segunda-feira, 5 de julho de 2010

Quem matou o golfinho?



Representação artística de um tubarão suspeito do ataque que vitimou o golfinho 'Astadelphis gastaldii'. A tarefa dos detetives-paleontólogos era identificar a espécie do 'assassino' (arte: Giovanni Bianucci).


Alexander Kellner conta como foi desvendado um ‘crime’ ocorrido há quase 4 milhões de anos. Os detetives são paleontólogos que identificaram o responsável pela morte de um golfinho cujos fósseis apresentavam marcas de dentadas.

Por: Alexander Kellner

Publicado em 02/07/2010 | Atualizado em 02/07/2010


Uma descoberta bem curiosa foi publicada em março na revista Palaeontology: fósseis de um golfinho com marcas de dentes. E o melhor: a equipe de Giovanni Bianucci, da Universidade de Pisa, na Itália, acredita não apenas ter descoberto o culpado, mas também a estratégia do ataque. Um verdadeiro mistério à moda de Sherlock Holmes!

A vítima

Examinando a coleção do Museu Regional de História Natural de Torino, Bianucci se deparou com o esqueleto de um golfinho fossilizado. As partes recuperadas foram crânio e mandíbula, quase toda a coluna vertebral e diversas costelas.

Ao contrário do que acontece com a maioria das descobertas paleontológicas, o exemplar não era novo: foi escavado durante a segunda metade do século 19, na localidade de Bagnasco, região de Piemonte, no norte da Itália.


Os fósseis tampouco pertenciam a uma espécie desconhecida, mas sim a um golfinho extinto há aproximadamente 4 milhões de anos – o Astadelphis gastaldii.

O que chamava atenção nesse exemplar eram algumas marcas nos ossos, bem diferentes daquelas resultantes de problemas durante a coleta e preparação ou mesmo decorrentes do processo de fossilização.

O primeiro autor a descrever o exemplar em 1883, Alessandro Portis, já havia notado que o esqueleto tinha sulcos e perfurações. Ele atribuiu essas características à mordida de um tubarão branco, cujos dentes também são encontrados nos depósitos do Piemonte datados do Plioceno. Mas as observações da equipe de Bianucci não condiziam com essa interpretação. Havia algo de errado...

A prova do crime: o esqueleto do golfinho 'Astadelphis gastaldii' com marcas resultantes de um ataque de tubarão. O desenho esquemático abaixo da foto representa o local da dentada (arco pontilhado em azul) e os danos provocados nos ossos da vítima (pontos em vermelho). Imagens: Bianucci et al. / Palaeontology.


O crime

Ao observar cada um dos ossos daquele esqueleto, os cientistas constataram certo padrão nas marcas. Elas não eram aleatórias, mas tinham uma direção preferencial. A mandíbula, várias vértebras e, sobretudo, as costelas exibiam estrias e sulcos que foram interpretadas como tendo sido feitas por dentes.

Os paleontólogos costumam atribuir esse tipo de marca a dois fatores. Elas podem ter sido deixadas após a morte do animal, pela atividade de espécies carniceiras que se alimentaram da carcaça, ou podem ser indicações de que o animal em questão havia sido ‘assassinado’ por algum predador.


Bianucci e colegas já sabiam, com base em estudos anteriores, que marcas deixadas por carniceiros são geralmente pequenas e pouco pronunciadas. Muitas vezes, dentes do animal carniceiro se quebram nessa ação. Ademais, marcas desse tipo de mordida não têm uma orientação preferencial, já que o animal dispôs de tempo para se alimentar à vontade da carcaça.

Tudo isso era bem diferente do que os pesquisadores italianos viram no fóssil do golfinho, que tinha marcas orientadas e profundas. Eles tampouco encontraram qualquer dente associado ao esqueleto. A conclusão foi inevitável: as marcas observadas nos ossos do golfinho eram evidências de um ataque que culminou com a sua morte.

Os suspeitos

O golfinho viveu em um mar que ocupava a região norte da Itália há quatro milhões de anos. Dois tipos de tubarão aparecem no registro fóssil do Plioceno nos depósitos do Piemonte: com os dentes lisos ou serrilhados.

Entre as espécies com dentes serrilhados, estão o famoso tubarão-branco (Carcharodon carcharias), o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvieri), o Hexanchus griseus e o Megaselachus megalodon. Destes, apenas o último está extinto – os demais ainda são encontrados hoje em dia.


Já os tubarões com os dentes lisos são menos diversificados nas rochas do Piemonte. Eles são representados pelas espécies Cosmopolitodus hastalis, Parotodus benedeni e Isurus oxyrinchus – este último é o único a ter sobrevivido até os dias de hoje.

Para identificar o agressor do golfinho, Bianucci e seus colaboradores fizeram testes com diferentes dentes de tubarão comuns nos depósitos do Piemonte em massa de modelar. Embora esse material seja bem diferente da carne e dos ossos do golfinho, o experimento pôde dar uma ideia geral das diferentes morfologias deixadas por dentes de formatos distintos.

Uma comparação dos resultados experimentais com as marcas observadas no golfinho levou Bianucci e seus colaboradores à conclusão de que o tubarão que havia atacado o golfinho não possuía dentes serrilhados, cujas marcas são bem distintas. Com isso, quatro dos sete acusados da morte do Astadelphis foram inocentados.


A equipe descartou também da lista de suspeitos a espécie Parotodus benedeni, pois seus grandes dentes teriam deixado marcas maiores e mais profundas do que as encontradas no fóssil. Menos um.

Com isso, a lista de acusados foi reduzida a duas espécies: Isurus oxyrinchus e Cosmopolitodus hastalis. O I. oxyrinchus é encontrado nos dias de hoje e raramente ataca golfinhos. Por se tratar de um animal de porte relativamente pequeno (atinge no máximo 3 metros de comprimento), talvez não fosse um bom candidato a predador do golfinho em questão.

Agora, o principal suspeito era o Cosmopolitodus hastalis, que podia atingir quase 8 metros de comprimento. Os experimentos com massa de modelar deram força à acusação. Eles mostraram que o animal que atacou e possivelmente matou o golfinho tinha mais de 4 metros – um tamanho compatível com o do Cosmopolitodus. Para Bianucci e colegas, estava identificada a espécie do autor do ataque.

Mas faltava um último detalhe: como ocorreu o ‘delito’?

econstituição do ‘crime’

A partir de características como a posição relativa das marcas de mordidas, os cientistas concluíram que o golfinho foi atacado pelas costas e por baixo. A primeira mordida foi desferida na região ventral do cetáceo, que teve grande parte de sua barriga dilacerada. Em seguida, um novo ataque do tubarão visou as costas do golfinho e deixou marcas nas vértebras da vítima.


Mas o estudo deixou uma dúvida: por que o valente golfinho não foi totalmente engolido pelo tubarão? Não há uma resposta definitiva para essa questão, mas os pesquisadores acreditam outros golfinhos podem ter vindo em defesa do animal mortalmente ferido. Mas trata-se apenas de uma especulação: nunca saberemos ao certo.

O estudo liderado por Bianucci mostra que grandes achados podem ser realizados dentro dos museus, em exemplares já estudados. Às vezes, basta um novo olhar sobre o material para trazer à tona episódios fascinantes como o do golfinho 'assassinado'.

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

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