertos nas extremidades
caracterizam parte da fauna 'small shelly', são traduzidos
como e confundidos com os 'hiolitas' com suas conchas carbonatadas que
aparecem posteriormente no período cambriano e que devem ter relação com
os moluscos.
__________________________________
Referências:
- Benton, M.J. A História da Vida - Tradução de Janaína Marcoantonio - Porto Alegre: LP&M Pocket, 2012. 192 pg
- Benton, M.J. The history of life: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008. 170 pp.
Literatura Recomendada
- Briggs, DE Decoding the Cambrian Radiation [Book Review - On the Origin of Phyla. James W. Valentine. xxiv + 614 pp. University of Chicago Press, 2004. ] American Scientist May-June 2005, Volume 93, Number 3.
- Fortey RA, Briggs DEG, Wills MA. The Cambrian evolutionary 'explosion': decoupling cladogenesis from morphological disparity. Biological Journal of the Linnean Society. 1996 Jan;57:13-33.
- Briggs DEG, Fortey RA, Wills MA. Morphological Disparity in the Cambrian. Science. 1992 Jun;256(5064):1670-1673.
- Marshall CR. Explaining the 'Cambrian Eexplosion' of animals. Annual Review of Earth and Planetary Sciences. 2006;34(1):355-384.
- Cooper A, Fortey R. Evolutionary explosions and the phylogenetic fuse. Trends Ecol Evol. 1998 Apr 1;13(4):151-6. PubMed PMID: 21238236.
- Valentine, J. W. Prelude to the cambrian explosion Annual Review of Earth and Planetary Sciences 2002, 30, 285-306.
Referências adicionais sobre datação do início da divergência dos metazoários, especialmente bilatérios:
- Aris-Brosou S, Yang Z: Bayesian models of episodic evolution support a late pre-cambrian explosive diversification of the Metazoa. Mol Biol Evol 2002, 20:1947-1954. [PDF]
- Ho SYW, Philips MJ, Drummond AJ, Cooper A: Accuracy of rate estimation using relaxed clock models with a critical focus on the early Metazoan radiation. Mol Biol Evol 2007, 22:1355-1363.
- Ayala FJ, Rzhetsky A, Ayala FJ. Origin of the metazoan phyla: molecular clocks confirm paleontological estimates. Proc Natl Acad Sci U S A. 1998 Jan 20;95(2):606-11. PubMed PMID: 9435239; PubMed Central PMCID: PMC18467.
- Blair JE, Hedges SB. Molecular clocks do not support the Cambrian explosion.Mol Biol Evol. 2005 Mar;22(3):387-90. Epub 2004 Nov 10. Erratum in: Mol Biol Evol. 2005 Apr;22(4):1156. PubMed PMID: 15537810. [PDF]
- Bromham L. What can DNA Tell us About the Cambrian Explosion? Integr Comp Biol. 2003 Feb;43(1):148-56. PubMed PMID: 21680419.
- Chernikova D, Motamedi S, Csürös M, Koonin EV, Rogozin IB. A late origin of the extant eukaryotic diversity: divergence time estimates using rare genomic changes. Biol Direct. 2011 May 19;6:26. PubMed PMID: 21595937; PubMed Central PMCID: PMC3125394. [PDF]
- Douzery EJ, Snell EA, Bapteste E, Delsuc F, Philippe H. The timing ofeukaryotic evolution: does a relaxed molecular clock reconcile proteins andfossils? Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Oct 26;101(43):15386-91. Epub 2004 Oct 19. PubMed PMID: 15494441; PubMed Central PMCID: PMC524432. [PDF]
- Peterson KJ, Lyons JB, Nowak KS, Takacs CM, Wargo MJ, McPeek MA. Estimating metazoan divergence times with a molecular clock. Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Apr 27;101(17):6536-41. Epub 2004 Apr 14. PubMed PMID: 15084738; PubMed Central PMCID: PMC404080. [PDF]
- Welch JJ, Fontanillas E, Bromham L. Molecular dates for the "cambrian explosion": the influence of prior assumptions. Syst Biol. 2005 Aug;54(4):672-8. PubMed PMID: 16126662.
Créditos das Figuras:
ALAN SIRULNIKOFF/SCIENCE PHOTO LIBRARY - Burgess Shale
GARY BROWN/SCIENCE PHOTO LIBRARY - Stephen Gould, US palaeontologist
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:OxygenLevel-1000ma.svg Oxygen Levels
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Phanerozoic_Biodiversity.png
GARY BROWN/SCIENCE PHOTO LIBRARY - Stephen Gould, US palaeontologist
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:OxygenLevel-1000ma.svg Oxygen Levels
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Phanerozoic_Biodiversity.png
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Trilobite_sections-en.svg
NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY
ALAN SIRULNIKOFF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
RICHARD BIZLEY/SCIENCE PHOTO LIBRARY
NATURAL HISTORY MUSEUM, LONDON/SCIENCE PHOTO LIBRARY
ALAN SIRULNIKOFF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
RICHARD BIZLEY/SCIENCE PHOTO LIBRARY
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