Olhar para o alto numa floresta tropical pode ser tão frustrante quanto deslumbrante. As copas das árvores abrigam cores, formas, sons e vidas de todos os tipos. Vidas que ora saltam aos olhos, ora se impõem aos ouvidos, ora se escondem. Em meio ao que as folhas ocultam, na América estão por volta de 130 espécies de macacos, raramente vistos por visitantes curiosos. Macacos-prego se penduram pelas caudas e com elas também manuseiam os insetos e frutos que compõem sua dieta, que incorpora uma ampla gama de petiscos como folhas, flores, pequenos vertebrados e até casca de árvores indigestas como eucalipto ou pinheiro. Esses macacos que vivem em bandos de até 35 indivíduos costumam defender seu território, mas curiosamente admitem nos mesmos galhos exemplares de uma espécie menor, o mico-de-cheiro, com quem disputam os mesmos frutos e insetos. “É como se os micos-de-cheiro fossem filhotes dos macacos-prego”, explica o biólogo da Universidade de São Paulo (USP) Gabriel Marroig. Ele analisou a variedade de macacos que povoam as árvores da América e concluiu que entre as características favorecidas pela seleção natural – como força física e capacidade de se reproduzir – a que mais conta é o tamanho do animal.
Em artigo recente na BMC Evolutionary Biology, Marroig compara as proporções em crânios de macacos-prego, do gênero Cebus, e micos-de-cheiro (Saimiri) ao longo do crescimento. São dois gêneros aparentados com tamanhos bem diferentes, o que os destaca dos outros macacos do Novo Mundo. Crânios são as partes do corpo mais usadas nos estudos de zoologia como fonte de informação, porque as distâncias entre pontos de referência como reentrâncias, orifícios e junções entre ossos permitem caracterizar espécies e comparar animais diferentes. Nas mãos do biólogo ajudam a contar o que aconteceu desde que os macacos chegaram à América, 30 milhões de anos atrás.
A equipe do Laboratório de Evolução de Mamíferos da USP transforma as medidas em imagens tridimensionais dos crânios analisados – uma técnica conhecida como morfometria geométrica. Com o crânio apoiado em uma plataforma, o pesquisador toca nos pontos de referência com algo que se parece com uma caneta metálica que pende de um braço articulado. Os movimentos desse braço, ligado a um computador, são armazenados como distâncias em três dimensões. O computador então gera imagens que lembram cristais lapidados, mas são uma versão simplificada dos crânios medidos. Em seguida, os pesquisadores podem encolher ou inflar os crânios digitais de maneira que o macaco-prego e o mico-de-cheiro fiquem do mesmo tamanho – o primeiro é na realidade duas a três vezes maior do que o segundo. Dessa forma eles podem ignorar as diferenças de tamanho e comparar as proporções entre as medidas e o formato do crânio em animais de várias idades.
As imagens digitais mostram que o mico-de-cheiro nasce com o crânio quase esférico. À medida que cresce, seu crânio se achata como se algo pressionasse o cocuruto para baixo enquanto o focinho se alonga. Marroig mostrou que, ignorando-se as diferenças de tamanho, o crânio de um mico-de-cheiro adulto é muito semelhante ao de um macaco-prego filhote – que passará pelo mesmo processo de achatamento numa direção e alongamento na outra.
Adultos precoces - Esse padrão de diversificação se encaixa na teoria que descreve a evolução, que pode dar origem a novas espécies, como resultado de mudanças nas taxas de desenvolvimento de um organismo. Esse mecanismo evolutivo, conhecido como heterocronia, foi por muito tempo cogitado para explicar como os seres humanos teriam evoluído: é como se o feto do chimpanzé se tornasse adulto sem perder sua aparência infantil. Segundo Marroig, essa hipótese já não é aceita. “A diferenciação da espécie humana é mais complexa, envolveu muitas outras características além de taxas de desenvolvimento”, diz.
