A revolução dos testes de DNA
Sergio Pena celebra em sua coluna de julho os 25 anos de uma revolução que ele ajudou a trazer para o Brasil – o desenvolvimento do método que permite determinar a paternidade com certeza absoluta.
Por: Sergio Danilo Pena
Publicado em 09/07/2010 | Atualizado em 09/07/2010
Protagonistas da minissérie ‘Capitu’, adaptação para TV do romance ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis. Se já houvesse testes de DNA naquela época, Bentinho não teria dúvidas sobre a paternidade do filho de Capitu (foto: divulgação / TV Globo).
Na coluna do mês passado, comemorei o aniversário de 10 anos do primeiro rascunho do genoma humano. Neste mês, quero registrar outra data de grande importância na história da genética humana: o jubileu de prata dos testes de DNA para determinação de paternidade.
Em julho de 1985 o geneticista inglês Alec Jeffreys publicou na revista Nature sua invenção de uma técnica laboratorial de estudo simultâneo de múltiplas regiões do DNA com ’lanternas químicas’ denominadas sondas multilocais.
Como o nome diz, essas sondas eram capazes de reconhecer simultaneamente um grande número de minissatélites muito variáveis no DNA. O resultado era um padrão de bandas absolutamente individuais, similar a um código de barras, que ele chamou de ‘impressões digitais de DNA’, em analogia às dos polegares. Confira abaixo como funciona esse método:
Essa descoberta tornou possível comparar o padrão genético dois ou mais indivíduos e, pela primeira vez, comprovar com certeza absoluta (superior a 99,9999%) se um indivíduo é ou não o pai biológico de uma criança.
Ao ler o artigo me encantei com a metodologia. Em determinação de paternidade o que então havia de melhor era um teste indireto chamado HLA, mas a confiabilidade era de 98%. Chegar à certeza com testes diretos no DNA era um desafio irresistível. Decidi fazer tudo para dominar a técnica e adaptá-la ao Brasil.
Dois empecilhos se apresentavam. O primeiro deles vinha da arena da propriedade intelectual. Jeffreys havia cedido a patente de suas sondas a uma empresa que impedia seu uso por outros laboratórios. Porém, rapidamente se descobriu outra sonda (chamada M13), com características iguais às de Jeffreys, que foi colocada em domínio público. Logo, desenvolvemos nós também uma sonda multilocal 100% brasileira (F10), que passamos a usar rotineiramente.
O segundo empecilho era o fósforo radioativo, que Jeffreys usava para ’marcar’ suas sondas multilocais e visualizar os resultados em filmes de raios-X.
A radioatividade era efêmera, e a importação dos isótopos, complicada. Isso nos levou a explorar vias alternativas, não radioativas, com maravilhoso sucesso.
Assim, em 12 de junho de 1988, o Laboratório Gene – Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais – anunciou oficialmente ao público brasileiro que já realizava o revolucionário exame de determinação de paternidade pelo DNA. A repercussão no país e no exterior foi muito grande.
Em 1990, também pioneiramente no Brasil, adicionamos os novíssimos testes pela técnica da PCR (sigla em inglês para ‘reação em cadeia da polimerase’) às perícias de paternidade feitas com sondas. Esses testes necessitam menos DNA e são mais simples – por isso, embora não tão informativos e elegantes quanto as ’impressões digitais de DNA’, eles vieram mais tarde a substituí-las nos laboratórios.
O problema da não paternidade
A não paternidade é um sério problema no Brasil. Dados do IBGE de 1988 já indicavam que cerca de 30% das crianças registradas no país não tinham pai declarado. Essas crianças precisam do reconhecimento legal, do apoio emocional e afetivo e do suporte financeiro de seus pais.
A incerteza da paternidade é antiga como a humanidade. Afinal, a concepção ocorre no interior do corpo da mulher e não admite testemunhas. Daí o dito popular: “Os filhos de minhas filhas, meus netos são; os filhos dos meus filhos, serão ou não?”
