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Densidade ideal beneficia sociedade |
Durante um trabalho de campo nos anos 1990, Og de Souza precisou fazer uma compra um tanto incomum em São Gotardo, interior de Minas Gerais. Ele entrou às pressas num dos poucos armazéns dessa cidade de 30 mil moradores e pediu mil rolos de papel higiênico. Mas não qualquer um. Precisava de papel sem branqueamento nem perfume, “daquele que ainda traz as letrinhas do jornal com que foi feito”, lembra. O atendente estranhou o pedido, mas Souza preferiu deixar a dúvida no ar. “Se eu explicasse”, diz, “ele não acreditaria”.
De fato é difícil imaginar que o papel teria uso científico: isca para capturar cupins. À custa de muito papel higiênico e um trabalho meticuloso – muitas vezes é preciso analisar a mandíbula ou a forma do tubo digestivo dos insetos para diferenciar uma espécie de outra –, Souza vem ajudando a esclarecer a função dos cupins na reciclagem do elemento químico carbono e os fatores que levam esses insetos devoradores de madeira a escolherem suas fontes de alimento na natureza. “Os cupins são uma espécie-chave para o funcionamento do ecossistema onde vivem e podem gerar mais benefícios do que danos para a agricultura”, afirma Souza, atualmente pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais.
O trabalho de Souza também apresenta uma possível resposta para o chamado dilema de Darwin, um paradoxo com o qual o naturalista inglês deparou no século XIX enquanto preparava sua obra A origem das espécies. Naquele momento era difícil explicar como uma situação aparentemente desvantajosa poderia ser favorecida pela seleção natural. Razão de muitos dos estudos com animais que vivem em sociedades grandes e complexas como as das formigas e das abelhas, esse dilema, no caso das quase 2.800 espécies conhecidas de cupins, pode ser assim definido: qual seria o benefício da vida em sociedade se a maior parte dos indivíduos não se reproduz, uma vez que em cada ninho apenas o rei e a rainha procriam e os operários e os soldados são estéreis?
Em parceria com o físico Octávio Miramontes, da Universidade Nacional Autônoma do México, Souza parece ter encontrado uma resposta: a vida em sociedade, por alguma razão não bem compreendida, aumenta a longevidade dos insetos. Individualmente, os cupins estéreis parecem sair perdendo porque não transmitem diretamente suas características genéticas às gerações futuras. Mas se reproduzem de forma indireta quando ajudam os pais a produzir irmãos férteis, com quem partilham parte do genoma – um ganho que é potencializado quando têm grande longevidade.
No Laboratório de Termitologia da UFV, a equipe de Souza conduziu uma série de experimentos com base na premissa de que existe uma densidade de indivíduos que facilita a interação entre eles e favorece a vida em sociedade. Souza usa o exemplo de um passageiro em um ônibus. Se o ônibus está vazio, o passageiro não tem com quem se comunicar. Com o veículo lotado, a pessoa não consegue interagir com todas as outras e surgem grupos menores e fragmentados de relações. Por fim, na chamada situação ideal, existe uma proporção de passageiros que permite a cada um deles trocar informações com todos os outros. “Nossa suspeita era de que a vida em sociedade, em grupos com densidade adequada, de alguma forma permitiria aos cupins viver mais”, explica Souza, que calcula a densidade ideal dividindo a área que um indivíduo ocupa em determinado local pela área total disponível. No caso dos cupins, essa proporção fica entre 0,12 e 0,2: juntos, todos os cupins ocupam no máximo 20% da área.
Num primeiro experimento o grupo de Minas pôs os cupins em tubos de ensaio sem acesso a alimento nem água. Quando permaneciam isolados (um inseto em cada tubo), os cupins sobreviviam por no máximo 100 horas. Em grupo, cada indivíduo podia viver até 250 horas. Durante os testes os pesquisadores não observaram canibalismo, o que poderia explicar a vida mais longa. “Nessa época, ainda não sabíamos qual era a densidade ideal”, conta. “Ajustamos essa variável e consideramos os cenários de superpopulação de cupins no estudo seguinte, que confirmou as vantagens da densidade adequada [proporção adequada de indivíduos num grupo].”
