Campo magnético primitivo teria permitido vida na Terra
Estrutura foi fundamental para preservar a atmosfera do planeta e evitar a destruição de moléculas biológicas
RICARDO ZORZETTO |
Edição Online 14:38 16 de março de 2016
Consulte um pesquisador que investiga a origem da vida na Terra e provavelmente ouvirá que duas condições foram necessárias para que ela surgisse: a existência de água líquida e de uma atmosfera capaz de reter um pouco de calor e gerar, a partir de moléculas muito simples, outras mais complexas que formam os seres vivos. Esses fatores, porém, parecem não ter sido suficientes. Um estudo publicado nesta quarta-feira (11/3) na revista Astrophysical Journal Letters sugere que a vida no planeta poderia ter sido fulminada bem no início caso bilhões de anos atrás não existisse um escudo magnético como o que o atualmente protege a Terra das partículas e do excesso de radiação emitidos pelo Sol.
Uma equipe internacional coordenada pelo astrofísico brasileiro José-Dias do Nascimento Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), chegou a essa conclusão depois de investigar ao longo dos últimos anos a atividade da estrela Kappa 1 Ceti, uma espécie de Sol bem jovem. Visível no céu à direita da constelação de Órion, a Kappa 1 Ceti é a décima estrela mais brilhante da constelação da Baleia e, em quase tudo, é semelhante ao Sol: tem praticamente as mesmas massa, temperatura e composição química. Por causa dessas características, os astrofísicos dizem que ela é uma análoga solar (ver Pesquisa FAPESP nº 175). A principal diferença está na idade. A Kappa 1 Ceti tem algo entre 400 milhões e 600 milhões de anos, enquanto o Sol já chegou aos 4,6 bilhões. Como não é possível voltar no tempo, os pesquisadores se baseiam no comportamento das análogas do Sol atrás de pistas de como teria sido o ambiente do Sistema Solar no passado e como pode vir a ser no futuro. Distante apenas 30 anos-luz do Sistema Solar – bem próximo em termos astronômicos –, a estrela chamou a atenção por ter a idade que o Sol teria quando a vida surgiu na Terra, por volta de 3,8 bilhões de anos atrás.
Em colaboração com astrofísicos do Observatório do Pic du Midi, nos Pireneus franceses, Nascimento registrou ao longo de meses o comportamento do campo magnético da estrela, que oscila à medida que ela completa, a cada nove dias, uma volta em torno de seu próprio eixo. Nascimento usou essas informações para alimentar um programa de computador que simulou a atividade do campo magnético da Kappa 1 Ceti e calculou a concentração de partículas que ela lança para o espaço. Os resultados mostraram que o campo magnético da estrela é, em média, 50 vezes mais intenso que o do Sol hoje. Também revelaram que os ventos que emanam dela são 50 vezes mais vigorosos do que o vento solar atual e jogam no meio interestelar cerca de 1 quatrilhão de toneladas de matéria por ano.
“Um planeta que estivesse tão distante de Kappa 1 Ceti quando a Terra está do Sol seria bombardeado por uma quantidade de radiação e partículas energéticas suficiente para varrer sua atmosfera e destruir moléculas necessárias à vida, como os aminoácidos”, afirma Nascimento, que também é pesquisador-visitante do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian, nos Estados Unidos.
Nascimento, então, simulou o que ocorreria se o hipotético planeta – ainda não se sabe se há planetas orbitando Kappa 1 Ceti – tivesse um campo magnético tão intenso quanto era o da Terra nos primórdios do Sistema Solar. No ano passado o geofísico John Tarduno, da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, conseguiu medir o campo magnético de amostras de zircão com idades variando de 3,3 bilhões a 4,2 bilhões de anos extraídas de uma região no oeste da Austrália e reconstituir o campo magnético terrestre primitivo. Naquele período, quando as primeiras formas de vida provavelmente começaram se formar nos oceanos, o campo magnético do planeta era semelhante ao atual ou apenas um pouco mais fraco.
Nas novas simulações, Nascimento constatou que aquele campo magnético já seria suficiente para proteger o planeta da fúria de um sol jovem semelhante a Kappa 1 Ceti. Como o vento solar era mais intenso e a quantidade de radiação maior, a chamada magnetopausa – região do espaço em que o campo magnético da Terra forma uma barreira às partículas vindas do Sol – estaria bem mais próxima do planeta. “Hoje a magnetopausa está a cerca de 60 mil quilômetros da Terra, aproximadamente um sexto da distância até a Lua”, explica Nascimento. “No início da existência do Sistema Solar, deve ter ficado a metade ou até um terço dessa distância.” Segundo Nascimento, a radiação vinda do Sol foi importante para a formação das moléculas complexas que deram origem à vida, mas, em excesso, ela poderia ter destruído completamente essas moléculas.
“Naquelas condições, a vida seria extinta em qualquer planeta que estivesse àquela distância do Sol sem a proteção de um campo magnético”, diz o astrofísico. O abrandamento da radiação e do vento solares teria permitido posteriormente a expansão do campo magnético terrestre e a magnetopausa ocupar sua posição atual. “Quem estuda a química da vida terá de passar a levar o efeito do campo magnético em consideração”, conclui Nascimento.
“O trabalho permite ter uma ideia de como era a atividade magnética do Sol quando os primeiros sinais de vida começaram a surgir na Terra”, comenta o astrofísico Jorge Meléndez, da Universidade de São Paulo, que também estuda estrelas semelhantes ao Sol. “A radiação altamente energética naquela época poderia dificultar o surgimento da vida na Terra sem a proteção de um campo magnético.” Enquanto a vida florescia por aqui, o oposto pode ter ocorrido com Marte, planeta que também se encontra na zona considerada habitável do Sistema Solar. “Marte é um caso extremo”, explica Meléndez. O vento solar, especialmente quando o Sol era mais jovem, pode ter varrido a atmosfera marciana porque o planeta não tinha um campo magnético. Além disso, Marte tem uma massa considerada baixa, cerca dez vezes menor que a da Terra, que não foi suficiente para segurar sua atmosfera.
Artigo científico
DO NASCIMENTO JR, JD. et al. Magnetic field and wind of Kappa Ceti: towards the planetary habitability of the young Sun when life arose on Earth. Astrophysical Journal Letters. 11 mar. 2016.
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