Acredita-se mesmo que tal incerteza possa ser um dos fatores que contribuiu evolutivamente para moldar padrões de conduta masculinos na sociedade. Um sinal disso é o fato de, no passado, os homens adaptativamente assumirem comportamentos que maximizassem a probabilidade de sua paternidade e minimizassem a chance de investirem recursos em filhos biológicos de outros indivíduos.
Estudos multiculturais em 186 grupos étnicos diferentes mostraram que o adultério feminino, junto com a esterilidade conjugal, é a causa mais comum de dissolução de casamentos.
Outras evidências vêm dos estudos sobre os ciúmes maritais, despertados por fatores distintos nos homens e nas mulheres. Nos homens, eles vêm principalmente pela suspeita, observação ou descoberta de infidelidade sexual da mulher (eventos que comprometem a certeza de paternidade). Já entre as mulheres, eles são evocados preponderantemente por infidelidade emocional.
Muitos casamentos eram desgastados pela “síndrome de Capitu”, assim chamada em alusão ao famoso romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Na estória, Bentinho, casado com Capitu, é atormentado pela dúvida de ser ou não pai de Ezequiel, que se parece muito com Escobar, amigo do casal. No final, corroído pelas incertezas, Bentinho se separa da esposa e do filho.
A grande demanda pelos testes de paternidade em DNA em nível privado e pessoal desde a sua introdução no Brasil, em 1988, ilustra o grande número de suspeitas similares existentes. Hoje em dia, a dúvida de Bentinho poderia ser resolvida rapidamente, por meio de um teste de paternidade em DNA bem feito.
A segurança da paternidade biológica (ou a prova da não paternidade) que a genética moderna possibilita desde a descoberta de Jeffreys, tem se mostrado muito favorável ao desenvolvimento da paternidade responsável. Esclarecidas cientificamente, situações de incerteza que no passado desgastavam os relacionamentos podem hoje ter finais felizes.
Os laudos conclusivos dos exames em DNA formam uma base sólida para a aceitação das responsabilidades social, psicológica e financeira que a paternidade biológica deve ensejar.
Testes de DNA no Brasil
A determinação de paternidade pelo DNA alavancou no Brasil uma verdadeira revolução judicial e social. Esse método agilizou a solução de dezenas de milhares de casos judiciais e, paralelamente, permitiu a solução de dúvidas de paternidade na esfera extrajudicial, dentro do seio das famílias, em total sigilo.
Nesse contexto, vale a pena destacar que na edição especial de 40 anos da revista Veja, publicada no mês de setembro de 2008, a determinação de paternidade pelo DNA foi escolhida como uma das “40 coisas que mudaram sua vida em 40 anos”. A chegada desse método ao Brasil foi considerada o marco principal para 1988, à frente inclusive da promulgação da nova Constituição brasileira no mesmo ano!
O que era impensável em 1985, quando Jeffreys publicou a técnica, hoje tornou-se rotina. Resultados urgentes de testes de paternidade podem ser obtidos em menos de 24 horas!
Também podemos utilizar amostras biológicas diversas (sangue, células da bochecha, fios de cabelo com raiz, unhas, material de biópsias, dentes, ossos, tecidos fetais) e realizar, com confiabilidade total, exames tanto antes do nascimento de um bebê (teste pré-natal) quanto após a morte do possível pai, por meio do estudo de parentes dele ou pelo estudo de restos mortais.
Graças a um lampejo de genialidade de Alec Jeffreys, um quarto de século atrás, podemos contrariar o adágio popular e definir, com certeza, se os filhos de nossos filhos são realmente nossos netos ou não.
Nota bene – Partes deste texto foram publicadas da Folha de S. Paulo do dia 27 de junho de 2010, em um artigo intitulado “Agora, papai sabe tudo...” [link só para assinantes] que saiu na coluna “Arquivo aberto” do suplemento Ilustríssima.
Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
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