Em outro teste, os pesquisadores aplicaram uma gota de inseticida em cada cupim e separaram os insetos em três grupos distintos: um com poucos indivíduos; outro com a proporção ideal; e um terceiro superpopuloso. No primeiro e no terceiro grupo, o tempo máximo de vida foi de 38 horas. No cenário de boa sociabilidade, os cupins sobreviveram por 46 horas – oito horas a mais que os outros grupos. A equipe de Souza agora investiga os fatores que influenciam a longevidade. “Há indícios de que o contato social dispare processos enzimáticos que, durante certo tempo, reduzem o potencial tóxico do veneno, neutralizando o efeito do inseticida”, diz. Ele acredita que a influência da sociabilidade ideal seja duradoura e relevante, uma vez que foi observada em situações de altíssimo estresse, como de fome e envenenamento.
Contato natural - Embora não se conheçam técnicas para definir a densidade ótima nos cupinzeiros, Souza argumenta que ela também deve existir na natureza. “Há indícios de que esse padrão de agrupamento ocorre em quase tudo, de robôs a formigas.” O pesquisador da UFV acredita ainda que, nas colônias naturais, a densidade oscile o tempo todo em torno do cenário ótimo.
Em um cupinzeiro, uma rainha põe cerca de 80 mil ovos por dia, quase um ovo por segundo. Nesse cenário, operários que vivam oito horas a mais contribuiriam indiretamente para o sucesso reprodutivo da colônia: eles aliviariam o trabalho da rainha, que nesse tempo poderia produzir outros 30 mil ovos. Ao mesmo tempo, a longevidade é também vantajosa para o operário estéril: quanto mais cupins, maior a chance de surgirem irmãos que viram reis e rainhas e passam adiante os genes dos estéreis, resolvendo o dilema de Darwin.
Desse trabalho também surgem possíveis aplicações práticas, como a definição do momento mais adequado para combater os cupins que infestam os armários de casas e apartamentos. “Se há maior tolerância aos inseticidas em grupos com proporção ideal de indivíduos, o mais eficiente seria aplicar medidas de controle quando a população do ninho está acima ou abaixo dessa densidade”, diz Souza.
Mais recentemente o pesquisador de Viçosa conseguiu responder a outra pergunta que o intrigava desde que começou a estudar cupins em 1985: por que no ambiente natural esses insetos infestam alguns troncos mortos e preservam outros? Em busca da explicação Souza iniciou outro experimento em 2004, num terreno vizinho a sua chácara em Coimbra, a sudeste de Belo Horizonte. Ele e a bióloga Ana Paula Albano Araújo, à época sua aluna de doutorado, espalharam rolos de papel higiênico – celulose pura, o principal carboidrato das plantas e fonte de energia para os cupins – sobre o solo. Em alguns desses rolos registraram a presença de formigas, predadoras naturais dos cupins. O objetivo era verificar se a presença desses insetos ameaçadores influenciaria a busca de comida pelos cupins.
No outono, início da temporada de temperaturas mais amenas, os cupins levaram em média 107 dias para se espalhar pelos rolos maiores e 68 dias para colonizar os menores, quando o papel continha formigas. De modo geral, os cupins ocuparam mais rapidamente os rolos livres de perigo (sem formigas) e avançaram mais avidamente sobre os maiores, dominados em apenas 42 dias, ante 66 para ocupar os menores.
No verão a experiência produziu o mesmo padrão. Os cupins gastaram 352 dias para invadir os rolos menores também povoados por formigas e 224 dias para ocupar os maiores. Sem formigas por perto, os cupins agiram mais rapidamente. Novamente ocuparam os rolos maiores em 140 dias, bem antes de dominar os menores, em 220 dias.
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Formigas são os principais predadores dos cupins |
Na avaliação de Souza, os cupins parecem avaliar a relação entre o custo e o benefício. “A pouca disponibilidade de alimentos não compensa o esforço de colonizar uma área pequena”, explica. E se mostraram atentos aos predadores, preferindo áreas com menor risco.