Apesar de não ser mais visto como central para diferenciar o homem de seus parentes primatas, o desenvolvimento continua a ser cotado como força evolutiva importante. “Existem evidências de que alterações no desenvolvimento ocorreram em momentos marcantes da história evolutiva de diversos grupos”, conta a bióloga Tiana Kohlsdorf, do campus de Ribeirão Preto da USP. Quando não é possível encontrar embriões para analisar a ação dos genes ao longo do desenvolvimento, Tiana explica que o jeito é analisar as seqüências do DNA dos genes relacionados ao desenvolvimento da característica em questão. Em seu trabalho ela compara, entre lagartos e cobras, genes que atuam na formação das patas.
No caso da diferenciação entre os macacos da América, o alvo das análises genéticas tem sido o hormônio do crescimento. Durante seu doutorado sob orientação de Marroig, Elytânia Menezes decifrou a seqüência do gene que comanda a síntese desse hormônio e encontrou evidências de evolução adaptativa – variações na ação do hormônio do crescimento entre gêneros teriam sido causadas por seleção natural e seriam responsáveis pela diferença de tamanho entre os macacos desses gêneros. Elytânia deve defender seu doutorado no início de 2008 e está preparando o artigo para publicação. Para mais detalhes, portanto, é preciso esperar.
Marroig comparou aspectos relacionados ao desenvolvimento entre todos os 16 gêneros de macacos das Américas. Ele viu que, em relação a seu tamanho, os macacos-prego demoram mais do que seria esperado para chegar à idade reprodutiva, o que lhes dá mais tempo para atingir um tamanho maior. Já os micos-de-cheiro nascem maiores em relação ao tamanho da mãe do que se observa em outros macacos. “Eles nascem cabeçudos, com o cérebro mais desenvolvido do que outras espécies”, conta Marroig. É em parte graças a isso que são desmamados mais depressa do que outros macacos com tamanho parecido.
Essas correlações reforçam a idéia de que foram alterações de tamanho que geraram os diferentes gêneros. O trabalho não permite dizer com segurança como era o ancestral comum aos gêneros Cebus e Saimiri. Marroig acha mais provável, porém, que o macaco-prego seja uma versão crescida do mico-de-cheiro, e não o contrário. É mais do que intuição. O tempo mais longo que o Cebus leva para chegar à maturidade é uma pista. Outra é a árvore genealógica dos macacos deste continente: o ramo onde estão esses dois gêneros abriga somente primatas pequenos.
Fósseis e estudos genéticos contam que há 30 milhões de anos, no período geológico Oligoceno, chegaram ao Novo Mundo os primeiros primatas. “Nessa época”, Marroig explica, “penínsulas ligavam a África à América do Sul”. Não eram pontes completas entre os dois continentes, mas as distâncias eram curtas o suficiente para que os ancestrais dos primatas que hoje vivem aqui pudessem transpô-las de carona em troncos ou outros materiais flutuantes. O mapa do fundo do oceano Atlântico milhões de anos atrás foi elaborado por Felipe Bandoni, aluno de doutorado de Marroig, para o livro South american primates, no prelo pela editora Springer.
Os imigrantes símios, animais com cerca de 1 quilograma (como os micos-de-cheiro, que têm 40 centímetros de altura), encontraram uma terra cheia de possibilidades. “Eles não tinham competidores; os marsupiais eram os únicos mamíferos relativamente arborícolas, mas usavam os recursos de maneira diferente”, conta Marroig. As árvores estavam desimpedidas, com repastos para todos os gostos. Aconteceu então, entre 20 e 16 milhões de anos atrás, o que os evolucionistas chamam de radiação adaptativa explosiva: rapidamente surgiu uma grande variedade de macacos capazes de explorar os mais diversos nichos ecológicos, definidos pelas dietas.