Prospecção - Os cupins literalmente usam a cabeça para escolher a madeira que consumirão. Eles batem a cabeça contra o bloco de madeira e avaliam as vibrações produzidas, demonstrou Theodore Evans, da Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Austrália (CSIRO), em estudo de 2005 na PNAS. “A cabeça deles funciona como uma espécie de sonar”, explica Souza.
Em outro estudo, conduzido em uma área de Mata Atlântica em Conceição da Barra, no Espírito Santo, Souza e a bióloga Fernanda Sguizzatto de Araújo verificaram que, além de gostar de árvores grandes, os cupins preferem as mortas. De acordo com o trabalho, publicado este ano na Sociobiology, a probabilidade de haver galerias de cupins ultrapassava 50% nas árvores mortas cujo tronco alcançava 40 centímetros de diâmetro ou mais. Esse mesmo percentual de infestação só foi observado em árvores vivas com tronco de diâmetro de pelo menos 80 centímetros. As árvores que já morreram podem ser consumidas por inteiro, enquanto nas vivas os cupins só conseguem atacar a casca. “Mais uma vez a disponibilidade de alimento parece influenciar a escolha”, reforça Souza.
Em um desdobramento desse trabalho, Souza conseguiu explicar com mais detalhes o papel que os cupins desempenham no ciclo do carbono, que entra na composição de gases da atmosfera e da matéria orgânica constituinte de plantas e animais. Depois de mortos, os troncos em decomposição se misturam ao solo formando o húmus, que é digerido por bactérias. É um processo lento – calcula-se que um tronco grande leve entre 50 e 100 anos para ser consumido apenas por esses microrganismos –, que os cupins aceleram. Eles consomem a celulose disponível no solo, digerem-na e em seguida liberam carbono para a atmosfera na forma de gás carbônico (CO2), segundo artigo de 2009 no Bulletin of Entomological Research.
A atuação dos cupins na degradação da celulose pode ser facilmente observada pela cor do solo. Ele é mais claro quando as colônias são eficientes no processamento do húmus e marrom- -escuro nas áreas livres de cupins. Como o húmus contém água e outros nutrientes, além de celulose, é interessante que os cupins não o consumam completamente. Ao mesmo tempo, o processamento pelos cupins permite que o carbono volte às plantas como CO2, conforme explica Souza. Esse equilíbrio é importante para a agricultura. “Os índios Kaiapó sabem muito bem disso e usam pedaços de cupinzeiros para adubar covas de cará e de batata- -doce”, conta o pesquisador.
Mais recentemente ele vem se dedicando a analisar outra característica curiosa das colônias de cupins: a convivência harmônica de muitas espécies diferentes desses insetos. Há registros de mais de 1.500 espécies de insetos que vivem em cupinzeiros. Há ainda sete gêneros diferentes de cupins habitando o mesmo ninho, aparentemente sem conflitos. O segredo do contato pacífico parece ser determinado pelo estômago. “As espécies apresentam dietas variadas e não disputam comida”, diz Souza. Ele também suspeita que, não raro, indivíduos de espécies diferentes da que colonizou o cupinzeiro consigam passar despercebidos, graças a uma camuflagem química: um composto exalado pela cutícula (a camada que recobre o esqueleto dos insetos), capaz de enganar os donos do condomínio. Em artigo deste ano na PLoS Biology, pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, demonstraram que a diversidade de espécies não está apenas nos túneis dos cupinzeiros: onde há cupinzeiros existe também maior diversidade de plantas e animais. “Os cupins”, afirma Souza, “são importantíssimos para a manutenção da biodiversidade e o equilíbrio ecológico de uma determinada região”.
> Artigos científicos
1. ARAÚJO, F. S. et al. Bottom-up effects on selection of trees by termites (Insecta: Isoptera). Sociobiology. v. 55, n. 3, p. 725-34. 2010.
2. DE SOUZA, O. et al. Trophic controls delaying foraging by termites: reasons for the ground being brown? Bulletin of Entomological Research. v. 99, p. 603-09. 2009.
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