É aí que entra o tamanho como motor evolutivo fundamental, pois é o que permite a especialização alimentar. “Não existe nenhum macaco grande que se alimente de insetos, e nenhum pequeno que sobreviva à base de folhas”, diz Marroig. Isso ocorre porque mamíferos pequenos precisam de nutrientes que possam ser rapidamente transformados em energia, o que obtêm de frutos e insetos. Para sobreviver com uma dieta desse tipo, animais maiores precisariam consumir uma quantidade muito grande de insetos. “Para isso”, explica o biólogo, “eles teriam que se especializar em insetos sociais que podem ser encontrados em grandes densidades, como fazem os tamanduás, ou tornar-se predadores eficazes”. Nenhum macaco sul-americano desenvolveu essas características. Mas comer folhas também não é fácil: são repletas de substâncias que não podem ser digeridas e por isso só podem se alimentar delas animais com intestinos longos, capazes de extrair nutrientes e depurar as toxinas com que as plantas se defendem dos herbívoros.
Micos-de-cheiro partilham árvores e alimento com macacos-prego
Os integrantes dos gêneros Cebus e Saimiri têm dietas semelhantes: sobretudo frutos e insetos. A diferença está na capacidade dos macacos-prego de completar sua dieta com quase qualquer coisa que lhes apareça pela frente, e nas proporções que representam. Insetos são 50% da dieta de Cebus, macacos de 2 a 3 quilogramas, e chegam a 75% do que comem os Saimiri, cujos adultos pesam por volta de 1 quilograma.
Tal diversidade de tamanhos poderia ter surgido por acaso, ou de carona com outras características, como dentes maiores ou caudas mais longas. Mas Marroig mostrou, em artigo publicado em 2004 na revista The American Naturalist, que na maior parte dos macacos americanos foi a seleção natural, e não o acaso, que gerou a diversidade. “Hoje temos ferramentas estatísticas para distinguir sobre qual característica a seleção agiu”, explica o biólogo.
Diz a contagem mais recente que são 129 as espécies de macacos das Américas – com tamanhos que vão dos 100 gramas do mico-leãozinho (Cebuella pygmaea) aos 10 quilos do muriqui (Brachyteles arachnoides e B. Hypoxanthus). Todos eles consomem frutos, uma fonte fácil de açúcares, e adotam estratégias de vida distintas para completar sua dieta com proteínas e vitaminas. O muriqui freqüenta as copas das árvores da Mata Atlântica, onde se refestela com folhas. Mais abaixo vivem os macacos-prego e em seguida os micos-de-cheiro, com suas dietas variadas. No estrato mais próximo ao chão vivem os pequenos sagüis, que pesam por volta de 400 gramas e têm incisivos alongados e estreitos com os quais escavam os troncos das árvores e obtêm seiva. Comem também frutos, insetos e néctar.
Comparadas aos seus parentes americanos, as mais de 150 espécies de macacos do Velho Mundo exibem pouca diversidade em termos de formas, tamanhos e comportamentos. Devem isso, em parte, à sua diversificação mais recente. Embora o Velho Mundo tenha mais espécies que o Novo Mundo, Marroig defende que não é possível comparar números, não só por serem histórias evolutivas separadas. De acordo com ele, as escolas científicas são muito diferentes e resultam em estratégias distintas de classificação dos animais. “No Brasil os pesquisadores descrevem espécies novas com maior facilidade do que no Velho Mundo, onde os especialistas são mais conservadores e tendem a classificar variedades que encontram como subespécies em vez de espécies.”
Rumos evolutivos - Não chega a ser surpreendente que variação em tamanho seja o caminho para a diversificação dos macacos. “Mas ninguém fala nisso”, diz Marroig. É previsível porque a seleção natural age sobre a diversidade genética – se um gene for sempre idêntico, não existe a possibilidade de evolução. E tamanho é uma característica marcada por enorme variabilidade – basta correr os olhos por uma sala cheia de pessoas para ter uma noção de como os tamanhos são diversos. Em artigo publicado em 2005 na revista Evolution, Marroig analisou todos os 16 gêneros de macacos deste continente e mostrou que o tamanho é, no jargão evolutivo, uma via de menor resistência evolutiva. Ou seja, é por esse leito que a evolução tende a correr.
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